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 logoder Revista Derivas Analíticas - Nº 21 - Agosto de 2024. ISSN:2526-2637


“O tradutor cleptomaníaco” e o que a tradução faz passar

Fernanda Costa
Psicanalista
Membro da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP)
e Associação Mundial de Psicanálise (AMP)
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“O tradutor cleptomaníaco” é um conto do célebre escritor húngaro Dezsö Kosztolányi. Sua trama ocupa as primeiras quatro páginas de uma coletânea[1] e, mesmo com essa brevidade, permite uma excelente entrada para a obra desse autor, especialmente por ele considerar que a prática da tradução era um exercício fundamental para sua escrita.

No conto, acompanhamos Kórnel Esti, um escritor experiente, “cínico, niilista e irônico”,[2] contando a história do amigo Gallus. Um jovem escritor que, embora fosse brilhante e poliglota, tinha “um defeito fatal” (KOSZTOLÁNYI, 2016, p. 7): era cleptomaníaco. Seu “prazer consistia” em “roubar”, “vício” (KOSZTOLÁNYI, 2016, p. 7) que levou Gallus à prisão e, posteriormente, à miséria. Para ajudá-lo, o amigo veterano recomendou seu trabalho como tradutor literário a um editor. Foi a única solução possível, já que Gallus só sabia escrever, e, como ex-detento, fazê-lo “sob seu próprio nome estava fora de qualquer cogitação” (KOSZTOLÁNYI, 2016, p. 8). Contudo, para a surpresa do editor, de Kórnel e do próprio leitor, traduzir a obra de outro autor não impediu que Gallus incluísse algo que lhe era próprio. Como? “Nem tentem adivinhar. Estão enganados” (KOSZTOLÁNYI, 2016, p. 9).        

Ao perceber isso, o editor, assombrado, recusou a publicação do trabalho e queixou-se com seu protetor. Numa primeira leitura da nova versão, Kórnel não entendeu aquela reação: reconheceu frases “claras, mudanças engenhosas, montagens linguísticas espirituosas..., muito mais dignas que o original” (KOSZTOLÁNYI, 2016, p. 9). Foi só quando Kórnel comparou, detalhadamente, tradução e original, que percebeu que vários objetos – dinheiro, pérolas, “movéis e imóveis” (KOSZTOLÁNYI, 2016, p. 12) – simplesmente haviam desaparecido da nova versão. Gallus havia encontrado uma forma de “roubar” ao traduzir, transpondo sua cleptomania para o texto! Com essa constatação, até mesmo o amoral Kórnel ficou escandalizado e retirou sua proteção, deixando o amigo entregue ao seu destino.

Kosztolányi: tradução e literatura

Esse conto genial e cômico fica ainda mais interessante ao ser contextualizado na obra do autor. Kosztolányi fez parte da geração dos grandes escritores húngaros do primeiro quarto do século XX. Junto a esses contemporâneos, se dedicou a traduzir para o magiar[3] grandes autores, antes inacessíveis naquela língua.[4] A revista cultural Nyugat,[5] criada em 1908 pelos mesmos escritores, foi determinante para o movimento que consolidou a tradução como uma tradição literária na Hungria.

A psicanálise compunha a diversificada pauta cultural da Nyugat. Em 1917 fez circular, pela primeira vez naquele país, “Uma dificuldade no caminho da psicanálise”, de Sigmund Freud. Além disso, também publicou um elogio póstumo de Kosztolányi a Sándor Ferenczi, proeminente psicanalista húngaro e seu amigo íntimo. Nesse texto, ficamos sabendo que Kosztolányi era um leitor de Freud, interessado nas manifestações do inconsciente na fala, tal como o ato falho. Na homenagem, elogia o amigo Ferenczi por se dedicar “às palavras [...] que não podem ser dissecadas e que encerram o milagre da criação” (KOSZTOLÁNYI; RICAUD, 2023, p. 252, tradução nossa). Logo, dentre outros aspectos, Kosztolányi parecia atraído pela forma pela qual a psicanálise abordava a linguagem.

Além da dedicação à revista Nyugat, Kosztolányi publicou (entre 1910, até o ano de sua morte, em 1936) vários livros autorais em prosa e poesia, assim como inúmeras traduções. Como, por exemplo, uma extensa Antologia Poética de diversos autores e nacionalidades, que contou com uma brilhante introdução feita por ele.[6] Nesse texto, alternando analogias e exemplos práticos, Kosztolányi define o lugar peculiar que a tradução ocupava em seu fazer literário.

