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Em louvor da sombra, de Junichiro Tanizaki

Olívia Viana (da Equipe Editorial de DERIVAS ANALÍTICAS) 

Sombra, penumbra, silêncio, erotismo, oscilação, densidade, treva, sonho, fluidez, lentidão, sujidade, mistério. Esses são alguns dos significantes que se adicionam como camadas de veladura no belo ensaio Em louvor da sombra, no qual o escritor japonês Junichiro Tanizaki enaltece a forma oriental de criar beleza, "fazendo-a nascer das sombras, nos lugares mais insignificantes". O texto é escrito em 1933 por um homem surpreso e nostálgico que se depara com seu país "irreversivelmente engajado nas vias da cultura ocidental".

É à maneira de uma exaltação e de um tratado de estética nipônica que Tanizaki relata, poética e minuciosamente, as belezas e prazeres encontrados sob a sombra dos monastérios, no fundo turvo da tigela do missô, no negrume do nanquim, no peso dos figurinos de teatro e em tantas outras produções culturais do Japão. Segundo o autor, a própria possibilidade de poetizar o mundo foi desenvolvida por seus ancestrais a partir da fruição das qualidades da escuridão. Para ele, a noção oriental do Belo "não é mais que uma sublimação das realidades da vida, e foi assim que nossos antepassados, obrigados a viver quer quisessem, quer não em divisões escuras, descobriram um dia o Belo no meio da sombra, e depressa utilizaram a sombra para obter efeitos estéticos".

Ao descrever, por exemplo, os cristais de seu país, Tanizaki valoriza a "transparência turvada por suaves nuvens", que causam a impressão de uma maior densidade da matéria, o que é experienciado como prazeroso. Ao longo de todo o ensaio, a opacidade é defendida em contraste ao "excesso de pureza e limpidez" que orientariam a estética do Ocidente. Até mesmo nas representações dos fantasmas, os orientais teriam mais densidade que os ocidentais, figurados como espíritos de corpo claro e translúcido: "o que constatamos é que a nossa própria imaginação se move em trevas negras como laca, enquanto os ocidentais atribuem até aos seus espectros a limpidez do vidro”.

Não por acaso, um dos temas para os quais o escritor se volta em seu ensaio é o tom da pele. Segundo ele, mesmo sobre a pele dos mais brancos japoneses há um velamento sobre a brancura, que ele descreve como uma "sombra escura, como uma camada de poeira". Para Tanizaki, é pelo próprio corpo − seja pela via da pele, seja pelos cabelos sempre escuros que com ela contrastam − que se aprende a reconhecer as diferentes cores da obscuridade e a conhecer as "leis da sombra" em sua beleza.

A incansável busca pela claridade é percebida com desgosto pelo escritor, que a interpreta como índice da desenfreada ânsia de domínio e progresso que guia a cultura ocidental, passando da luz de velas ao candeeiro, do candeeiro ao gás, do gás à eletricidade − e, talvez, poderíamos já adicionar aqui a luz branca das telas de celular −, como se fosse necessário "cercar no menor recanto o último refúgio da sombra". Cada objeto, personagem e espaço descritos parecem condensar em si o próprio Japão. É como se esse país e tantos outros territórios que sofrem a imposição da "cultura da luminosidade" fossem eles mesmos refúgios de sombra, que guardam em suas quinas, cantos e interiores as preciosidades que se extinguem diante de uma luminosidade exacerbada que devora e extermina a possibilidade de encantamento.

O afã pela luminosidade total impede, portanto, a experiência estética, pois "o Belo perde a sua existência se lhe suprimirmos os efeitos da sombra". Tanizaki defende que, em meio à penumbra, não é necessário mais do que uma "claridade difusa" que revela, momentaneamente, um ou outro detalhe de um objeto, de um espaço, de um corpo, incitando o sujeito ao sonho. Ora, estamos no campo do erotismo, no qual o desejo se revela nos intervalos entre o que se esconde e o que se mostra.

O escritor insiste não apenas no valor do encobrimento, mas também da densidade da matéria, seja ela corpo humano ou cristal: 

A um brilho superficial e gelado, preferimos sempre os reflexos profundos, um pouco velados... esse brilho ligeiramente alterado que evoca irreversivelmente os efeitos do tempo. “Efeitos do tempo” é o que de certo soa bem, mas, para dizer a verdade, é o brilho produzido pela sujidade das mãos. Os chineses têm uma expressão para isso, “o lustro da mão”; os japoneses dizem “a usura”: o contato das mãos no decorrer de um longo uso, o roçar, sempre aplicado nos mesmos locais, produz com o tempo uma impregnação gordurosa; noutros termos, esse lustro é, pois, a sujidade das mãos. 

Trata-se, portanto, de um apreço pela materialidade do corpo e por seus efeitos sobre os objetos e seu entorno. O brilho ligeiramente alterado é um brilho que inclui o corpo do sujeito em um mundo de contato e fricção. Inclui o desenvolvimento temporal e a repetição, as marcas gozosas do uso. Em contraste, do lado ocidental da obsessão pela claridade teríamos um ideal de imaterialidade do corpo, numa perspectiva higienista que, além de muitas vezes desembocar no racismo − como já apontado pelo valor dado à brancura –, considera, em última instância, o próprio corpo como elemento impuro.

