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logoder Revista Derivas Analíticas - Nº 21 - Agosto de 2024. ISSN:2526-2637


Nada será como antes

Daniela Teixeira Dutra Viola
Psicanalista
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Nada será como antes na música brasileira depois do acontecimento Clube da Esquina. O coletivo musical mineiro, formado na década de 1960 por jovens com diferentes origens, trajetórias e estilos, produziu uma sonoridade única. Sua música apresenta um traço muito particular, de singularidade notável e, ao mesmo tempo, de difícil definição, que ressoa na infamiliaridade e no espanto que essas canções provocam até hoje. Seja ouvindo o disco de 1972 – reconhecido, com todo o merecimento, como o melhor álbum brasileiro de todos os tempos e o nono melhor álbum já lançado no mundo[1] –, seja presenciando o show de despedida dos palcos de Milton Nascimento em 2022, com a participação de alguns de seus parceiros, num dos momentos mais comoventes da história da música popular brasileira, os ouvintes do Clube são arrebatados por esse som que parece traduzir algo indizível do que vem “de Minas, de onde o oculto do mistério se escondeu”[2], como canta Caetano.

 “De tudo se faz canção”: tempo, espaço, contingência

Essa espécie de intradução da “coisa mineira” pela música, que vai ser delineada no decorrer deste texto, aparece de maneira fina e sutil num documentário sobre o grupo, dirigido por Ana Rieper, em 2023, que a equipe da Derivas Analíticas teve o prazer de assistir no cinema meses atrás. Seu nome, Nada será como antes: A música do Clube da Esquina, sinaliza a tônica do filme: a contingência. É a partir de um encontro contingente com o som – mais precisamente, com uma voz que entoa nos vãos de um prédio de apartamentos em Belo Horizonte – que nasce essa música singular, marcando um corte temporal, um antes e depois na nossa cultura. Na história contada pelo roteiro, o menino Lô Borges sai para a padaria a pedido da mãe. No corredor do prédio, algo o detém: uma voz tão bonita e rara que o faz se esquecer do pão, da mãe, do caminho de casa. Assim, ele conhece Milton, esse vizinho que se senta nos degraus para tocar e cantar. O espaço anguloso e fechado do vão da escada tem uma acústica aveludada, intimista, por onde soa sua voz incomum. É também esse o tom do filme, que nos transporta à intimidade de uma família atravessada pela música, os Borges. Os irmãos Marilton, Márcio e Lô acolhem Milton nessa casa, e, em torno dele, músico genial, reúnem-se diversos outros compositores, cancionistas e instrumentistas, tais como Wagner Tiso, Beto Guedes, Ronaldo Bastos, Toninho Horta, Fernando Brant, Tavinho Moura, Flávio Venturini, Nelson Ângelo, Robertinho Silva, Luiz Alves, entre outros. A partir desse encontro, Eros faz seu trabalho e uma trupe de jovens talentosos e sonhadores se forma.

A documentarista Ana Rieper e sua equipe parecem nos convidar para um dedo de prosa e um cafezinho com pão de queijo na sala dessa família, onde o encontro acontece. O filme costura recortes preciosos de gravações da época, pequenos vídeos domésticos, retratos envelhecidos, depoimentos de amigos, figuras conhecidas da cena cultural e política de Belo Horizonte. Na casa simples e aconchegante, com seus santos, crochês e o piano de armário, ou nas ruas, estúdios e teatros, alguns dos integrantes do Clube narram suas memórias e procuram pôr em palavras o indescritível segredo de sua música. A dimensão imaginária, demarcada pela bonita fotografia do filme, com certo ar “caseiro”, revela a importância do espaço físico, estético e geográfico onde esse clube se reúne. Nos vãos de uma escada, na esquina da rua Divinópolis com a Paraisópolis, na cidade emoldurada por montanhas, ou mesmo nas ermas paisagens rurais, uma estranha familiaridade é transmitida pela tela, permitindo depreender certo espaço sonoro.

