Neurose narcísica e psicose ordinária:

uma leitura do caso do Homem dos Lobos

 

Marcelo Bizzotto Pinto

 

O cuidado de Freud ao estabelecer um diagnóstico diferencial é próprio de sua orientação clínica e epistêmica. Freud não se atém à fenomenologia enquanto orientadora do diagnóstico. Se há algo inaugural no pensamento psicanalítico, é o fato de a escuta do analista ser seu principal instrumento de trabalho. Isso coloca em perspectiva o que o sujeito diz. É por meio do dizer e do dito que se delimita o campo de investigação na clínica psicanalítica. Isso posto, podemos inferir que as manifestações sintomáticas apresentadas pelo paciente não possuem nenhum valor diagnóstico se não estiverem articuladas ao dizer. O destaque é a elaboração que o sujeito constrói em análise acerca de seu sofrimento, e não a manifestação dos sintomas. Portanto, a estrutura clínica e seu diagnóstico são intrínsecos ao discurso do sujeito do inconsciente.

As experiências traumáticas que em Freud definem o lugar do sujeito assumem em Lacan o estatuto de um trauma oriundo da inserção do sujeito na linguagem. Se há alguma predisposição ao adoecimento psíquico, isso não se dá isoladamente. Torna-se necessário considerar os fatores externos inerentes aos efeitos da língua, à qual todos estariam submetidos. É por isso que a dimensão estrutural só pode ser definida pelo modo como cada um responde ao corte radical do efeito significante sobre o corpo.

Dessa forma, a clínica psicanalítica permite a realização de um diagnóstico de psicose mesmo na ausência de fenômenos classicamente psicóticos. O operador clínico que permite estabelecer o diagnóstico estrutural em psicanálise é a transferência. É a partir do lugar que o analista ocupa na fala do paciente que se pode inferir algo a respeito da posição subjetiva do sujeito. Se a estrutura é dada pelo discurso, que se dirige sempre ao outro, a análise é o momento em que algo da estrutura pode ser inferido sob transferência.

Foi a partir da transferência que Freud pôde distinguir, em determinado momento de sua teoria, a psicose das neuroses de transferências. Freud fez ressalvas com relação à transferência nos casos de psicose e aproximou a psicose do narcisismo, como veremos adiante. Ele descreveu os pacientes que sofriam de neuroses narcísicas como pacientes que rejeitam o médico não com hostilidade, mas com indiferença. A libido, nesses casos, estaria sempre voltada para o ego, e não dirigida ao outro.

Por esse motivo, tampouco podem ser influenciados pelo médico o que este lhes diz, deixa-os frios, não os impressiona; consequentemente, o mecanismo de cura que efetuamos com outras pessoas – a revivescência do conflito patogênico e a superação da resistência devida à regressão – neles não pode ser executado. Permanecem como são. Amiúde, já empreenderam tentativas de recuperação, por sua própria conta, que conduziram a resultados patológicos. Isto não podemos modificar de forma alguma.[1]

A questão da indiferença na relação com o médico será pensada na perspectiva do abandono (aufgeben), marcada pelo afastamento do sujeito do mundo exterior. O desligamento (abwendung) da libido dirigida aos interesses externos que se verifica nas neuroses narcísicas torna dificultoso o diagnóstico e, consequentemente, o tratamento. São pacientes que não se deixam influenciar pelo que o psicanalista diz. Observa-se que, nesses casos, como é impossível modificar o funcionamento da transferência, a cura é algo a ser buscado pelo próprio paciente, conduzindo a resultados patológicos.

Essa constatação feita a partir da clínica mudou a formulação de Freud com relação ao diagnóstico. Tal mudança deveu-se também à proximidade entre Freud e os autores da escola suíça de psiquiatria, como Bleuler e Jung. Freud se valeu dos conceitos de regressão, fixação e autoerotismo para descrever a esquizofrenia e o autismo (derivado do autoerotismo), diferenciando-os das neuroses de transferência. Esses sujeitos foram categorizados por Freud como neuróticos narcísicos.

