Negro, alienação e violência em Fanon

 

Mônica Costa Lima [1]

 

Frantz Fanon nasceu na Martinica, e foi psiquiatra, escritor e ensaísta. Engajado no pensamento sobre a negritude, em seu brevíssimo tempo de vida, escreveu uma obra importante, revisitada por diversos autores contemporâneos.

Segundo Fanon, não existia um problema colocado a respeito do Negro ou, se existia, os brancos não se interessavam por ele (FANON, F. 2008, p. 43).

Para o autor, o sistema escravocrata estabelecido no século XVII, cruel e desumano, colocou em questão os princípios do humanismo. Contrariou as posturas éticas, que atribuíram importância fundamental à dignidade, às aspirações humanas e, particularmente, à razão. O fato de o humanismo concernir apenas o homem branco e não o preto, levou Fanon a afirmar, que “o negro não é um homem” (Fanon, F. 2008, p. 26). Ele se encontra em uma posição de exceção em relação ao humanismo branco europeu, por ter sido exposto a sistemas organizados de violência e brutalidade contínuas.

Em todo lugar que aparece, o Negro coloca problemas ao humanismo, à moral, e à razão. Libera dinâmicas passionais e exuberância irracional. Há sempre um preto, um mulçumano, um judeu, um hispânico, um chinês, um ariano, despertando delírios em torno da raça e causando devastações psíquicas, e crimes (Mbembe, A. 2013/2015, p. 10, 11).

Este é um ponto importante, em nossa discussão, pois embora o nome Negro remeta, de maneira imediata, aos africanos e à escravidão, ele deve ser tomado de maneira mais ampla, inspirando-se em uma perspectiva construída por diferentes momentos e cartografias do mundo moderno, nos quais foi gestado o que Françoise Vergès chamou de “homem predador”. Homem sem cor ou raça, que tratou seres humanos como mercadorias de troca e produziu a “coisificação” do ser humano (Vergès. F. 2011, p. 20, 29).

 

A escravidão colonial não se apoiou sobre o ódio a um povo, e, sim, sobre o desejo de encontrar a força de trabalho menos cara, para a produção de mercadorias, que adquiriam grande valor. O motivo econômico foi, também, o que impeliu os europeus à conquista de territórios além mar.

A escravidão foi um sistema no qual o Negro foi a força de trabalho mais móvel e flexível. Em todo lugar desfez-se, por meio da violência, seus laços familiares e comunitários. O Negro não podia transmitir patrimônio, e não tinha autoridade sobre sua sexualidade, futuro e vida. O tráfico negreiro teceu uma história de exploração, que produziu, de um lado, o capitalismo moderno, a industrialização, e o progresso tecnológico e, de outro, o “homem-coisa”, em seu embaraço para advir como sujeito. (Vergès, F. 2011, p. 49, 52).

É fundamental compreender, que o conceito de Negro não repousa sobre a cor da pele, mas sobre a perspectiva de que certos homens são produtos de uma máquina social e técnica, indissociável do capitalismo. Negro designa aquele, cuja vida foi “coisificada”. Instaura o paradigma da sujeição, bem como a ideia de um corpo do qual trata-se de obter a maior rentabilidade possível, em nome da racialização (Mbembe, A. 2015, p. 17).

A raça, como aponta Mbembe, não existe enquanto fato natural, físico ou genético. Analisada no registro do imaginário, é construída nas relações especulares, como uma figura do estranho e da diferença. Intervém enquanto afeto e forças pulsionais, ao engendrar um duplo, que ameaça constantemente usurpar o lugar do seu próximo (Mbembe, A. 2015, p. 57, 58).

A análise das interações do Negro com seu colonizador, fundadas no registro do narcisismo e na procura do sujeito por reconhecimento, foi empreendida, inicialmente, por Fanon, sobretudo em Pele negra, máscaras brancas. A obra expande a investigação sobre as relações coloniais do plano material ao plano psíquico, quando o autor afirma, que estas envolvem a busca por uma identificação, que reclama a afirmação de uma existência.

A atualidade do pensamento de Fanon deve-se à recrudescência da racialização e da reprodução de Negros, hoje, no mundo. Sua obra é revisitada, porque importa investigar o parentesco entre o sujeito produzido nas relações coloniais e o sujeito contemporâneo, o sujeito de raça, como o designa Mbembe, do qual queremos nos desvencilhar e manter distância.

