Revista Derivas Analíticas - Nº 20 - Março de 2024. ISSN:2526-2637
O enigma da sombra
María Cristina Giraldo
Psicanalista
Analista Membro da Escola (AME)
Pela Nueva Escuela Lacaniana (NEL)
e Associação Mundial de Psicanálise (AMP)
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[...] nosotros los orientales creamos belleza
haciendo nacer sombras en lugares que en sí
mismos son insignificantes.
(TANIZAKI, 2013, p. 69)
Sirvo-me da prosa poética de Junichirō Tanizaki, tanto no título, quanto na epígrafe: o enigma da sombra é uma marca diferencial na estética tradicional japonesa, com o uso da luz como aliada da beleza no Ocidente. O enigma está do lado do sentido e, de forma paradoxal, é ao mesmo tempo, o impossível de explicar; é por essa via que pode furar um discurso. A psicanálise, desde Freud, supôs manter aberto o furo do desencontro lógico com outros discursos, graças à diferença que a singulariza. “O que quer uma mulher?” foi um enigma sem solução para Freud. Essa opacidade do real, esse enigma da sombra, foi formalizado por Lacan no discurso analítico como uma das inexistências lógicas: não há relação sexual, a Mulher não existe e a inexistência do analista. Elas dão conta do que não há, mas também do que há, o Um do gozo, o gozo de cada ser falante que é o incomparável, o singular, o irredutível.
Miller (2010, p. 57-58, grifos nossos) afirma, em Extimidad:
há raças que respondem à definição que dá Jacques Lacan, para quem uma raça se constitui pelo modo em que se transmitem pela ordem de um discurso os lugares simbólicos. Quer dizer que as raças, essas que estão em atividade entre nós, são efeitos de discurso... o uso do gozo na ordem de um discurso é o que marca as diferenças.
A orientação pelo real do gozo na prática analítica subverte o discurso do mestre que se joga nas práticas normatizadas e servis à utilidade direta, cuja forma de racismo é a incapacidade psicossocial, o que equivale a estar fora do gozo prescrito por esse discurso.
O aforismo de Lacan “Todo mundo é louco, quer dizer, delirante”, vertente de investigação do XIV Congresso da AMP, realizado em Paris em fevereiro de 2024, põe em ato uma orientação política que subverte essa norma que faz par com um ideal universalizante que conduz à segregação. Jacques-Alain Miller nos convida a reduzir o mal-entendido possível que esse aforismo tem gerado ao converter-se em verdade para todos, repetindo-se como um slogan sem discussão, enquanto poderia confundir-se com o igualitarismo pós-clínico porque sabemos que seu avesso é o racismo. Miller (2023, s/p) propõe transformá-lo em enigma, na verdade mentirosa que é objeto de investigação; poderíamos dizer que faz nascer na luz do slogan as sombras que velam o real em jogo, enquanto o discurso analítico “não tem nada de universal... é para o Um-sozinho”.
Uma experiência de análise se orienta a que o ser falante, que demanda a escuta de um analista, se aproxime ao que há de mais singular, que é seu modo de gozar, impossível de encaixar em um universal que totalize e estandardize a prática em um modelo igual para todos, porque a mesma experiência de uma análise não só é única, como faz cair as identificações do ser para o Outro. É o que permite que o ensinamento do passe fure, pela singularidade da solução de cada Analista da Escola (AE), a doxa que acreditemos ter, e que a Orientação Lacaniana implique o enlaçamento entre a episteme, a política e a clínica com relação à prática analítica, à Escola e à definição original do analista em Lacan.
A prática do passe e a garantia na Escola separam na instituição analítica a hierarquia do poder e a do gradus, tornando ato o essencial na formação analítica: a supervisão (el control) permanente da prática e a experiência da análise levada até o final, da qual advém um analista, sem ser em posição analisante, não fazendo, portanto, um tampão no furo da inexistência do analista.
Em “Alocução sobre as psicoses da criança”, Lacan (1967/2003, p. 361) formula uma pergunta essencial em relação à subversão como resposta à segregação, como a psicanálise pode fazer sintoma ao discurso da época: “como responderemos, nós, os psicanalistas: a segregação trazida à ordem do dia por uma subversão sem precedentes”.