Para Freud, as neuroses narcísicas seriam equivalentes às psicoses. Ele as concebia como categoria clínica cuja gênese psicopatológica se encontraria na perturbação do eu. Seu caráter patológico consistiria na permanência das pulsões sexuais, que não eram investidas nos objetos, no eu. A prevalência do investimento libidinal desse tipo passa despercebida e “só se revela de modo inequívoco quando do adoecimento”.[2] Freud diferencia as neuroses narcísicas da histeria e da obsessão porque, nas primeiras, “a libido que se tornou narcísica não consegue retornar aos objetos, e essa interferência na mobilidade da libido certamente se torna patogênica”.[3]

O bloqueio do retorno libidinal aos objetos externos está relacionado ao processo de recalque, embora seu resultado seja completamente distinto nas neuroses de transferência. Na neurose de transferência, a barreira da resistência pode ser parcialmente abalada por meio do processo analítico. Nas neuroses narcísicas, a resistência é intransponível, e isso impõe dificuldades ao analista que muitas vezes precisa substituir os métodos da psicanálise por outros, mesmo sabendo do risco de essa substituição não ser bem-sucedida. Se, na histeria, é possível condensar identificações, na psicose, há uma divisão das identificações, que retornam na forma de uma reação paranoica.

Portanto, o reconhecimento da diferença entre as neuroses narcísicas e as demais neuroses só é explicitamente notável quando a libido narcísica se esforça para se conectar novamente aos objetos, ou seja, às representações de objeto. Essa conexão se dá de forma ruidosa quando se trata de uma neurose narcísica. Nesse caso, o esforço alcança parcialmente os objetos externos, como se agarrasse “apenas suas sombras – quero dizer, as representações verbais pertencentes aos objetos”.[4] Freud não explicita o que seriam essas representações verbais, mas é possível fazer uma associação com a vivência alucinatória verbal de Schreber.

Conforme indica Lacan, a dimensão do recalcado na psicose não passa pelo crivo do simbólico. O sujeito parece, portanto, estar fixado, cristalizado em suas identificações imaginárias, que retornam sem barreira, a céu aberto, no desencadeamento de uma psicose. O narcisismo em Schreber foi, até certo ponto, estabilizador da sua relação com o pai. Em certo momento da vida, confrontado com a instância da lei, algo da posição passiva com relação ao pai vacilou em Schreber. Nesse ponto, no momento em que Deus – representante aqui da figura substitutiva paterna – é esvaziado de subjetividade, ele se torna um objeto perseguidor, e não mais de apoio.

Se o narcisismo em Schreber anuncia a dissolução imaginária colmatada pelo delírio de grandeza de cunho místico-religioso, em o Homem dos Lobos não verificamos essa forma de apresentação delirante, mas encontramos o narcisismo como identificação ao pai. Nesse caso, ele serve como suporte para a constituição da neurose do paciente. O autor ressalta, a partir do relato do paciente em análise, que sua infância foi marcada pela rejeição de uma babá, que havia sido objeto de amor do paciente durante seus primeiros anos de vida. Depois da rejeição, o Homem dos Lobos, ainda criança, fora levado a contemplar o pai como objeto sexual substituto.

Tal como Schreber, o Homem dos Lobos adotava uma posição passiva com relação ao pai até sua adolescência, quando rompeu de vez os laços com ele. Entretanto, diferentemente de Schreber, no Homem dos Lobos, não houve desencadeamento da psicose, processo que seria marcado pelo despedaçamento do espelho, que constitui a barreira especular na relação imaginária. Embora Freud tenha tratado o Homem dos Lobos como neurótico, muitos autores discordaram desse diagnóstico.