Tal discussão pode, inclusive, lançar luz sobre a questão do Negro no Brasil: o fora da lei, fora do estado, desprovido do sentimento de pertinência à sociedade. Alvo da ira e dos abusos de poder, tornou-se uma figura da exterioridade radical. O soldado do tráfico é uma figura exemplar, e o sintoma da situação limite, que vivemos. Desqualificado, indissociável da morte, seu corpo e vida são destituídos de qualquer valor, na engrenagem de comercialização da droga. Vive em um estado de exceção, sob um regime permanente de violência, cujo objetivo é o lucro financeiro obtido, no comércio de drogas. A vida dessas pessoas pode ser desperdiçada e dispensada sem reservas, porque são Negros, situados em laços sociais de exclusão e sujeição, expostos à vontade de um Senhor, que busca obter deles um máximo de lucro. Miram seus vizinhos vivendo um estado de welfare, sonham viver suas vidas, dispor de seus objetos, tomar seus lugares, posto que o desejo do homem é o desejo do Outro.

Fanon discutiu o processo de alienação do Negro na imagem ideal do colonizador. Alienação é um termo, que foi amplamente usado na língua francesa, abarcando um vasto campo semântico, e era bastante familiar, à cultura psiquiátrica e filosófica, na época de Fanon.

A noção hegeliana da alienação estrutura a teoria de Fanon, sobretudo a leitura realizada por Sartre, baseada na interpretação de Kojève, conhecido por seu desapego à literalidade do texto hegeliano, pela supervalorização da dialética do senhor e do escravo, como a conquista da consciência de si, e pela noção de que o movimento dialético tem como lugar privilegiado a existência.

Para Kojève (1947) o escravo é aquele, que por meio de seu trabalho, estaria destinado a ser o agente promotor do processo histórico, da liberdade, e da revolução. Deveria sentir a angústia da morte, o nada do seu ser, para sair do tédio da inação, alcançar a liberdade e ultrapassar esse sentimento subjetivo.

Fanon, seguramente, está de acordo com Kojève, pois seus textos indicam, que é a partir de uma zona de não ser, e da colocação em jogo, de sua vida e morte, que o Negro pode encontrar a afirmação de seu lugar de sujeito.

Sartre apresenta aspectos da dialética entre sujeito e Outro, que nosso autor retoma, quando considera saídas para os impasses surgidos, nas relações entre Negros e Senhores, as quais exigem a afirmação de um desejo próprio, além do reconhecimento mútuo da condição de homem.

Embora tenha sido um leitor atento a seus contemporâneos, Fanon é um autor livre, que se apropria de ideias e, nelas transita, de modo singular. Apresenta sua leitura da alienação, no contexto colonial, sempre ancorado em experiências vividas. Vejamos como ele a apresenta.

Para Fanon, todo sujeito vem ao mundo sob certas condições. O Negro está marcado, desde o início, pelo fato de não ser reconhecido como homem, e, sim, como mercadoria. Chega ao mundo buscando descobrir, aí, um sentido e descobre-se um objeto em meio a outros objetos (Fanon, F. 2008, p. 103).

Onde situar-se? Onde meter-se? Enclausurado nessa objetividade esmagadora, o Negro implora ao Outro seu olhar libertador, posto que é próprio do homem “ser-para-o-outro”. Busca confirmar seu ser diante do Outro, pois o que ele é passa pelo crivo desse Outro (Fanon, F. 2008, p. 103, 106).

Não tarda, no entanto, a descoberta de que, para ele, há apenas um destino, e ele é branco (Fanon, F. 2008, p. 28). Ele tem de situar-se diante de dois sistemas de referência. Por um lado, teve seus costumes e tradições abolidos, porque estavam em contradição com a civilização, que lhe foi imposta. Por outro lado, assumiram a cultura e a língua, apresentadas como ideais, e que mesmo aprendidas pelo Negro, não serão jamais vistas como algo que lhes pertence legitimamente (Fanon, F. 2008, p. 104). .

Fanon entende que existe, na posse da linguagem, uma extraordinária potencia. Falar é existir para o Outro, empregando certa sintaxe, mas é sobretudo assumir uma cultura e suportar o peso de uma civilização. Falar é possuir o mundo que essa linguagem expressa e que lhe é implícito, já que todo idioma veicula um modo de pensar. (FANON, F. 2008, p. 34, 41).