Essa subversão sem precedentes enlaça a experiência da análise à experiência de Escola. Uma Escola não-toda se diferencia de uma sociedade analítica no que conta com o mais singular de cada um, de um lado, porque, como afirmou Miller (2016) em “Teoria de Turim: sobre o sujeito da Escola”, é uma soma de solidões subjetivas e, de outro lado, porque pode ser subjetivada e é causa de desejo, uma escolha forçada, para cada membro.
Estar em posição analisante da própria relação com o sujeito suposto saber, do ideal, do gozo real que não deixará de insistir e que está mais além das identificações, implica a crença no próprio inconsciente, em suas formações, o que leva a demandar uma análise. O ser falante está só com seu gozo que é êxtimo, com o Outro ao qual deu consistência em seu fantasma; em sua relação com o ideal e com as identificações. O que Éric Laurent (2020) nomeia “identificações dessegregativas” diferencia essa solidão inevitável de cada um do racismo que se baseia em coletivos conformados por militâncias identificatórias, que poderia nomear, parafraseando Laurent, agregativas. A Escola, diz ele, é “um laboratório de produção de identificações dessegregativas” (LAURENT, 2020).
O fim de análise permite constatar o feminino do desejo de Escola, em relação com a inconsistência do , o passe é “marca do atravessamento das identificações” (LAURENT, 2020 p. 54). A feminização que produz esse acontecimento de corpo que é o sinthoma, significante novo, sem sentido, sem par, que dá conta das formas de arranjo singulares com o próprio gozo, uma solução inédita e incomparável do Um-sozinho. O gozo mais além do falo, que não se deixa entorpecer, nem curar, nem enquadrar na falsa liberdade de estilos de vida que só conduzem ao lugar de um igualitarismo impossível, mediante laços identificatórios que buscam restituir o Outro naquilo que não faz comunidade, o Um do gozo. O gozo feminino em sua opacidade é essa sombra para velar o nada, um furo que só se pode bordejar com uma invenção sem garantias e aberta ao contingente. Sem saber o que é A mulher, nem o que é O analista na política de Escola.
O gozo mais além do falo implicou, em meu fim de análise, atravessar o rechaço ao feminino, o duplo racismo posto em meu ser de mulher e no rechaço por minha cor de pele, posto no Outro, ao qual dei consistência com meu fantasma. Diferenciar o que faz Escola, que separa cada parlêtre da militância identitária em um grupo, do que se pode deslizar nos caminhos conhecidos das identificações que se sustentam nos significantes-mestres que dão consistência aos funcionamentos grupais, é advertir a raiz do racismo em uma instituição: o grupo segrega quem se diferencia ou se opõe. Habitar a Escola, por outro lado, é estar no lugar de Mais-Ninguém, em que a ficção do Outro, o qual se fez consistir com o fantasma, já não responde à posição de gozo fálico e mostra a afinidade entre a posição feminina e a posição de analista. São os matizes da sombra, nos quais não-todo (no-todo) é negro, nem-tudo (ni-todo) é branco. É o enigma da sombra com as diferentes formas da subversão lacaniana ao racismo.
Tradução: Miguel Antunes
Revisão: Vinícius Lima
Referências
LACAN, J. Alocução sobre as psicoses da criança. In: Outros escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003, p. 359-368. (Trabalho proferido em 1967).
LAURENT, É. Política do Passe e identificação dessegregativa. Opção Lacaniana: Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, n. 82, 2020.
MILLER, J.-A. Racismo. In: Extimidad. Buenos Aires: Paidós, 2010.
MILLER, J.-A. Teoria de Turim sobre o sujeito da Escola. Opção Lacaniana Online, n. 21, nov. 2016. Disponível em: http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_21/teoria_de_turim.pdf. Acesso em: 20 fev. 2024.
MILLER, J.-A. Todo mundo é louco: Apresentação do XIV Congresso da AMP. 2023. Disponível em: https://congresamp2024.world/pt-br/todo-mundo-e-louco/. Acesso em: 20 fev. 2024.
TANIZAKI, J. El elogio de la sombra. Madrid: Siruela, 2013.