Uma das comparações feitas por Kosztolányi naquele texto é entre a tradução e o trabalho de um escultor. Este sabe que, para obter uma mesma forma escultórica em matérias primas diferentes (por exemplo, na madeira e no mármore), precisa considerar a natureza de seus materiais e usar ferramentas especificas para cada um deles. Numa mesma lógica, se um tradutor quiser ser fiel “ao espírito do poema”, deve considerar que “o material [...] de cada linguagem é distinto” (KOSZTOLÁNYI apud SPIRY, 2011, p. 136), e, sendo assim, essa diferença desenha limites e possibilidades de transposição.

Kosztolányi também assemelha a tradução a um experimento de física que recria fenômenos naturais: “embaixo da campânula de vidro os feixes de luz faíscam, e é preciso reconhecer que raio é raio, ainda que saibamos que ele provém de uma lâmina de vinil” (KOSZTOLÁNYI apud SPIRY, 2011, p. 140). Logo, o que lhe interessa é refazer o encontro que causou a descarga elétrica, provocando uma faísca, um raio, que, ainda que não seja original, conserve sua natureza. Trata-se, portanto, não de uma cópia de raio, mas de um raio recriado, com as mesmas propriedades.

Essas analogias comportam as principais ideias de Kosztolányi sobre a tradução e ficam ainda mais claras em um exemplo prático: uma discussão sobre a palavra francesa désir (“desejo”), cujo equivalente semântico em magiar seria vágy (“desejo”). O escritor descarta essa versão porque ela negligencia a forma sonora de désir, distanciando-se, assim, da “natureza” dessa palavra. Para ele, uma boa tradução seria “vézer” (KOSZTOLÁNYI, 2011, p. 138), que significa “líder, chefe, comandante” (KOSZTOLÁNYI, 2011, p. 138), e que, mesmo não se igualando à désir em seu sentido, faria passar para o húngaro o “espírito” daquela palavra, especialmente por recriar sua “faísca”, sua materialidade sonora. Assim, entrevemos porque, para Kosztolányi, traduzir distancia-se da cópia e remete ao “transplantar, recriar”, constituindo-se um “instrumento” (KOSZTOLÁNYI apud SPIRY, 2011, p. 136) fundamental para sua escrita literária.

Cleptomania: gosto e transmissão

Retomemos o conto. Orientados pelas ideias de Kosztolányi, poderíamos supor que Gallus fez uma tradução que recria o “espírito”, a mesma “natureza” do original, refinando-o. Sabemos disso a partir do entusiasmo de Kórnel na sua primeira leitura dessa tradução, que considerou uma versão mais digna do que o próprio original. Foi só quando esse escritor investigou o texto linha a linha que percebeu os objetos subtraídos e condenou a imoralidade do trabalho. Contudo, essa reação do cínico e amoral Kórnel destoa das características desse personagem e introduz um ar irônico na acusação excessiva à cleptomania textual de Gallus. Isso acentua o efeito cômico para o leitor e cria margem para perguntarmos se o que foi roubado por Gallus precisaria de uma retaliação tão severa, especialmente por ter transmitido o essencial do romance, inclusive aprimorando o original. Se, por um lado, existe um roubo, uma subtração, por outro, Gallus, ainda que não escreva sob nome próprio, inclui algo seu.

Já vimos que a concepção de tradução de Kosztolányi tem suas especificidades e se distingue radicalmente daquelas que podemos acessar nos dicionários de línguas, em aplicativos como o Google Tradutor ou com as Inteligências Artificiais. Em todas eles, opera-se por equivalências semânticas, transposições diretas que privilegiam o conteúdo da narrativa.

Por outro lado, a tradução que interessa a Kosztolányi prioriza a forma, que não pode ser totalmente realizada pela semântica ou pela narrativa. Por isso, ele traduz désir por vézer e descarta vágy. Assim, o escritor faz passar em sua tradução a “faísca”, o “espírito” de désir e, ainda, acrescenta-lhe a dimensão da “dominação” de um desejo. Ou seja, se num aspecto vézer é índice de uma redução quanto ao sentido de désir, em outro, a tradução produz algo a mais.

