Mais além da nudez da rainha

Márcia Rosa

nudez rainha dezembroFonte: http://www.psiquifotos.com


Não são mais os corpos que fotografa Clérambault,
mas telas e tecidos animados, com vida própria.
Mounira Khémir 

Entre as muitas imagens que circulam na web, recentemente em uma detive a atenção: uma mulher desnuda, de costas para quem a vê, sentada no divã de Freud. A imagem é provocante pela dimensão estética (prazer escópico) que propõe ao espectador, mas também, e principalmente, pela concepção de tratamento psicanalítico que transmite: a Psicanálise como um trabalho de desnudamento total, provavelmente sustentado na promessa inicial de se dizer “toda a verdade, nada mais que a verdade”...

Diante disso, uma questão: seria essa a visada do trabalho analítico, a constatação de que o rei, ou melhor, a rainha estaria nua?

Obviamente, o enunciado jurídico da regra fundamental (“diga toda a verdade!”) desconsidera que se trata de “dizer qualquer coisa”; Lacan já nos advertiu de que a tentativa de dizer toda a verdade não encontra outra coisa senão o campo do gozo. “A verdade é irmã do gozo”, observou ele, não sem malícia, ao lembrar o suposto affaire entre Freud e a irmã de sua mulher. Assim, a esposa Martha estaria para a verdade − castração − como a cunhada, Minna, para o gozo. Entre o saber e o gozo, saber e verdade, o parentesco se faz exatamente pela impossibilidade.

Desse modo, a Psicanálise confere ao desnudamento total o estatuto de fantasia, e se distancia de qualquer absoluto na medida em que não dispensa os semblants. Verdade e mulher não são senão entrevistas, através ou atrás de seus véus. No entanto, existem semblants sombrios, existem revestimentos que filtram muito pouca luz. Tal é o caso das burcas fotografadas por Clérambault, o mestre de Lacan em psiquiatria.

Gaëtan Gatian de Clérambault é evocado com frequência a propósito de suas formulações sobre a erotomania, uma posição em geral delirante na qual o sujeito acredita que uma outra, de status social elevado, está enamorada dele. No entanto, cabe lembrar que o psiquiatra francês também se interessou pelas vestimentas femininas, as burcas, fotografando-as amplamente, principalmente no Marrocos. Diante das burcas de Clérambault, há quem diga que ele queria mostrar que, ao esmagar suas almas e seus corpos com uma repressão tão intensa, essas mulheres já estavam mortas, eram apenas ghosts. Será?

Ao apresentar o livro Automatismo Mental: Paranoia, de 2004, seu editor argentino, Juan Carlos Stagnaro, observa, a propósito do Anexo no qual inclui parte da obra fotográfica sobre as burcas, que o olhar, estruturante da clínica clerambaultiana, vai do paroxismo ao trágico: tudo é registrado por ele com minúcia e paixão, desde a busca esquadrinhadora do menor gesto revelador que fosse, durante uma entrevista, até a interpretação da mensagem de uma dobra das vestimentas. Essa paixão (desejo ou fantasia?) terminará tragicamente, quando Clérambault, aos 62 anos, diante de um espelho, coloca fim, com um tiro de pistola, ao sofrimento gerado pelo fracasso de uma operação de catarata. A sombra do objeto, de um olhar enevoado ou sombrio, ter-lhe-ia caído sobre o eu?

Diríamos, então, que mais além da questão fálica trazida pelo desnudar ou revestir, a pulsão escópica e o objeto olhar não apenas enquadram, como dominam a cena.

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