O caso Homem dos Lobos

O caso de Sergei Pankejeff, vulgo Homem dos Lobos, foi publicado em 1918, sob o título de Uma neurose infantil. A escolha de Freud por esse título é intrigante. Afinal, se toda neurose é de caráter infantil, por que escolher esse caso como exemplar de uma neurose que se instalou na infância? Sabemos que para a psicanálise o sujeito se constitui desde seu nascimento, oriundo do trauma instaurado nos primeiros anos de vida. Além disso, na análise de um adulto, o caráter infantil, como vimos, é constantemente reimpresso, atualizado sob transferência. Nesse sentido, Freud pôde presumir tratar o jovem russo[5] como um caso de neurose constituída na infância, conforme o relato do paciente. Freud localiza a constituição da neurose da seguinte forma:

Tomando o fato como um ponto fixo, podemos dividir o período da sua infância, com o qual estamos lidando, em duas fases: uma primeira fase de mau comportamento e perversidade, desde a sua sedução, aos três anos e três meses, até o seu quarto aniversário; e uma fase subsequente, mais longa, na qual predominaram os sinais de neurose. O evento que torna possível essa divisão não foi, contudo, um trauma externo, e sim um sonho, do qual acordou em estado de ansiedade.[6]

O evento a que Freud se refere é o sonho que o paciente tivera quando criança, em que ele via uma árvore com lobos. Os lobos, no suposto sonho do paciente, pareciam olhar fixamente para ele. Freud analisa a dimensão do olhar nesse sonho e afirma que o olhar atento que o paciente atribuiu aos lobos deveria ser atribuído a ele. Freud notou, curiosamente, que a imagem observada pelo paciente no sonho era fixa, imóvel. Os lobos pareciam não se mexer, mas essa fixidez da imagem no sonho foi fundamental para a constituição de sua fobia. O significado da imobilidade dos lobos revelou para Freud o mais violento movimento: “Ele acordou de repente e viu à sua frente uma cena de movimento violento, para a qual olhou tensa e atentamente”.[7]

Dois pontos chamam nossa atenção nesse relato: o primeiro é o fato de que os lobos apareceram no momento do despertar, e não exatamente durante o sono; e o segundo é o fato de que a imagem dos lobos sonhada pelo paciente era exatamente igual a uma figura presente em um livro que fizera parte de sua infância, o que coloca em questão o estatuto do sonho e o modo particular de sua apresentação para esse sujeito. Se considerarmos o sonho como uma operação do inconsciente e, por isso, passível de ser deslocado pela associação livre em uma análise, no Homem dos Lobos, é a dimensão imaginária do sonho que conta. Podemos equipará-lo a uma imagem estática e cristalizada, inerte a qualquer tipo de deslocamento na cadeia de significantes. A inércia do campo de significações impede que se abra uma fenda no invólucro imaginário do sonho, que retorna de forma ruidosa para Pankejeff:

A operação do sonho, que o colocou sob influência da cena primária, podia tê-lo levado a fazer o avanço no sentido da organização genital e transformar o masoquismo em relação ao pai em uma atitude feminina, ou seja, em homossexualismo. O sonho, contudo, não provocou esse avanço, terminou em estado de ansiedade.[8]

O conteúdo da cena primária desse sujeito é uma cena de relação sexual entre os pais do menino, embora Freud tivesse observado que o sujeito “[...] não apenas imaginou inconscientemente a cena primária como forjou a alteração no seu caráter, o medo ao lobo [...]”.[9] As contradições encontradas pelo psicanalista fizeram com que ele questionasse os efeitos da análise baseada em um diagnóstico de neurose infantil, inferindo inclusive que a história contada pelo paciente poderia ser uma sequência de absurdos, do princípio ao fim. Essa observação já havia sido feita por Freud anteriormente com relação às fantasias do paciente, que seriam tentativas de apagar “[...] a lembrança de um evento que mais tarde pareceu ofensivo à autoestima masculina [...] e atingiram o objetivo colocando uma inversão imaginária e desejável em lugar da verdade histórica”.[10]