“À luz da razão higiênica, toda ambivalência e todo mistério são tomados como sujos”. A frase poderia estar no Em louvor da sombra, mas foi escrita quase um século mais tarde pelo filósofo sul-coreano Byung-Chul Han, em seu livro A salvação do Belo. Ele continua: “a coerção de higienização seria o fim do erótico; o erótico sujo cede à pornografia limpa. (...) A sociedade hoje, obcecada, tarada, em limpeza e higiene, é uma sociedade da positividade que sente nojo diante de qualquer forma de negatividade”.

Han descreve a estética contemporânea atravessada pelo universo digital como uma "estética do liso", guiada pela busca da transparência, da hipervisibilidade, do ajustamento perfeito, da superficialidade tátil e da centralização do Eu. Suas elaborações teóricas parecem desenvolvimentos diretos do que Tanizaki já anunciava como a paixão pelo brilho superficial, direto e intenso. Na estética do liso, haveria um anseio pela superfície plana, lisa, sem emendas, concomitante a recursos tecnológicos que exploram o campo do visível de forma a eliminar qualquer sombra, qualquer traço de ocultamento.

No contexto dessa estética dominante em nossas sociedades atuais, a experiência do Belo estaria impossibilitada. Nem diante do Belo, “nem do Sublime, o sujeito vai para fora de si. Fica permanentemente em si mesmo”.  Afinal, como já apontava Tanizaki, “a visibilidade exaustiva do objeto também arruína o olhar”. Podemos adicionar que ela incide, portanto, na própria dinâmica pulsional do sujeito.

O filósofo toma uma posição bastante semelhante à do escritor japonês, defendendo que o Belo é necessariamente oculto, velado, encoberto. Inconciliável, portanto, com a transparência: “a beleza transparente é um oxímoro. A beleza é necessariamente uma aparência. Nela reside uma opacidade. Opaco quer dizer sombreado. A revelação desencanta e o destrói. Assim, o Belo é indesvelável segundo sua essência”.

Estamos nos referindo, portanto, com Lacan em “Kant com Sade”, de 1963, a um esgarçamento da beleza em sua função de véu diante do horror. Como vimos em outros textos desta edição de DERIVAS ANALÍTICAS, os semblants dizem respeito às diferentes maneiras como os seres falantes se inserem no mundo dos discursos. Podemos afirmar então que o que está em risco, seja na estética do liso seja na estética da pureza é, em última instância, a própria relação do sujeito com a linguagem e com o inconsciente. Byung-Chul Han também aborda esse ideal da informação em contraponto à linguagem: 

A transparência é pura. As coisas ficam transparentes quando inseridas em fluxos lisos de informações e dados. Dados têm algo de pornográfico e obsceno. Eles não têm interioridade, traseiros, não têm dois lados, nem são ambíguos. É nisso que eles se diferenciam da linguagem, que não admite uma focagem total que dê tudo a ver. 

Desde a descoberta do Inconsciente, sabemos da impossibilidade de se pensar a linguagem como superfície lisa, pura e transparente. Pelo contrário. Ao tentar uma descrição imagética do psiquismo, Freud, em “O mal-estar na cultura e outros escritos”, de 1936, chega ao exemplo da justaposição de muitos tempos e construções de uma mesma cidade, entre ruínas e palácios. Já para Lacan, temos não a oposição entre superfície e interioridade, mas sim a torção topológica que inclui o furo. O inconsciente é composto de restos, impurezas, dejetos, cantos e furos onde não chegam as luzes brancas dos ideais da sociedade de consumo.

Nessa direção, o conceito de corpo falante nos aponta que a linguagem é encarnada, que a palavra imprime no Inconsciente as marcas do lustro, da usura, que incide sempre no mesmo lugar como marca de gozo. Temos, com esse conceito, o corpo como superfície de inscrição da linguagem, um corpo que "fala em termos de pulsões", como define Jacques-Alain Miller em O osso de uma análise + O inconsciente e o corpo falante, de 2015. Assim, é evidente que a estética da pureza e da transparência é incompatível com a psicanálise.

 Em "Psicanálise pura, psicanálise aplicada e psicoterapia", de 2017, Miller aponta que, com a ênfase dada ao gozo por Lacan em seu último ensino, a diferença entre a psicanálise pura e a psicanálise aplicada torna-se uma diferença não essencial. A partir do ensaio de Tanizaki e diante da exacerbação da estética do liso, tal como apresentada por Han, perguntamo-nos se não caberia afirmar que a Psicanálise é, desde sempre, impura, uma vez que se abre para a radical singularidade de cada corpo falante, com seus dejetos, camadas de poeira, tonalidades de escuridão e pequenos relances de claridade.

Ao final de seu ensaio, Tanizaki sugere que a Arte teria a possibilidade de compensar e fazer reviver o universo de sombras que estava, naquele momento, em risco de se dissipar. A literatura seria para ele a via de escurecer novamente as paredes, de mergulhar na sombra o que está visível demais. Convocamos aqui a um movimento semelhante no campo da Psicanálise: voltar nosso olhar e nossa escuta para os espaços e sujeitos às margens turvas da sociedade. Fazer da própria Psicanálise, mais do que nunca, refúgio da sombra, espaço de sustentação do enigma, da penumbra, das impurezas.

 Tanizaki, Junichiro. Em louvor da sombra. São Paulo: Penguin-Companhia, 2017.

 

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