O trabalho de Doris Salcedo no luto
No ensaio intitulado “A Work in Mourning” (Um trabalho no luto), publicado no catálogo editado por Julie Rodrigues Widholm e Madeleine Grynsztejn da exposição Doris Salcedo, exibida pelo Museu de Arte Contemporânea de Chicago, em 2015, a artista colombiana Doris Salcedo fala de seu trabalho. Este parte da singularidade de uma experiência vivida por seres humanos atacados pela violência política, para seguir um caminho que apaga essa experiência. Para ela, condições selvagens e intoleráveis são impostas à nossa sociedade, exigindo "a absorção em massa da humanidade de sua própria brutalidade absoluta", o que reduz a morte de um indivíduo à sua insignificância máxima por meio da profanação:
Com cada vida que termina abruptamente nas mãos dos instrumentos prevalecentes de poder e capital, a destruição industrial de seres humanos, que perpetua ciclos de destruição emocional em expansão infinita, registra o fim mais profundamente cruel de um ser humano que a humanidade possivelmente pode conhecer.
O primeiro passo que a artista dá na produção de uma obra é se orientar para a vítima a quem dirige seu trabalho ‒ cuja experiência é um pré-requisito para a própria existência da obra ‒, mas mantendo, durante o processo, uma distância que deixe essa pessoa intocada, e a si mesma, esquecida. Seu trabalho é sobre a memória da experiência, que está sempre desaparecendo, não sobre experiências tiradas da vida, acontecimentos. É sobre "o vácuo gerado pelo esquecimento", numa tentativa de apreender o que não está mais presente, na intensidade de uma imagem, articulando o que não é mais e o que ainda não é.
A partir da percepção de que a arte consegue inscrever em nossa vida um tipo diferente de passagem do sofrimento à perda significante, a experiência do luto tornou-se o princípio central do trabalho de Doris Salcedo nos últimos trinta anos:
Durante esse tempo, permaneci imersa no luto e meu trabalho tem sido o trabalho do luto e uma topologia do luto. A única resposta possível que posso dar diante da ausência irreparável é produzir imagens capazes de transmitir incompletude, falta e vazio.
Doris Salcedo compara seu trabalho ao da oração fúnebre. Jean-Luc Nancy, em La déclosion (Déconstruction du christianisme), de 2005, escreve que a oração fúnebre "dá ao mundo arruinado sua dignidade como mundo e ao nome próprio privado de sentido dá a totalidade do sentido". Uma obra de arte como oração fúnebre explora possíveis maneiras de formular uma poética do luto, que é o que há de mais humano na vida, tentando devolver o sentido, o significado e a forma que a violência tirou dos mortos não lamentados do passado, por meio da inscrição de atos de luto no espaço da ruptura operada pela morte. A artista trabalha numa linha muito tênue, entre as imagens da violência e as imagens e memórias de quem morreu, "no limiar em que essa ausência se faz presente, um limiar que simultaneamente separa e une essas imagens", uma ferida intocável.
Nas imagens de alguns trabalhos, gentilmente cedidas pela artista, que aparecem nesta edição de DERIVAS ANALÍTICAS, esse aspecto intocável de uma ferida se evidencia. Como em A Flor de Piel (À flor da pele), de 2014, projeto que começou com a simples intenção de fazer uma oferenda de flores a uma vítima de tortura, como tentativa de realizar o ritual funerário que lhe foi negado. A obra é descrita pela artista como uma “mortalha”, “uma túnica que cobrisse os corpos torturados, que os acolhesse e os acompanhasse em sua última partida". Mesmo partindo de eventos reais, este, como outros trabalhos de Doris Salcedo, suprime a representação direta de narrativas, preferindo a estratégia visual de uma estética mantida em suspensão, abordando o tema pela marca do que está ausente, do que permanece elusivo. O trabalho foi realizado inteiramente com pétalas de rosas que foram tratadas e preservadas e, por fim, suturadas à mão, para formar um grande manto. O grande desafio dessa obra, segundo a artista, foi encontrar um modo de deixar a vida orgânica das pétalas em um estágio de suspensão da passagem da vida para a morte, ou seja, interrompendo seu processo de decomposição. Ao procurar "a forma mais frágil de tocar o intocável" ‒ "foi no limite da fragilidade que encontrei um corpo vulnerável" ‒, a artista encontrou, no processo de confecção da peça, "os limites do frágil e do mais delicado dentro da moldura da escultura":
A realização de A Flor de Piel representou o desafio mais difícil que já encontrei: tentar preservar as pétalas de rosa no ponto em que não estão mortas nem vivas. Tratei-as para que permanecessem suspensas entre o animado e o inanimado. Eu tricotei uma mortalha feita de pétalas de rosa que são suturadas umas nas outras. Para mim, fazer essa peça representava o objetivo inatingível de envolver corpos arrancados da vida e nunca propriamente entregues à morte. É uma peça delicada e quase sem substância. Não propriamente um objeto ‒ está afastada do mundo dos objetos ‒ e, de certa forma, o que define essa peça é o nosso olhar, a nossa relação com ela. É uma mortalha fina e efêmera; é uma interface que me permitiu chegar perto dos corpos quebrados pela tortura.