Notemos que, durante toda a exposição do caso, a dimensão do registro do imaginário assume importância significativa para o Homem dos Lobos. Questionamos até que ponto a inflação do imaginário estaria de acordo com a estrutura da neurose. Lembramos que, para a psicanálise, o estatuto de realidade deve ser tomado não sob o viés empírico, mas como realidade estruturalmente fantasiosa, erigida como resposta ao real da castração. No caso em questão, a fobia dos lobos seria uma defesa contra a ameaça da castração. A dimensão fantasiosa da fobia estaria, aqui, representada a partir da regressão da libido sexual, conforme veremos:

Ele diz que abandonou a masturbação pouco depois da recusa e ameaça da sua Nanya. Sua vida sexual, portanto, que estava começando a surgir sob a influência da zona genital, cedeu ante um obstáculo externo e foi, por influência deste, lançada de volta a uma fase anterior de organização pré-genital.[11]

Nanya, a babá, a quem ele dirigiu suas demandas na infância, foi o primeiro amor do paciente. Certo dia, Nanya repreendeu o Homem dos Lobos por ele estar se masturbando em sua presença. O gesto da babá pôde ser interpretado posteriormente, em análise, como ameaça de castração. A partir dessa ameaça, Pankejeff se tornou um menino irritável, atormentador. Conforme formulou Freud, essa característica de sua personalidade revela seu caráter anal-sádico, reflexo da regressão da libido para uma fase anterior.

Quando é recalcada, a libido fálica[12] deixa um resto não fálico e, então, o sujeito se depara com o rochedo da castração. Em um primeiro momento, Freud supôs que a regressão da libido nesse paciente não seria narcísica como ocorre nas psicoses, pois a relação de objeto teria sido mantida. Na época em que publicou o caso, Freud considerava que a regressão da libido nesse sujeito adquiria contornos neuróticos, uma vez que ele conservava a relação de objeto na fantasia de ser devorado pelos lobos, representantes do pai. A identificação ao pai seria passiva. Trata-se, aqui, de um impulso de ser amado pelo pai no sentido erótico genital. O lobo, portanto, encarna a figura do pai devorador. A crença de ser devorado é real. O que Freud não previa é que a regressão fálica para a libido anal não traria para o Homem dos Lobos, de fato, nenhuma marca de castração. O retorno da libido ao corpo se apresentou sem limites, e o medo do pai se tornou o fator dominante em seu adoecimento.

Os anos que se seguiram foram marcados pelo que Freud denominou de difícil tarefa de se desligar do pai, já que se tratava de um pai idealizado. A idealização, diferentemente da sublimação, concerne ao objeto que é aumentado, supervalorizado. Se, na sublimação, a natureza do objeto se modifica, na idealização, essa mudança não ocorre. A idealização está no plano do imaginário e decorre da prevalência do eu ideal sobre o ideal de eu. Parece-nos que Freud localizava essa difícil travessia entre a idealização do pai e sua transcendência como um problema típico da neurose. Essa travessia edipiana acarretaria certa perda imaginária narcísica e, na mesma medida, uma renúncia pulsional. Mas será que estaríamos lidando, nesse caso, com a rivalidade imaginária do filho ao pai, própria de uma neurose, ou seria essa idealização de outra ordem?

O próprio Freud parecia não estar seguro de que se tratava de uma neurose. Essa discussão foi retomada por ele em 1926, ao comparar o caso de fobia do Homem dos Lobos com o caso da fobia de cavalos do pequeno Hans. Somente sobre Hans podemos afirmar, escreve Freud, que, de fato, ele foi “um menino normal quanto àquilo que se denomina um complexo edipiano ‘positivo’”.[13] Freud não afirma nesse momento que o caso do Homem dos Lobos é uma psicose, mas, sempre que o compara ao caso Hans, reforça que o segundo é menos ruidoso e menos complicado que o primeiro. Algo no Homem dos Lobos, portanto, se apresentava como uma estranheza frente ao que se esperaria de um “desenvolvimento normal da neurose”, a partir do Édipo.

