Se ela lhe cair como uma luva, o delírio não se generaliza

 

Márcia Rosa


Se a ideia de uma forclusão, que se generaliza e faz com que todo mundo delire, traz implícita a proposta de que a ação forclusiva incide não apenas sobre o significante do Nome-do-Pai mas também sobre o significante d’A Mulher, indago se ali onde o sujeito acredita na existência d’A Mulher o delírio se generaliza. Para discuti-lo, tomo as cartas de amor de Joyce a Nora, a luva revirada ao avesso e comentários de Lacan em O sinthoma.[1]

Luis Thonis: “pelo que parece todo grande escritor tem suas cartas”[2]

A edição das Cartas de amor a Nora Barnacle, redigidas por Joyce entre 1904 e 1920, é apresentada pelo escritor argentino Luis Thonis com a observação de que Yeats, Pound e Joyce “são os continuadores de uma tradição que venera a A Mulher”,[3] cujos antecessores são os poetas do amor cortês. Quem não se lembra da dama do amor cortês e do modo inteiramente refinado, embora ingênuo, que eles inventaram para se haver com a relação que não há?! No entanto, diferentemente dos provençais, para os modernos não se trata de cortejar a mulher mediante louvores retóricos, mas de tomar o corpo feminino enquanto depositário de um mistério. De uns para outros, o impossível se desloca da inacessibilidade da mulher para a sexualidade mesma.

Nas cartas para sua mulher Joyce não será exatamente um cortesão no sentido moderno do termo. Nelas ele se endereça a uma mulher quase iletrada, de pouca cultura e refinamento, e busca “[...] convocar, exortar, suscitar algo nesse corpo que o fascina desde sua distância”.[4] Não se trata aí de um diálogo intelectual, ele lhe escreve para tornar suportável o incomodo que é desejá-la: “Estou todo o dia excitado. O amor é um maldito incômodo, especialmente quando também está unido à luxúria”.[5] Sobre as cartas, escreve: “[...] há algo obsceno e lascivo no próprio aspecto das cartas. Seu som é também como o próprio ato: breve, brutal, irresistível e diabólico”.[6]

As cartas preparam o fato de que eles partirão juntos e terão seu primeiro filho sem uma união civil, que ocorrerá muito depois.[7] Nelas Nora ocupa tanto um lugar de escuta, cuja mínima palavra é importantíssima,[8] como o da iniciadora sexual que abalou a conflituosa armadura católica construída pelos jesuítas e descrita em Retrato do artista quando jovem. Ela encarna o avesso da solução cristã, que fez da mulher “o objeto de um desejo divino ou um objeto transcendente do desejo”,[9] e Joyce se diz “tomado [iniciado] por ela”.[10] À diferença da sua obra, para a qual ironicamente acreditou serem necessários cem anos de decifração, nas cartas teríamos uma espécie de linguagem performativa, na qual dizer é fazer, propõe Thonis.[11] Ao se dirigir a ela, tudo poderia ser dito: “te disse coisas que meu orgulho não me permitirá dizer nunca mais a nenhuma mulher”.[12]

Se o próprio das cartas é a possibilidade, para quem as recebe, de deixá-las cair, Thonis[13] observa que poucas vezes Nora responde. Todavia, pode-se imaginá-la sorrindo ao ler essas cartas que não são, afinal, mais que um eco de uma obra em processo: nelas se resolve a disjunção postulada por Yeats entre ser homem e ser poeta. De um lado, comum ao homem, a Joyce, a Fausto, o espírito que sempre nega, do outro, uma voz de mulher que escreverá: “eu sou a carne que diz sim”. É Molly Bloom, personagem que encarna a quantidade − nomeada − a vida nova de um gozo novo.[14] As Cartas a Nora terminam em 1920 e, um ano depois, aparece Ulisses, finaliza o comentarista argentino.

