Jacyntho Lins Brandão
Lemos, no fragmento 93 de Heráclito, a seguinte declaração:
οὗ τὸ μαντεῖό ἐστι τὸ ἐν Δελφοῖς,
οὔτε λέγει οὔτε κρύπτει
ἀλλὰ σημαίνει,
que eu traduziria, tentando ser o mais literal possível:
o senhor
cujo oráculo é o que está em Delfos
nem diz nem oculta
mas sinaliza.
Não dizer nem ocultar é um dado que, antes de tudo, nos garante não estarmos diante de um enunciado simples, já que quem fala, em princípio, afirma ou nega, isto é, declara (torna claro) algo a respeito dos entes, dos acontecimentos, dos estados mentais ou das projeções — do mesmo modo que, inversamente, quem se cala o faz ocultando algo. Declarar, portanto, seria oposto de ocultar, numa relação complementar: quem não fala se cala, e quem se cala não fala. Mas alguém não poderia, num sentido simples, falar e calar ao mesmo tempo ou não falar e não calar. Na medida, portanto, em que o oráculo que está em Delfos nem fala nem oculta, subverte o traço mais distintivo da linguagem. Enquanto, todavia, faz isso usando de recursos orais, não invalida a linguagem, mas institui uma outra espécie de discurso que poderíamos tratar de oracular ou, se quisermos, por antonomásia, mais propriamente de délfico.
Estou tomando o oráculo délfico como exemplo, em vista da importância que tem durante toda a Antiguidade grega, o que faz que possa ser entendido, por excelência, como paradigma. Isso não significa que não haja outras diferentes formas de revelação, as quais variam geográfica e temporalmente,[1]integrando modalidades de conhecimento que circulam no meio de outros bens culturais, como elementos de sabedoria, de poder, de compreensão do mundo, concorrendo com o mito, a poesia, a historiografia, a filosofia, a ciência, a política e a religião. Dito de outro modo: a palavra oracular institui uma modalidade de discurso reconhecida socialmente e definida, como qualquer outra, a partir da relação entre quem fala e quem ouve.
Quando Heráclito, no fragmento acima, refere-se não à Pitonisa que, em Delfos, proferia os oráculos de Apolo, mas ao manteîon deste, tem em vista uma distinção importante. Um manteîon, que traduzimos como oráculo, significa tanto o vaticínio, a resposta obtida pelo consulente, quanto o próprio lugar em que eles são proferidos (neste caso, o santuário de Delfos). Assim, fica claro que as condições que tornam possível a epifania da palavra oracular dependem não do indivíduo que a profere, mas de um lugar pleno de potência divina. O mero fato de que não saibamos os nomes próprios das sacerdotisas, que por séculos a fio desempenharam o papel de Pitonisas em Delfos, nos garante que o manteîon sobrepuja o mántis (isto é, o adivinho ou áugure). Por outro lado, embora Apolo profira revelações também em outros santuários, tem uma forma própria de revelar-se em Delfos, que é a visada por Heráclito.[2]
A distinção entre o manteîon e o mántis é relevante, apontando para um processo de comunicação complexo, que não se reduz ao esquema comum emissor-mensagem-recebedor, mas faz interferir um quarto elemento, que é o intérprete. As representações de áugures que encontramos na literatura nos esclarecem sobre sua função: assim, a Calcas, na Ilíada, compete revelar o motivo da peste que ataca o exército aqueu, na sua condição de intérprete de sonhos e conhecedor do passado, do presente e do futuro, “graças aos dons com que o Febo Apolo o brindara”.[3] Mais conhecida é a atuação de Tirésias no Édipo rei, de Sófocles, ao qual cabe interpretar o sentido do oráculo obtido por Creonte em Delfos: é preciso purificar a cidade do miasma que a contamina e leva a que campos, animais e mulheres se tornem infecundos, punindo o assassino do rei.[4] Apolo não declarou: Édipo é o assassino de Laio. Pelo contrário, ao ser indagado sobre a causa da peste em Tebas, respondeu ser preciso encontrar e punir o assassino. Ao responder desse modo, tanto disse quanto ocultou o fato de Édipo ser o assassino que se buscava — o que na verdade não constitui uma resposta, num sentido comum, mas um novo problema que provoca que Édipo convoque de imediato o mántis Tirésias, para que possa interpretar o manteîon proferido por Apolo em Delfos. Nessa função, Tirésias declara que Édipo é o assassino.[5] É, entretanto, na brecha que existe entre a palavra do mántis que apenas interpreta e a do deus que nem diz nem oculta que Édipo recusará o que Tirésias lhe revela, assumindo para si a tarefa interpretativa e desenvolvendo as sucessivas investigações que o farão resvalar da busca do assassino para a busca de sua identidade.