Em 1937, o autor admitiu que a relação entre o Homem dos Lobos e seu pai teria um caráter narcísico, marcada pela rejeição (Verwerfung) da identificação edipiana com o pai. Sabemos, a partir de Lacan, que esse modo específico de defesa concerne à psicose. O ponto de estranheza, de externalidade ao pai aparece no modo como o Homem dos Lobos ataca a religião, que, segundo Freud, o protegia da ameaça do isolamento: “Atacava a religião por causa do afrouxamento implícito nessa relação entre pai e filho”.[14] A Verwerfung aparece também no laço transferencial com o analista. Freud denomina a rejeição como resistência intensa à transferência, destacada aqui como uma forma de recalcamento que incide sobre a virilidade no Homem dos Lobos.

O tratamento do jovem russo com Freud foi marcado por muitas idas e vindas e reviravoltas, deixando resíduos de uma transferência que não pôde ser bem manejada pelo psicanalista. Em 1926, o Homem dos Lobos desencadeia um episódio paranoico, evidenciando outra face do caso que, até então, estava encoberta. Não traremos à luz a discussão sobre o desencadeamento da psicose nesse caso.[15] Procuraremos, seguindo com Lacan, investigar os pontos em que a psicose do Homem dos Lobos se apresentava de maneira estruturada, ou seja, antes de seu desencadeamento, fora de crise. Alguns índices forclusivos estavam presentes desde os primeiros anos de vida desse paciente, por exemplo, a alucinação do sexto dedo.

Para discorrer sobre o assunto, retomaremos um ponto do tratamento de Sergei Pankejeff que se apresentou como um imbróglio para Freud, a saber, a transferência. A seguir, um comentário de Freud ilustra bem a questão da transferência de seu paciente:

Alguns dos meus leitores inclinar-se-ão, possivelmente, a pensar que, com hipóteses como estas, eu estava começando, pela primeira vez, a aproximar-me da compreensão do caso; mas o paciente olhou para mim sem nada entender e com um certo desdém quando coloquei diante dele essa opinião, e jamais reagiu a ela. Já afirmei meus próprios argumentos contra qualquer racionalização assim, no ponto apropriado da exposição.[16]

Na tentativa de balizar os impasses insolúveis do laço transferencial, Freud encaminhou o caso a Ruth Brunswick, que diagnosticou o Homem dos Lobos como um caso de paranoia hipocondríaca. É curioso notar, quando retomamos mais uma vez o estudo de Freud sobre o narcisismo, que a hipocondria aponta, em certa medida, para a psicose, pois é consequência do fracasso da função de introversão da libido direcionada às formações da fantasia, que se dá no processo de desligamento da libido sexual e de retorno da libido ao corpo. Freud concebeu a hipocondria na parafrenia como “[...] análoga ao medo (Angst) encontrado nas neuroses de transferência”.[17] Freud segue seu comentário, enfatizando que o medo na neurose poderia ser dissolvido por meio do trabalho psíquico. Já nas parafrenias, essa defesa ocorreria pela tentativa de restituição, causando manifestações mais notáveis da doença.

Freud postula que a retirada parcial da libido que estava aderida aos objetos é um fenômeno que ocorre na parafrenia e poderia ser dividido em três grupos distintos:

(1) Manifestações de alguma normalidade ou de neurose ainda remanescentes (manifestações residuais observáveis na parafrenia); (2) manifestações do processo de adoecimento (retirada da libido dos objetos, incluindo o delírio de grandeza, a hipocondria, a perturbação afetiva e todas as regressões); (3) manifestações da tentativa de restituição, por meio de novo esforço de anexar a libido aos objetos, de modo análogo ao que ocorre numa histeria (observável no caso da dementia precox, a parafrenia propriamente dita) ou de modo análogo ao que acontece numa neurose compulsiva (observável no caso de uma paranoia).[18]