O corpo de uma pessoa desaparecida e torturada permanece entre nós, no mundo, em moléculas ou átomos, na comunidade que compartilha essa pequena parte do ser, em uma forma de presença intransponível, que avulta sobre a nossa realidade. A morte não é representável e, por isso, na arte é substituída, não pela categoria do vazio, mas do esvaziamento. A Flor de Piel possibilita, assim, a ideia de aproximar-se do toque, evidenciando a impossibilidade de uma carícia, de curar ou de salvar do abismo da morte.
Em outro trabalho, cuja imagem também apresentamos em DERIVAS ANALÍTICAS, Plegaria Muda (2008-2010), talvez, segundo Doris Salcedo, a arte esteja representando "a morte da morte". São cento e vinte mesas de madeira que correspondem, cada uma, ao tamanho de um caixão funerário padrão. O ímpeto para essa obra começou quando a artista embarcou em uma viagem pelo sudeste de Los Angeles, tendo antes pesquisado relatórios oficiais que afirmavam que, ao longo de um período de vinte anos, mais de dez mil jovens haviam sofrido mortes violentas nas ruas daquela cidade. Quando concentrou sua atenção sobre a violência causada por gangues do narcotráfico, Doris Salcedo se deparou com a relação obscura entre o papel do assassino e o da vítima:
Percebi que essa troca perversa que fluía entre esses papéis era possível porque ambos habitam uma área cinzenta específica de nossa sociedade, o espaço que alguns escritores chamam de "morte social" ou "morte em vida", que é vivenciado por pessoas que vivem em áreas carentes, em condições extremamente precárias. As consequências dessas condições são tão profundamente trágicas, que se pode facilmente ver a conexão que existe entre essa chamada morte social e a subsequente morte física violenta, anônima, que é provocada por membros dessas comunidades. As condições que geram essa morte social são semelhantes em todo o mundo, seja em Los Angeles ou Bogotá.
Em Plegaria Muda (Oração silenciosa), Doris Salcedo tenta articular uma série de eventos violentos que determinaram a espiral ininterrupta de violência fratricida que marcava igualmente a violência de gangues e as guerras civis em todo o mundo. Plegaria Muda é sua resposta aos acontecimentos ocorridos na Colômbia entre 2003 e 2009, durante os quais dois mil e quinhentos jovens de áreas carentes foram assassinados pelo exército colombiano e apresentados como “guerrilheiros não identificados dispensados em combate”. Durante meses, a artista acompanhou um grupo de mães que procuravam seus filhos desaparecidos, localizando algumas sepulturas nas quais haviam sido abandonados, anônimos, indistintos, empilhados, "assassinando até mesmo o espaço da própria morte". Em face da morte, o fim da esperança sobrevive como luto, como sinal da infinita incompletude da nossa relação com a morte:
A morte de cada um desses jovens gera uma ausência e cada ausência exige que nos responsabilizemos por aqueles que foram ausentados à força. Visto que nosso relacionamento com eles não termina com sua morte, a única maneira pela qual eles podem existir está dentro de nós; nossa relação com eles não termina com suas mortes, ela continua como dor. [...] A Colômbia ‒ o país dos mortos não enterrados ‒ tem centenas de valas comuns não identificadas, onde os mortos permanecem anônimos. Por isso mesmo inscrevi a imagem da sepultura nessa peça [Plegaria Muda], criando um espaço de recordação, um cemitério que abre um espaço para cada corpo. [...] Plegaria Muda destaca cada tumba individualmente, apesar de nenhuma delas conter a marca de um nome. Cada peça foi lacrada e tem um caráter individual, como se tivesse tido um ritual funerário. A repetição implacável e obsessiva do túmulo enfatiza a repetição dolorosa de mortes desnecessárias.