A luva virada ao avesso

Endereçando-se a Nora como sua “pequena e querida Butterfly”,[15] Joyce busca agradá-la. Presenteador, tal como diríamos um galanteador, diz ter lhe enviado alguns metros de tweed e, figurinista, descreve detalhadamente como gostaria que a jaqueta fosse confeccionada; conta-lhe que prepara um livro de poemas copiado por ele próprio com tinta indelével em folhas de pergaminho. Ela terá a única cópia desse livro, encadernado para durar cem anos. Na lista de presentes, um especial:

[...] espero que tenhas recebido bem as luvas que estou te dando. Eu as enviei para ti tal como fiz com meu primeiro presente, há cinco anos... O par mais bonito é o de pele de rena: estão forrados (sic) de sua própria pele, simplesmente virados do avesso, e devem ser quentes, quase tanto como certas partes de teu corpo, Butterfly.[16]

Lacan observa que, embora tenha dito que não há relação sexual, entre Joyce e Nora há relação sexual e “bem esquisita”.[17] Nesse caso, as luvas não são completamente inocentes, “a luva virada ao avesso é Nora. É o jeito de ele considerar que ela lhe cai como uma luva”.[18] Para Joyce só haverá uma mulher, sempre do mesmo modelo e “[...] ele só a enluva com a maior das repugnâncias”.[19] Através da depreciação, ela se torna eleita. Entretanto, “[...] não apenas é preciso que ela lhe caia como uma luva, mas que ela o cerre [ajuste] como uma luva”.[20]

A dimensão geométrica da luva invertida não topologicamente, corresponde a um querer introduzir-se no corpo de Nora, dar-lhe a volta, embrulhar-se nele, conhecer como lhe caem as excreções. Ao determinar desde a vestimenta até a alimentação, ele busca esculpir a A Mulher, ser-lhe o dono do corpo e do espírito. O menosprezo pela mulher comporta simultaneamente uma dependência absoluta dela a quem ele diz dever tudo. Extremamente vulnerável ao menor vacilo nessa relação, o nascimento dos filhos é incômodo; ele intervém não exatamente em uma simbiose, mas em uma diferença que gera uma imbricação do casal. Clinicamente, os sujeitos que se ajeitam com A Mulher, encontram no lugar da divisão entre a prostituta e a santa, A Mulher Única. Curados pelo amor, sem que tenha havido um trabalho subjetivo, eles restam na dependência absoluta do amor deste Outro providencial.[21]

Sem mencionar a carta de 01 nov. 1909, Lacan evoca a figura kantiana do se vestir a mão direita com a luva que é a da esquerda, virando-a ao avesso. O detalhe é que na luva virada ao avesso, o botão fica no interior.[22] Se esse detalhe passou despercebido a Kant, Lacan tanto o articula a uma escamoteação da castração feminina, quanto o aproxima do pequeno a, à medida que o objeto é um “[...] obstáculo à expansão do imaginário concêntrico, isto é, englobante”.[23] Apreensível com a mão, à maneira de uma arma, o objeto seria como “uma arma de arremesso [...]”[24] que, tal um bumerangue, retornaria sobre o próprio sujeito na forma de furo. “Tudo o que subsiste da relação sexual é essa geometria que aludimos a propósito da luva. É tudo o que resta à espécie humana como suporte para a relação”, finaliza Lacan.[25]

Para Miller,[26] Lacan se inspira em Joyce para, através do reviramento topológico da luva, inventar uma geometria na qual aquilo que subsiste da relação sexual na solidão do falasser contradiz o espaço concêntrico. Lacan tenta encontrar um pensamento que não seja fundado na adoração de um Corpo, na expectativa de que ele permita tocar o real; o real da não relação.