Diante dessa explanação, podemos supor que o diagnóstico estabelecido por Ruth Brunswick foi de certa forma fiel à concepção freudiana, respaldado a partir dos modos de restituição da libido no sujeito psicótico por meio da hipocondria. A dimensão do desligamento como desinvestimento libidinal abarca, portanto, não somente a dimensão do laço, mas também do corpo, como no caso da hipocondria apresentada pelo Homem dos Lobos. No que se refere ao desligamento do laço social, podemos destacar, nesse caso, o estatuto da transferência, que aparece de forma conturbada. Podemos afirmar que sempre haverá um resto transferencial não eliminável, mesmo nas neuroses. Parece-nos que, nesse caso, se falássemos em uma neurose nos moldes freudianos, tratar-se-ia de uma neurose narcísica, marcada pelo conflito entre o eu e o supereu.

Vejamos como Freud apresenta os primeiros encontros com o Homem dos Lobos:

O paciente a que me refiro aqui permaneceu muito tempo inexpugnavelmente entrincheirado por trás de uma atitude de amável apatia. Escutava, compreendia e permanecia inabordável. Sua indiscutível inteligência estava, assim, separada das forças instintuais que governam seu comportamento nas poucas relações vitais que lhe restavam. Exigiu uma longa educação induzi-lo a assumir uma parcela independente no trabalho e quando, como resultado desse esforço, começou pela primeira vez a sentir alívio, desistiu imediatamente de trabalhar, com o objetivo de evitar quaisquer outras mudanças e de permanecer confortavelmente na situação que fora assim estabelecida. Sua grande retração diante de uma existência autossuficiente era tão grande que excedia todas as aflições da sua doença.[19]

A partir dessa descrição, podemos inferir que, de fato, algo no modo como Sergei Pankejeff se posicionava frente ao Outro evoca uma estranheza no que concerne aos laços estabelecidos. Outros pontos de estranheza aparecem no caso, algo como um embotamento afetivo quando, por exemplo, do falecimento da irmã. Freud descreve assim a reação do paciente:

Quando chegou a notícia da morte da irmã, conforme relatou o paciente, ele mal sentiu qualquer sinal de dor. Teve que se forçar para mostrar sinais de tristeza, e pode rejubilar-se um tanto friamente por haver se tornado então o único herdeiro da propriedade. Quanto isso ocorreu, já sofria há vários anos da sua doença mais recente. Mas devo confessar que esse dado da informação introduziu, durante algum tempo, alguma incerteza ao meu diagnóstico do caso.[20]

Estamos novamente diante da indagação de Freud a respeito do diagnóstico do paciente. A desconexão entre o afeto e a mensagem evoca algo da psicose, algo como uma defesa ao modo autístico. O afeto seria desconectado da mensagem em razão de ser insuportável para o paciente. De uma maneira um pouco menos ruidosa, mas ainda assim mortífera, esse sujeito nos revela, pouco a pouco, que não é um neurótico. Nesse ponto, percebemos a dificuldade de Freud para conduzir o caso, muito embora ele tenha conseguido, à sua maneira, conduzi-lo com certo êxito, ao evitar, quem sabe, o desencadeamento da psicose de seu paciente naquele primeiro momento.

Desencadeamento e desligamento nas psicoses

O desencadeamento é o momento de concluir, parte de uma lógica temporal sincrônica do encontro com Um-pai. Esse termo foi utilizado por Lacan para designar “nada mais nada menos que um pai real, não forçosamente, em absoluto, o pai do sujeito, mas Um-pai”.[21] Em uma psicose desencadeada, esse Um-pai “[...] vem em um lugar onde o sujeito não pôde chamá-lo antes [...]”[22] e pode ser localizado no início da psicose, a partir de uma situação específica na conjuntura dramática da história de vida do sujeito. Os efeitos avassaladores desse encontro com Um-pai revelam que toda a significação fálica parece ter sido abolida no momento em que o sujeito se depara com o gozo do Outro. O sujeito fica impedido de simbolizar e de encontrar algum modo de subjetivação para que possa lidar com os abismos dos fenômenos elementares que se apresentam pela defasagem do simbólico.