Segundo o autor, o antilhano ou o argelino se aproximará mais do homem verdadeiro, na medida em que adotar a língua francesa. Quanto mais assimila os valores culturais da metrópole, mais o colonizado escapa de sua própria selva. Quanto mais rejeita sua negridão, mais branco se torna. Trata-se, portanto, de uma tomada de posição do sujeito diante da nação civilizadora, cujo correlato é o sepultamento de sua originalidade (FANON, F. 2008, p. 39).

Tanto na Argélia, quanto na Martinica, a língua francesa foi sobreposta sobre outras línguas existentes: as línguas dos índios, as línguas africanas e, também, sobre o árabe. O francês foi a língua usada na administração dos negócios coloniais, associada ao poder do capital, foi a língua, que permitiu o acesso a certa cultura e meio sociais, através de escolas e universidades.

Fanon aponta para a alienação psíquica operada, quando o Negro usa a língua do Outro, a língua do colonizador e adota seus costumes. Em sua opinião, neste caso, o Negro tem a falsa sensação de que ao dominar a língua do colonizador, seu mundo se abre, ao mesmo tempo em que as fronteiras entre ambos perdem importância (FANON, F. 2008, p. 36, 37).

Haveria, também, outra dimensão da alienação reconhecida no mimetismo do Negro em relação ao branco. Fanon conta que os Negros, que viveram na França, voltam à terra natal, usando as roupas da metrópole e gesticulando como franceses. Menciona, também, o valor atribuído pelos Negros ao branqueamento da raça (Fanon, F. 2008, p. 57).

Assim, por meio da língua, do vestuário, da cor e dos gestos, o branco apresenta-se como um modelo aos olhos do Negro, no qual ele deve se alienar, se quiser ser considerado humano. A alienação, é importante dizer, é via de mão dupla. Há a alienação dos Negros (mistificados) e a alienação de brancos, não menos alienados (mistificados e mistificadores). Eles avançam corpo a corpo, com a própria negrura e a própria brancura (Fanon, F. 2008, p. 43).

A questão é que essa espécie de alienação do Negro no Senhor, não os tornam iguais, não gera nenhum tipo de contrato social. Ao contrário, temos na relação colonial algo de imoral e irracional, na qual alguém entrega todos os seus bens, inclusive o corpo e a vida, a serviço do gozo do Outro.

Alguns dirão, que alienar-se no Outro, falar a língua do Outro, é o destino de todo homem, e não um privilégio de Negros. Aqui, vale ressaltar, que Fanon trata da dialética do reconhecimento entre um homem “coisificado” e o Outro. A escravidão, a colonização, e o discurso do capitalismo introduzem um diferencial, na medida em que o Negro não está na posição de sujeito, e sim, na de objeto explorado, corpo estrangeiro no mundo, cuja vida é segregada e restringida em sua liberdade de escolhas. A questão que se apresenta a Fanon é a de fazer surgir um sujeito, nessa dialética, em que o homem, em sua relação com a alteridade, é incapaz de se auto-produzir.

Além do mais, trata-se de uma dialética enrijecida e pouco flexível, reforçada pela compartimentação do mundo colonial, partido em dois, e habitado por espécies diferentes. E o que despedaça esse mundo é, primeiramente, o fato de pertencer ou não a uma determinada raça (Fanon, F. 2002, p. 42).

Nas colônias, a zona habitada por colonizados não é complementar à zona habitada por colonos. As duas zonas se opõem, regidas pela lógica de exclusão recíproca. Nas colônias, temos as cidades e escolas europeias e cidades e escolas dos colonizados (Fanon, F. 2002, p. 41, 42).

A repartição reitera, continuamente, a ideia de que o Negro, por mais que se esforce, não é um semelhante. Por isso, pode-se afirmar, que a violência colonial não tem apenas como objetivo manter os Negros assujeitados. Ela busca, também, desumanizá-los, ao liquidar suas tradições, sua língua, sua cultura, sem lhes dar, em contrapartida, a cultura do colonizador.

No arranjo colonial, o mundo do colono rejeita, com chicotes ou fuzis, ao mesmo tempo que causa inveja. O colonizado sonha ocupar o lugar do colono (Fanon, F. 2002, p. 54). Instaura-se entre ambos um espelho instável, em que ora se privilegia a identificação ao ideal (eu sou o outro), ora se privilegia a rivalidade e a agressividade, ao introduzir a perspectiva de que só posso existir com o desaparecimento de meu vizinho (ou eu ou o outro).