Podemos propor, então, que a “coisa mineira” que escutamos no Clube da Esquina tem a ver com essa “concha acústica” peculiar. De dentro da intimidade desse espaço, mas antenados para o ouro da produção musical do mundo, esses artistas forjam uma amálgama de referências internas e externas: o rock inovador dos Beatles, a bossa nova, a música de concerto europeia, como a de Ravel, o rock progressivo, o jazz, como o de Miles Davis, a latinidade, a religiosidade da tradição católica mineira, a matriz africana, com a percussão que retumba nos terreiros. Além das influências musicais, o contexto social e político, principalmente latino-americano e brasileiro, é um fator temporal determinante na criação artística do grupo. O documentário mostra como o Clube, formado nessa contingência do tempo e do espaço, catalisa uma conjunção de sonoridades, fazendo música desse encontro. E essa fusão tem seus furos e resíduos, restando um ponto de enigma, de estranhamento, o traço mais singular do som que esses músicos produziram.

Uma sonoridade resulta da mistura dos elementos composicionais, de arranjo e orquestração, e interpretativos (NUNES, 2005). Toninho Horta costuma dizer que, no Clube, “cada um tinha um mundo de música dentro de si”. Essa diversidade que faz laço é um aspecto fundamental da sonoridade do grupo – efeito do desejo que é, ao mesmo tempo, comum e de cada um. O filme evidencia um fazer coletivo em que cada integrante dava seu “mundo de música” interno.

O sentimento de pertencer a uma comunidade se reflete na música e é explorado de diversas maneiras: na composição coletiva, no arranjo coletivo, na execução coletiva, na superposição instrumental (mais de um violão, mais de uma voz, mais de uma guitarra, mais de um baixo) e na densidade instrumental, todos tocam e trocam os instrumentos, ou seja, as características individuais e idiomáticas dos instrumentos são levadas a outros. Um outro fator diz respeito aos timbres e texturas: a exploração de falsetes, os coros homofônicos, os dobramentos dessincronizados de voz, o dobramento de voz e violão realizando contracantos altamente dissonantes, o órgão e suas sustentações harmônicas sacras, o contrabaixo que chama a atenção pelas linhas bem movimentadas, a bateria remetendo a tambores mineiros. (NUNES, 2005, p. 61)

Além disso, as citações entre as canções e a presença do modalismo – forma da harmonia que não possui relação de tônica e dominante na escala, tendo como efeito uma circularidade – também são sinais de uma criação musical marcada pelo pertencimento. De acordo com Wisnik (2017), o modal tem estrutura de recorrência sonora ritualizada por um uso. Ou seja, as escalas modais são características da música produzida pelas sociedades tradicionais com finalidades ritualísticas, tendo como função sonorizar aquilo que enlaça um coletivo. Wisnik (2017, p. 80) define um traço geral do modalismo:

as melodias participam da produção de um tempo circular, recorrente, que encaminha para a experiência de um não-tempo ou de um “tempo virtual”, que não se reduz à sucessão cronológica nem à rede de causalidades que amarram o tempo social comum.

Na música do Clube, o modalismo aparece combinado com o sistema tonal e se soma à pluralidade de matrizes sonoras, sobretudo em suas investidas jazzísticas e regionalistas. A sonoridade que resulta desse encontro de vozes e referências, do que vem de dentro e do que vem de fora, porta a singularidade daquilo que enlaça esses jovens num espaço-tempo indissociável do que podemos chamar de “mineiridade”.

“Se eu cantar, não chore não, é só poesia”: sobre música e tradução

Num momento do filme, Toninho diz que suas linhas melódicas traduzem o delineado anguloso, abrupto, imprevisível, tomado por saltos e síncopes, das montanhas mineiras. Será mesmo uma tradução, como a que ocorre na passagem de um idioma a outro? Ou seria mais preciso considerar nessa criação artística uma forma de intradução, tal como o neologismo de Augusto de Campos? A intradução é um termo que esse poeta e tradutor passa a usar na década de 1970 para se referir ao aspecto “intermediário” da tradução, “intra-”, algo que se dá no intervalo entre línguas e textos (SANTORO, 2014). Na travessia entre os idiomas, algo resta intraduzível. Mas essa impossibilidade não impede o movimento entre as línguas. Recorro ao neologismo-conceito de Campos para pensar a especificidade da tradução que Toninho menciona e que, a meu ver, é um traço singular da música do Clube.