A falta do significante do Nome-do-Pai, instaurador da ordem simbólica, infla a instância do imaginário, que se apresenta de modo invasivo como podemos verificar no caso do presidente Schreber. Perplexo diante da impossibilidade de se manter à distância, de se afastar de seu reflexo no outro, assistimos a uma “importante dissolução do outro enquanto identidade”.[23] A noção de identidade na relação imaginária estabelecida por Schreber se apresenta de forma conturbada e só encontra o seu respaldo de afirmação e certeza no discurso delirante. A identidade imaginária do outro está “[...] profundamente em relação com a possibilidade de uma fragmentação, de um despedaçamento”.[24]

O despedaçamento da identificação imaginária na psicose cede à incidência cruel e avassaladora do real. A partir desse momento, a psicose se desencadeia, dando curso à produção imaginária incessante, própria do delírio. Freud explica o delírio como uma regressão narcísica da libido, a partir de sua desobjetalização. Lacan localiza esse ponto em Schreber a partir do delírio de grandeza de ser a mulher de Deus. Essa elaboração de Lacan suscita algumas questões, das quais se destaca a possibilidade da formação de uma estrutura psicótica sem que a fragmentação imaginária se concretize por completo, culminando numa ruptura radical com a realidade, com o mundo externo. O que encontramos no caso do Homem dos Lobos, por exemplo, não são os efeitos avassaladores da forclusão, mas a predominância do campo do imaginário, sem que haja o encontro com Um-Pai. Nota-se, aqui, a incredulidade do Outro, em termos de díade pai-filho, não de triangulação edipiana.

Ao retomar a noção de narcisismo em Freud ([1914] 2004), constatamos que as duas principais características da psicose (parafrenia), no que se refere ao narcisismo, seriam a retirada da libido objetal sem uma posterior substituição por outros objetos de interesses na fantasia e o delírio de grandeza. Em Schreber, a segunda característica é a mais evidente. E no caso do Homem dos Lobos? Poderíamos inferir a prevalência do desligamento da libido ao modo autoerótico?

Nos psicóticos ordinários, observa-se o que Miller chama de “[...] relação negativa do sujeito com sua identificação social”.[25] Trata-se de casos em que o sujeito parece estar desajustado na sociedade e se desliga das funções sociais. Ao se desconectar, o sujeito vive em um vazio, “[...] espécie de fosso que constitui misteriosamente uma barreira invisível”.[26] Para Miller, essa característica de desconexão é comumente encontrada na esquizofrenia. Esse modo milleriano de conceber a psicose se assemelha à construção de Freud ao caracterizar o desligamento da libido na parafrenia.

O que orienta a clínica das ditas psicoses ordinárias é a tentativa de identificar o que no sujeito faz “desligamento” em relação ao Outro. Se conseguirmos localizar os pontos de desligamento do sujeito ao Outro, conseguiremos rastrear o ponto em que antes a libido do sujeito se ligava, permitindo conduzir o tratamento a partir de um eventual “religamento”. “Essa noção, estritamente empírica, pode, portanto, revelar-se operatória para a direção do tratamento.”[27] Miller fez uso da expressão “desligamento na psicose” como relativo ao neodesencadeamento, pois aquilo de que o sujeito psicótico se desliga é a injunção paterna; ele se desliga do outro sexo. O desligamento (abwendung) é uma evitação do encontro com o outro sexo. Estamos na época dos gadgets, que, a serviço da tecnologia, facilitam a exclusão do laço e o empuxo ao gozo solitário.