Os outros trabalhos de Doris Salcedo que aparecem nesta edição de DERIVAS ANALÍTICAS seguem a mesma estratégia artística: "meu trabalho não é baseado na minha experiência, mas na experiência de outra pessoa", entendendo essa “experiência” ‒ que vem do latim e significa "atravessar o perigo" ‒ como uma conexão com a violência política, com a experiência pequena, individual e particular de um ser humano, com as memórias de vítimas anônimas, que estão sempre sendo apagadas, para "trazer para nossa presença algo que não está mais aqui".
Assim, apresentamos Atrabiliários (termo que significa melancólicos, mal-humorados, violentos), fruto de uma pesquisa de Doris Salcedo na Colômbia, no início da década de 1990, sobre os efeitos duradouros da violência contra a mulher. As vítimas eram tratadas com especial crueldade, sendo seus sapatos frequentemente usados para identificar os restos mortais, especialmente no contexto das que desapareciam. Em Atrabiliários, sapatos femininos usados são encaixados em nichos embutidos na parede da galeria, cobertos por uma camada de fibra animal esticada e preservada, que é fixada à parede por suturas médicas. Alguns nichos vazios, feitos também de fibra animal, parecem antecipar mais mortes por vir. As superfícies semitranslúcidas dos nichos obscurecem seus conteúdos, aludindo à relação tensa entre memória e tempo.
Untitled (Sem título), de 1990, de natureza mínima, mostra esculturas feitas de móveis de hospital, embrulhados em fibra animal, num gesto de combinar materiais orgânicos e inorgânicos, bem como incorporar objetos, que está presente em toda a obra de Doris Salcedo. Às camas se juntam onze esculturas compostas por camisas brancas de algodão, com gesso e empaladas por vergalhões de aço. Essas esculturas foram criadas em resposta a dois massacres ocorridos em 1988 no norte da Colômbia, nas plantações de banana de La Negra e La Honduras. Aludindo à ausência do corpo humano, as camisas fazem referência à vestimenta padrão dos trabalhadores dessas fazendas e também à vestimenta funerária dos mortos. Empilhadas em quantidades diferentes, essas esculturas também parecem medir a perda das vidas humanas.
Outro trabalho de Doris Salcedo apresentado aqui é uma instalação, Acción de duelo (Ação de luto), montada no centro de Bogotá, na Plaza de Bolívar, em 2007, na qual quase vinte e quatro mil velas foram acesas, em resposta à morte dos deputados do Valle del Cauca que foram feitos reféns em 2002. A Ação consistia em primeiro colocar essas velas de uma maneira bem específica, de forma reticular, e depois fazer com que as pessoas se juntassem, durante seis horas, humanizando uma situação política de violência pelo ato de prantear os mortos.
Doris Salcedo, nascida em 1958, é hoje, sem dúvida, a artista colombiana com maior reconhecimento internacional, tendo recebido importantes bolsas de estudos, exposto em espaços de destaque, e ganho prestigiosos prêmios internacionais. Sua obra, triste e dolorosa, de forte carga intuitiva, busca o impossível: representar o irrepresentável. Mas ela tem de si uma definição mais singela: “eu sou uma artista política que trabalha a partir do Terceiro Mundo, que vê a vida do Terceiro Mundo... Estou interessada em analisar o poder e como aqueles que detêm o poder manipulam a vida...”
DERIVAS ANALÍTICAS agradece a Susannah Hyman e Vicky Eatough, da Galeria White Cube, que representa Doris Salcedo, a mediação com a artista, com tanta disponibilidade para entender nossa proposta, o que contribuiu enormemente para que a participação de Doris Salcedo na revista tenha alcançado densidade e envolvimento. |