Adorno (2011) afirma que a música oferece o protótipo da intraduzibilidade. A linguagem musical não quer dizer nada e não é tradução de nenhuma outra. Ainda assim, esse aparato cultural de manejo estético do som sempre acompanhou o ser falante e tem uma função fundamental no laço social, num atravessamento que parte da matéria sonora bruta – emaranhado de sons e ruídos que fazem o ouvido vibrar – e chega no que conhecemos como música. De origem, a música é a “extração do som ordenado e periódico do meio turbulento dos ruídos” (WISNIK, 2017, p. 29) – uma espécie de mineração não-toda, restando sempre ruído.[3] Não há tradição musical pura, que tenha realizado um ideal de depuração do som, sem restos. Esse elemento residual que resiste, de alguma maneira, em toda música aparece nas canções do Clube de forma marcante, tornando sua sonoridade inconfundível, sem que se saiba definir o que a distingue.

O documentário Nada será como antes não traduz essa sonoridade, tarefa impossível. Contudo, permite vislumbrar como um encontro contingente, atravessado por contradições, diferenças e desejos partilhados, fez possível um coletivo que soube fazer ressoar o mistério – sem sentido e indizível – que as montanhas guardam. Nas palavras de Guimarães Rosa, em sua notória tentativa de “intraduzir” a mineiridade:

Atrás de muralhas, caminhos retorcidos, ela começa, como um desafio de serenidade. [...] Minas — a gente olha, se lembra, sente, pensa. Minas — a gente não sabe. [...] Sobre o que, em seu território, ela ajunta de tudo, os extremos, delimita, aproxima, propõe transição, une ou mistura: no clima, na flora, na fauna, nos costumes, na geografia, lá se dão encontro, concordemente, as diferentes partes do Brasil. Seu orbe é uma pequena síntese, uma encruzilhada; pois Minas Gerais é muitas. São, pelo menos, várias Minas. (ROSA, 1957, s/p)

Referências

ADORNO, T. Sobre la relación actual entre filosofía y música. In: Escritos musicales V. Madrid: Akal, 2011.

NUNES, T. A sonoridade específica do Clube da Esquina. Dissertação (Mestrado em Artes) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Artes, Campinas, São Paulo, 2005. Disponível em: https://hdl.handle.net/20.500.12733/1601960. Acesso em: 17 jul. 2024.

RIEPER, A. Nada Será Como Antes. Documentário. Duração: 79 min. Distribuidor: Lira Filmes. 2023.

ROSA, J. G. Minas Gerais. Revista O Cruzeiro, Belo Horizonte, ago. 1957. Disponível em: https://www.revistabula.com/21511-a-declaracao-de-amor-de-guimaraes-rosa-a-minas-gerais/. Acesso em: 17 jul. 2024.

SANTORO, F. Intraduction: La traduction de la philosophie rencontre les déf is de la traduction poétique. In: CASSIN, B. (Org.). Philosopher en langues: Les intraduisibles en traduction. Paris: Éditions Rue d’Ulm, 2014, p. 167-182.

WISNIK, J. M. O som e o sentido. Uma outra história das músicas. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.

[1] Clube da Esquina (Lô Borges e Milton Nascimento, 1972) foi eleito o melhor álbum já lançado no Brasil numa enquete do podcast Discoteca básica, que consultou 162 especialistas em 2022. Já em 2024, foi considerado o nono melhor álbum de todos os tempos do mundo no ranking da revista norte-americana Paste Magazine, numa lista de 300 discos.

[2] Trecho da canção “O ciúme”, de Caetano Veloso (1987).

[3] Um som resulta de uma determinada frequência de onda, que oscila em certa periodicidade. Um som afinado pulsa numa frequência constante, já um ruído tem oscilação desordenada (WISNIK, 2017).

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