No caso de uma psicose desencadeada, no encontro com Um-Pai, o que não apareceu no simbólico retorna no real. A partir dessa descrição, localizamos o desencadeamento como desfecho de uma psicose e o desligamento como modo de apresentação do sujeito psicótico em um momento anterior ao desencadeamento. Quando se trata de uma psicose, a libido sexual que foi desinvestida, desligada, ao ser conduzida novamente aos objetos, apresenta-se de forma delirante, como tentativa de restituição do eu.

Na clínica da psicose, portanto, é fundamental localizar o ponto de desencadeamento. Se o tratamento do psicótico visa sua estabilização, em última instância, quando localizamos o desencadeamento, sabemos qual o ponto nevrálgico do sujeito, em que situação ele corre perigo. Entretanto, não nos parece ser clinicamente efetivo esperar que o sujeito desencadeie uma psicose para inferirmos que houve desligamento. Devemos apreender o desligamento como um modo de defesa, como uma diretiva clínica importante para o tratamento desses sujeitos: fazê-los tomar distância do ponto de desencadeamento, a partir de um bom uso do desligamento. É nesse sentido que o desligamento funciona como bússola na psicose.

Atribuímos ao desligamento uma dupla perspectiva de compreensão: como um estado pré-psicótico e como um modo de suplência que se estabiliza a partir dos pontos de ligamento do sujeito à pulsão. Freud formulou a teoria da libido buscando articular a noção de sintoma ao modo como a libido se dispõe em cada sujeito, considerando sua mobilidade e seus pontos de fixação. Adiante, ele elenca o conceito de autoerotismo e narcisismo para localizar as psicoses. A noção freudiana de desligamento nos ajuda a compreender os pontos do caso do Homem dos Lobos que apontariam para o diagnóstico de psicose. É pelo modo como o desligamento incide no laço transferencial que o analista deve fazer um rastreamento da libido do sujeito para localizar esses pontos de desligamento, antes mesmo de o processo culminar em um desencadeamento.

 

Marcelo Bizzotto Pinto é psicanalista e mestre em psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais.
E-mail: <celobizz.pinto@gmail>.

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Referências

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Notas

[1] FREUD, (1916-1917) 1969, p. 448.

[2] FREUD, (1915) 2004, p. 151.

[3] FREUD, (1916-1917) 1976, p. 491.

[4] FREUD, (1916-1917) 1976, p. 492.

[5] O paciente tinha 23 anos quando iniciou o tratamento com Freud.

[6] FREUD, (1918) 1969, p. 42.

[7] FREUD, (1918) 1969, p. 52.

[8] FREUD, (1918) 1969, p. 84.

[9] FREUD, (1918) 1969, p. 76.

[10] FREUD, (1918) 1969, p. 34.

[11] FREUD, (1918) 1969, p. 40.

[12] AFLALO, 2011, p. 34.

[13] FREUD, (1925-1926) 1976, p. 129.

[14] FREUD, (1918) 1969, p. 86.

[15] Sobre esse ponto, é preciso destacar que a presença de índices forclusivos na psicose (como a alucinação) não significa que se trata de uma psicose desencadeada. Deve-se distinguir o aparecimento dos fenômenos psicóticos do desencadeamento.

[16] FREUD, (1918) 1969, p. 120.

[17] FREUD, (1914) 2004, p. 106.

[18] FREUD, (1914) 2004, p. 107.

[19] FREUD, (1918) 1969, p. 23.

[20] FREUD, (1918) 1969, p. 37-38.

[21] LACAN, (1958) 1998, p. 584.

[22] LACAN, (1958) 1998, p. 584.

[23] LACAN, (1956) 1985, p. 115.

[24] LACAN, (1956) 1985, p. 116.

[25] MILLER, 2012, p. 412.

[26] MILLER, 2012, p. 412.

[27] CASTANET; GEORGES, 2012, p. 22.

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