Nos limites tensos do humano: o sujeito animal na literatura
Resenha
MACIEL, Maria Esther. Literatura e animalidade.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016. 176 p.
Bianca Dias
Há que se pensar com delicadeza
Imaginar com ferocidade.
HELDER, Herberto.
Do lugar que nos desaloja de uma suposta superioridade humana frente à animalidade é tecida a escrita de Maria Esther Maciel em Literatura e animalidade. Seu movimento de caminhar corajosamente junto dos animais mantém acesas as frestas da cintilância. Sua escrita é inscrição que faz vicejar minúcias e escapa à nossa compreensão: os animais estão ali nos espreitando, distantes e próximos, fascinantes e assombrosos. São eles que nos olham e nos despojam de nossa arrogância narcísica: há apenas uma linha fina que separa humanidade de animalidade.
A escrita de Maria Esther devolve a dignidade aos animais: sempre vistos como máquinas, corpos automatizados em uma “quase existência”, agora são parceiros de habitação de um mundo tremulante em construção, ajudando-nos a recuperar nossa animalidade perdida e abrindo a possibilidade de formas híbridas de existência.
A marginalização e a coisificação dos animais é o índice de nosso terror frente àquilo que na natureza é pura vertigem. Sobre esse espasmo diante do incompreensível, o livro nos brinda com agudas incursões em autores como Jacques Derrida (que escreveu o brilhante livro O animal que logo sou) ou Franz Kafka (com A metamorfose, livro decisivo na fundação de uma linhagem literária dos processos de identificação/tensão/entrecruzamento do humano e não humano) ou, ainda, Michel de Montaigne (referência que reconfigura o conceito de humano e realoca as políticas da vida e o nosso espanto).
O assombro sempre presente dá notícias de uma escrita que devolve ao enigma sua devida espessura: como se tornar inseto, mas não deixar de se manter humano? Como tocar uma carne em estado de urgência inscrevendo nesse toque aquilo que se prolifera nas fronteiras? Para José Gil, escritor português, essa região fronteiriça, para além da qual se desintegra nossa identidade humana, está traçada dentro de nós, e não sabemos onde.
Jorge Luis Borges, autor que se presentifica com seres híbridos e de caráter fantástico num belíssimo compêndio de animais imaginários, nos ensina sobre uma animalidade capaz de desafiar os limites da razão humana, pois o que há fora, o conhecemos apenas pelo semblante do animal.
Como afirma Maria Esther, a questão dos animais e dos limites do humano foi uma constante nos últimos anos de vida de Derrida, já tendo aparecido esparsamente em alguns trabalhos anteriores. Em O animal que logo sou, o filósofo confronta a assertiva de Heidegger segundo a qual “o animal é pobre de mundo”. E é a esses pontos que Derrida se dedica numa palestra centrada em Lacan, intitulada E se o animal respondesse?, em que ele tensiona a ideia lacaniana de que existiria um código que permitiria ao animal apenas a reação, e não a resposta.
O que Derrida reivindica é um sujeito animal, e é nessa trilha que há o encontro com a escrita de Maria Esther, a recuperar as ideias de Montaigne, em que a falta de linguagem humana entre os bichos não seria de fato uma insuficiência ou uma privação, visto que eles disporiam de outras modalidades de fala e pensamento, incomensuráveis em equivalências humanas. Para Derrida, todo animal é um sujeito na medida em que é um intérprete de sentidos.
Fazer ouvir o singular de cada animal, apreender o outro pelos sentidos e pelo coração no selvagem da existência, escutar uma alteridade do sujeito-animal que, em “sua singularidade, olha, sente, sofre, tem inteligência e saberes sobre o mundo”. É dessa maneira que Maria Esther nos conduz eticamente a ser olhados no limite abissal do humano, para que, nos confins do não sabido, possamos preservar o enigma daquilo que é, ao mesmo tempo, próximo e alheio, cúmplice e arredio.
Nessa tarefa ela encontra Derrida como interlocutor central, que elege um animal para pensar o estatuto da poesia: um ouriço que se enovela sobre si mesmo ao ser lançado, solitário, numa rodovia, como uma bola de espinhos. Exposto aos acidentes da estrada, o ouriço se protege enrolando-se e, ao mesmo tempo, se mostra como perigo para quem ousa tocá-lo. E essa condição paradoxal do animal de simultaneamente se fechar sobre si e se expor ao mundo é, segundo o filósofo, o estado do próprio poema: “Não há poema sem acidente, não há poema que não se abra como uma ferida e também abra uma ferida”.[1]
O ouriço jogado na estrada revela aquilo que resta no corpo como incisão, ferida ou segredo. Nessa mistura que embaralha aquilo que é próprio do homem e do animal, o ouriço aparece como metáfora da poesia exposto à sua própria sorte, como aquilo que pode nos levar ao incógnito e espinhoso da animalidade, essa coisa que, ao mesmo tempo, se expõe e se retrai.
Escrever o animal não deixa de ser uma experiência que se aloja nos limites da linguagem. É pegar nas mãos os estilhaços do que resta de nossa humanidade: o resto e o rastro do corpo vivo do animal dentro de nós, um saber fazer com essa intrusão clandestina, como a mulher olhada pelo búfalo no conto de Clarice Lispector, em que esse olhar é disparador daquilo que é pura perda vertiginosa. Ou como o jaguar enjaulado num zoológico, no poema de Ted Hughes, nos espreitando em sua singularidade de fera, nos convocando a habitar um corpo que se move na clausura. Ou como a pantera do poema de Rilke, que faz da jaula sua condição e limite. Ou, ainda, como o boi aterrorizado que, no corredor estreito de um matadouro, se debate com todos os músculos numa ânsia louca, como nos mostra um poema de Eucanaã Ferraz.
Eles escrevem, ao mesmo tempo, assombrados e atraídos pela estranheza animal, extraindo daí metáforas ou alegorias da vida humana sobre algo que nos escapa e é presença inquietante. E é dessa maneira que a poesia é capaz de trazer à vida, por vias transversas, a dimensão que Octavio Paz nomeia “outridade”: passagem ou salto para o outro lado da fronteira, um encontro com algo do qual fomos arrancados e que está dentro de nós.
Nuno Ramos condensou no livro Ó esse espaço inquietante de nossa animalidade, e Bataille convocou a poesia como condução a uma espécie de zona indeterminada, aquilo que Herberto Helder chamou de estado de arrepio em seu livro Última ciência, ao descrever a perturbadora experiência de olhar uma serpente nos olhos – enigma e pulsação lírica que Maria Esther nos devolve com sua escrita medida por essa intensidade do arrepio, assaltada pelos passos cambaleantes de um potro que acaba de nascer e, com os olhos ainda turvos diante do escuro, se pergunta: “Isso é o mundo?”
Bianca Dias é psicanalista lacaniana, crítica de arte e pesquisadora em estudos contemporâneos das artes.
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[1] DERRIDA, 2002 citado por MACIEL, 2016, p. 45.
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Referência
DERRIDA, J. E se o animal respondesse? In: ______. O animal que logo sou. Tradução de Fábio Luanda. São Paulo: Editora UNESP, 2002.