Há uma tensão constante a sustentar tal divisão. O Negro deve aprender a se conter, a permanecer em seu lugar, e a reconhecer seus limites. A agressão, de acordo com Sartre, é interiorizada como terror nos colonizados. Estes experimentam medo diante dos meios de repressão, mas também diante de seu próprio furor. Permanecem bloqueados entre as armas e o chicote e as próprias pulsões agressivas, e desejos de morte (Sartre, J.P. 1961, p.26).

Nas colônias escravocratas, na dança, na capoeira, nos tambores, na macumba e nas possessões, a violência, se dissipa em transe. Nos terreiros, os colonizados expressam de forma deslocada e substitutiva, o que não podem dizer, e as mortes que não ousam cometer.

Na Argélia, a fúria antes de explodir como guerra contra o colono francês, girou e devastou por algum tempo, os próprios oprimidos. A tensão muscular do colonizado liberou-se, periodicamente, em explosões sanguinárias, nas lutas tribais, e entre os próprios argelinos (Fanon, F. 2002, p. 55).

Na visão de Sartre, eis a situação impossível em que se encontra o colonizado: se eu resisto, os soldados atiram e sou um homem morto. Se cedo e me degrado, já não sou mais um homem (Sartre, J-P. 1961, p.21).

Ao Negro cabe decidir que destino dar a essa violência experimentada à flor da pele. A ele cabe posicionar-se diante do colonizador: sujeitar-se às regras de dominação e ao ideal imposto, sabendo-se sempre meio branco e meio homem, ou romper com a dialética aprisionadora, para instituir-se como sujeito de fato e de direito? A escolha envolve as vicissitudes tomadas pela violência, já presente na situação colonial, a qual pode, eventualmente, tornar-se liberadora.

Muitos reprovaram a insistência de Fanon em falar sobre a violência. Muitos leram suas passagens sobre o tema como uma incitação à rebelião do mundo colonial, o que consideramos uma leitura simplificadora. Acreditamos, que a violência, em Fanon, não deve ser entendida no sentido estrito do levante, da revolução, e do ataque dirigido ao colonizador

De toda maneira, ela é um dos meios indicados, pelo autor, em Condenados da Terra, para a transformação do mundo colonial. Ele não desenvolve de forma sistemática tal indicação, o que nos impulsiona a tecer uma reflexão sobre o estatuto a ser dado a essa violência.

Partimos, pois, deste ponto: para Fanon, a decolonização é sempre um fenômeno violento, na medida em que implica na substituição absoluta e sem transição, de uma espécie de homens, por outra espécie de homens (Fanon, F. 2002, p. 39).

A violência que presidiu o arranjo do mundo colonial e organizou as trocas sociais pode ser assumida pelos colonizados, no momento em que estes decidem se tornar, eles mesmos, a história em atos (Fanon, F. 2002, p. 44).

Mbembe sugere que as elaborações de Fanon sobre a violência partem das questões, por ele formuladas: Como torná-la um gesto emancipador? Como transformá-la em uma fala política plena? (Mbembe, A. 2015, p. 240).

A política entendida, aqui, como um ato, cuja violência é capaz de reorganizar as coordenadas simbólicas do Outro, que circunscrevem as posições dos sujeitos. Nas palavras de Fanon, na decolonização, trata-se de mudar a ordem do mundo e de fazer surgir novos homens, através de um programa de desordem absoluta (Fanon, F. 2002, p. 40).

A liberação promovida é bilateral e afeta tanto o colonizado quanto o colonizador. O Negro deve introduzir a luta em dois planos, de modo a tocar tanto sua posição, quanto a do Senhor, pois a liberação unilateral seria imperfeita. Isto é, a transformação implica em modificar relações patológicas, mas, também, em devolver a humanidade e a liberdade a ambos, aprisionados que estão em certa lógica de mundo (FANON, F. 2008, p. 28).

Dois aspectos da violência, em Fanon, merecem ser melhor explicitados, em um próximo artigo. O primeiro diz respeito ao fato de que, para o autor, existe algo que pode ser engendrado e gerado, a partir da violência do processo decolonial. Ele não toma a violência apenas em sua vertente aniquiladora, mas também em sua vertente constituinte. Afirma que, por meio dela, pode-se produzir novo arranjo de mundo e de relações entre sujeito e Outro. O segundo diz respeito às mutações subjetivas promovidas pela decolonização. Quando fala da violência, em sua potência liberadora, o autor não pensa apenas na extinção de relações econômicas de exploração, mas também, na subversão da alienação, tomada como situação psicopatológica. Para Fanon, é essencial que ocorra uma modificação do ser, quando a “coisa” colonizada torna-se homem, no processo mesmo em que se libera (FANON, F. 2002, p. 40).