Conclusão

Para Lacan, o sintoma central da análise é a constatação da existência de um exílio na relação entre os sexos; diante da expectativa de adequação, sob transferência, o sujeito se depara com um “não há”. Portanto, a análise implica que o sujeito produza a resposta a um enigma, e essa resposta, completamente besta, termina no nó da não relação.[27] Devido à demissão paterna, o que leva a uma crença no sintoma, as coisas são diferentes para Joyce e sua mulher. Na medida em que ela lhe cai como uma luva, entre ele e Nora houve relação.[28] Joyce se diferenciaria do neurótico, que supõe um saber ao sintoma (que pode ser inclusive uma mulher) e busca decifrá-lo(a). Se não houve aí recepção endividante da herança paterna,[29] ele acaba se desinteressando em esclarecer seus enigmas. Se até a redação de Ulisses ele o tentou através de Stephen Dedalus, em Finnnegans Wake o alterego decifrador não estará mais lá. No autorretrato dos seus cinquenta anos ele se tornou um ponto de interrogação. Ao girar no sentido da identificação ao sinthoma, ele próprio se torna um enigma: “um escritor por excelência do enigma”.[30]

Através da escritura, Nora parece ter encontrado o estatuto de uma intimidade êxtima, de uma extimidade. Ele lhe escrevera: “Oh! Toma-me em tua alma de almas, e então me converterei realmente no poeta de minha raça”.[31]

Haveria uma singularidade do artista frente ao delírio generalizado?

Márcia Rosa é psicanalista membro da EBP-AMP, doutora em literatura comparada (UFMG) e professora na pós-graduação em psicologia (psicopatologia/psicanálise) da UFMG.
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Referências

HARARI, R. Como se chama James Joyce? A partir do seminário Le Sinthome de J. Lacan. Salvador: Agalma, Rio de Janeiro: Campo Matêmico, 2002. p. 163-168.

LACAN, J. Intervenção sobre a transferência (1951). In: ______. Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Revisão técnica de Antonio Quinet e Angelina Harari. Preparação de texto de André Telles. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. p. 214-225. (Campo Freudiano no Brasil).

LACAN, J. O seminário, livro 23: o sinthoma (1975-1976). Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Tradução de Sérgio Laia. Rio de Janeiro: Zahar, 2007. (Campo Freudiano no Brasil).

MILLER, J.-A. Curso de Orientação Lacaniana III, 9. O inconsciente real (2007-2008). Curso de 17 jan. 2007.

THONIS, L. Prólogo. In: JOYCE, J. Cartas de amor a Nora Barnacle. Tradução de Felipe Rua Nova. Ed. Elaleph.com, 2000. Disponível em: <www.elaleph.com>. Acesso em: out. 2010. p. 4.

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Notas

[1] LACAN, (1975-1976) 2007.

[2] THONIS, 2000, p. 5.

[3] THONIS, 2000, p. 3.

[4] THONIS, 2000, p. 5.

[5] THONIS, 2000, p. 6.

[6] THONIS, 2000, p. 5.

[7] THONIS, 2000, p. 7.

[8] THONIS, 2000, p. 6.

[9] LACAN, (1951) 1998, p. 221.

[10] THONIS, 2000, p. 7.

[11] THONIS, 2000, p. 8.

[12] THONIS, 2000, p. 17.

[13] THONIS, 2000, p. 17.

[14] THONIS, 2000, p. 18.

[15] JOYCE, 2000, p. 104. Carta de 01 nov. 1909.

[16] JOYCE, 2000, p. 69. Carta de 01 nov. 1909.

[17] LACAN, (1975-1976) 2007, p. 81.

[18] LACAN, (1975-1976) 2007, p. 81.

[19] LACAN, (1975-1976) 2007, p. 81.

[20] LACAN, (1975-1976) 2007, p. 82.

[21] HARARI, 2002, p. 163-168.

[22] LACAN, (1975-1976) 2007, p. 81.

[23] LACAN, (1975-1976) 2007, p. 83.

[24] LACAN, (1975-1976) 2007, p. 83.

[25] LACAN, (1975-1976) 2007, p. 83.

[26] MILLER, 2007.

[27] LACAN, (1975-1976) 2007, p. 70.

[28] LACAN, (1975-1976) 2007, p. 81-82

[29] HARARI, 2002, p. 139.

[30] LACAN, (1975-1976) 2007, p. 150.

[31] THONIS, 2000, p. 86.

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