É como se Kosztolányi usasse a seu favor o limite imposto pela diferença material na transposição entre as línguas. Ele faz passar, na própria tradução, algo desse impossível. Assim, a esfoliação no sentido não aparece como uma perda, mas como uma possibilidade de afinar ainda mais a palavra com seu espírito e materialidade. É assim que, para o escritor, uma tradução pode contribuir, “promover uma mudança” no próprio original (KOSZTOLÁNYI, 2011, p. 138).

Kosztolányi parece localizar, nessa dimensão irreconciliável das línguas, o que o psicanalista francês Jacques Lacan (1972-73/1985, p. 127) chamaria de real, “o impossível” “o que não pára de não se escrever”. Uma psicanálise não deixa de ser um esforço de tradução. Ela também permite o roçar da fronteira entre o real do gozo e o que pode ser capturado em palavra. Isso não significa que um real foi explicado, mas que encontrou uma palavra que “não pode ser dissecada, dividida”, a invenção de um dizer que permite transplantá-lo. Muitas vezes, isso ressignifica, recria a história de uma vida.

Com Kosztolányi, poderíamos pensar que isso só é possível “assaltando a fronteira”[7] das línguas, no roçar com um impossível de se escrever. Não seria esse um dos aspectos geniais desse conto? Não seria a cleptomania de Gallus uma forma do escritor transpor para o texto, fazer passar para o leitor (sem que se tenha que explicar!), o gosto por esse “roubo” fronteiriço?

Referências

ERBER, L. Sertão e fantasias (da visão). Revista Gumo – Literatura e Imegens: Fronteiras, Buenos Aires/Rio de Janeiro, p. 1-4, 2007. Disponível em: https://www.academia.edu/7664969/Sert%C3%A3o_e_fantasias_da_vis%C3%A3o_. Acesso em: 17 jul. 2023.

LACAN, J. O Seminário, livro 20: Mais, ainda. Tradução de M. D. Magno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985. (Trabalho original proferido em 1972-73).

SPIRY, Z. É possível traduzir poesia? O poeta húngaro Kosztolányi, na virada do século XX. TradTerm, n. 16, p. 129-147, 2011.

KOSZTOLÁNYI, D, “O tradutor cleptomaníaco”. In: O tradutor cleptomaníaco e outras histórias de Kornél Esti. Tradução de Ladislao Szabo. São Paulo: Editora 34, 2016, p. 7-12.

KOSZTOLÁNYI, D; RICAUD, M. Souvenirs de S. Ferenczi par l’écrivain Dezsö Kosztolányi. Le Coq-Héron, n. 252, p. 103-106, 2023.

 

[1] “O tradutor cleptomaníaco” é o primeiro conto (Novellák, em húngaro) da coletânea quase homônima (O tradutor cleptomaníaco e outras histórias de Kornél Esti) que compõe o único livro de Kosztolányi publicado em português. Nessa coletânea, Kórnel Esti, alter ego do autor, é um personagem central em todas as histórias.

[2] Conforme texto de apresentação da obra nas informações de capa.

[3] Magiar (ou húngaro) é a língua oficial da Hungria.

[4] Vale lembrar que o magiar, embora a Hungria compartilhe o espaço geográfico com os países europeus, não tem as mesmas origens da maioria das línguas daquele continente. O magiar se destaca por ter raízes e derivações únicas, radicalmente distintas da maior parte dos idiomas europeus. Assim, entendemos porque existiam tão poucas traduções literárias naquela língua e também o empenho em traduzi-las.

[5] Nyugat (“Oriente”): revista literária húngara, publicada entre 1908 e 1941.

[6] Para termos uma ideia de como ele levava esse a sério essa prática, basta mencionar que nessa impressionante Antologia Poética traduziu “418 poemas escritos por 142 poetas do mundo inteiro” (SPIRY, 2011, p. 136).

[7] Tal expressão é uma menção à noção de tradução da escritora, tradutora, ensaísta, artista visual e professora universitária Laura Erber no texto “Sertão e fantasias (da visão)”. Nele, ela comenta a tradução como sendo um “assalto à fronteira”, a partir do comentário kafkaniano de que “toda literatura é assalto à fronteira”. Para ela, “na ideia de ‘assalto à fronteira’ o que me parece mais atraente é a ideia de tradução que nela está implícita, pois toda fronteira cria uma situação em que a tradução se torna uma necessidade, uma urgência mesmo. A tradução entendida [...] como a possibilidade de fazer circular, mantendo o segredo, ou seja, não deixando que se perca na passagem a trama de forças em tensão” (ERBER, 2007, p. 3).

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