É preciso encontrar soluções no plano objetivo e no plano subjetivo. Ao atuar como psiquiatra, na situação colonial, Fanon reconheceu o papel relevante da clínica, na dissolução de anomalias afetivas e de complexos mórbidos, que torna possível a liberação dos Negros de si mesmos (FANON, F. 2008, p. 28, 29, 44).

Essas são algumas passagens da obra de Fanon, que permitem apreender a violência como algo que não seja exclusivamente físico, embora o corpo desempenhe um papel importante nos atos de liberação. A violência transformadora não está relacionada ao ressentimento, nem ao surgimento de impulsões selvagens, mas a um movimento radical de separação, que se interpõe ao de alienação, possibilitando a circunscrição de posições singulares, não determinadas por regras de regulação e segregação do mundo colonial.

Trata-se de violência situada num registro distinto do voltar-se contra o outro, ou do voltar-se contra si mesmo. A violência da decolonização, segundo Mbembe, visa destruir o que destrói, o que cega, e provoca medo e cólera. Está relacionada ao novo começo, à fundação de novas estruturas, à recomposição do homem em um registro possível de si mesmo. E esse processo torna-se viável, quando o Negro toma a si mesmo como um morto em potencial.

A figura da morte conta, nesse empreendimento, na medida em que seu enfrentamento iguala vidas de Negros e Senhores. Para Mbembe, a questão para o Negro é dar sentido à sua morte, mais do que à sua vida. A violência trabalhada, na cadeia mortífera, pelo sangue e pela cólera, deve se impor como recusa violenta à violência imposta no mundo colonial. Trata-se, diz Mbembe, de “fazer surgir a vida do cadáver em decomposição do colono” (Mbembe, A. 2015, p. 240).

A distribuição da morte abriria a porta ao exercício da liberdade, da responsabilidade e do ato de se nomear. Possibilitaria ao colono tornar-se homem em meio a outros homens e transportar-se a um lugar diferente do que lhe foi consignado pela raça. A este gigantesco labor Fanon chamou de “saída da grande noite”, “libertação”, “renascimento”, “restituição”, “erguer o homem novo, livre do fardo da raça e desembaraçado dos atributos da coisa”.

O autor encerra o livro Pele negra, máscaras brancas com palavras que soam como poesia, ao exprimir, como Negro, o que considera uma resolução para os impasses encontrados, nas relações dialéticas entre Escravo e Senhor. Nada melhor do que fazer Fanon falar por si mesmo, na conclusão deste texto.

“Eu, preto, não tenho o direito de procurar saber em que minha raça é superior ou inferior a uma outra raça.

Eu, preto, não tenho o direito de pretender a cristalização no branco, de uma culpa em relação ao passado de minha raça.

Eu, preto, não tenho o direito de ir atrás dos meios que me permitiriam pisotear o orgulho do antigo senhor.

Não tenho nem o direito nem o dever de exigir reparação para meus ancestrais domesticados.

Não existe missão negra. Não existe fardo branco.

Desperto um dia em um mundo onde as coisas machucam; um mundo onde exigem que eu lute; um mundo onde sempre estão em jogo o aniquilamento ou a vitória (...)

O que há é minha vida, presa na armadilha da existência. Há minha liberdade, que me devolve a mim próprio (...)

Se o branco contesta minha humanidade, eu mostrarei, fazendo pesar sobre sua vida todo meu peso de homem (...)

 

[1] Psicóloga Hospital das Clínicas / UFMG

Doutora em Teoria Psicanalítica pela UFRJ

Bibliografia

 

CHERKI, A. Préface. In: Les damnés de la terre. Paris: La Découverte, 2002

FANON, FRANTZ. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008.

FANON, FRANTZ. Les damnés de la terre. Paris: La Découverte, 2002

KOJÈVE. A. Introduction à la lecture de Hegel. Paris: Gallimard, 1947.

MBEMBE, A. Critique de la raison nègre. Paris: La Découverte, 2013, 2015.

SARTRE, J-P. Préface. In: Les damnés de la terre. Paris: La Découverte, 1961/2002

VERGÈS, FRANÇOISE. L`Homme prédateur. Paris: Albin Michel, 2011

SARTRE, J-P. L’être et le néant. Paris: Gallimard, 1943.

 

 

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