A estrutura da comunicação complexa do oráculo poderia, portanto, ser assim representada:
deus |
→ |
oráculo (manteîon) |
→ |
intérprete (mántis) |
→ |
recebedor |
Observe-se que, como um quarto elemento, o intérprete medeia, ao lado do oráculo, o percurso entre o emissor (o deus) e o recebedor (o fiel), que são os pontos mais importantes do esquema. Não se deve esquecer que o próprio oráculo não indica apenas uma mensagem, mas tanto um lugar sagrado quanto uma fala sagrada, que nem diz nem oculta e, só porque não se trata de uma mensagem simplesmente declarativa, mas enigmática, é que ela cria a necessidade do intérprete. Mais que responder a uma pergunta, o oráculo coloca um problema. Ele como que torna complexa a questão que o consulente percebe unidirecionada, revelando-a polivalente. É como responder antes de tudo: não há sentido único, pesquise os sentidos possíveis.
Essa pluralidade de sentidos do manteîon demonstra-se com clareza no episódio envolvendo Creso, suficientemente difundido na Antiguidade e usado como prova do valor do oráculo délfico. Vou citá-lo extensamente, de acordo com a narrativa de Heródoto, pois ele nos fornece elementos preciosos para situar o estatuto da palavra oracular na Grécia, sob diferentes enfoques.
Tudo tem princípio quando Creso, rei dos lídios, percebe o crescimento do reino persa como ameaça a seu próprio império. Então, declara Heródoto, “começou ele a não pensar em outra coisa senão em reprimir esta potência, antes que ela se tornasse mais forte. Inteiramente absorvido por semelhante ideia, resolveu consultar os oráculos da Grécia e o da Líbia”.[6] Assim, enviou emissários aos oráculos de Delfos, de Aba, de Dodona de Anfiarao, de Trofônio e dos Brânquidas, na Grécia, bem como ao oráculo de Zeus Amon, na Líbia. Pretendia ele testar os diferentes numes, perguntando-lhes, através dos emissários, numa data predeterminada, o que ele, Creso, fazia naquele dia. Os emissários ouviram da Pitonisa de Delfos o seguinte:
Conheço o número de grãos de areia e a medida do mar. Compreendo a língua do mundo, ouço a voz do que não fala. Meus sentidos acusam o cheiro de uma tartaruga que está sendo cozinhada com carne de um cordeiro num caldeirão de bronze; o bronze; estende-se sobre ela, o bronze recobre-a.[7]
Ora, Creso, no dia predeterminado, tendo em vista testar os oráculos, ardilosamente prepara uma refeição incomum: uma mistura de carne de tartaruga com carne de carneiro, a qual pusera para cozinhar num caldeirão de bronze, com tampa também de bronze. Tão logo ouviu as palavras acima, reconheceu a justeza das revelações de Delfos e de Anfiarao — considerando que os demais não haviam proferido uma resposta adequada, embora Heródoto não registre quais seriam essas outras respostas e declare ignorar por completo a resposta obtida no santuário de Anfiarao, sabendo apenas “haver Creso reconhecido também a justeza desse oráculo”.[8]
Em consequência disso, o rei cumulou Delfos de presentes preciosíssimos e consultou uma segunda vez o deus, a propósito da ideia que obsessivamente o movia: “Creso, rei dos lídios e de outras nações, persuadido de que sois os únicos verdadeiros oráculos existentes no mundo, vos envia estes presentes que julga dignos de vossa sapiência e vos pergunta se deve marchar contra os persas”. Os dois oráculos retrucaram do mesmo modo, predizendo que “se fizesse guerra contra os persas, um grande império ele haveria de destruir”.[9] Essa resposta veio ao encontro do desejo do rei, que se lançou decididamente na guerra e foi completamente derrotado.
Aprisionado por Ciro, pediu Creso a seu vencedor que lhe permitisse mais uma última vez enviar emissários a Delfos, para indagar do deus se não se envergonhava de havê-lo incitado à guerra, na falsa esperança de destruir o império persa. A Pitonisa então respondeu-lhe:
Creso não tem razão de se lamentar. Apolo predissera-lhe que, fazendo guerra aos persas, destruiria um grande império. Se ante essa resposta, Creso tivesse demonstrado maior iniciativa, teria mandado perguntar ao deus se se tratava do império dos lídios ou do de Ciro. Não tendo nem apreendido o sentido do oráculo nem interrogado de novo o deus, não deve queixar-se senão de si mesmo.[10]
Observe-se o percurso do entrecho envolvendo a consulta de Creso: ele parte da ideia obsessiva do rei e se fecha com o reconhecimento do erro do rei. Podemos fazer disso uma leitura ingênua, admitindo que houve dolo da parte do oráculo. Não seria uma leitura anacrônica, já que na própria Antiguidade a crença nos oráculos é polêmica, havendo críticas contundentes contra eles, como as oriundas dos círculos epicuristas e, em época posterior, das comunidades cristãs, ou como, de um modo radical, encontramos em Luciano.[11]A própria história de Creso, que, tendo recebido um oráculo aparentemente errado, descobre que o erro está não na palavra que nem diz nem oculta, mas no entendimento que dela teve ele próprio, seria evidentemente uma peça de propaganda do santuário de Delfos, em torno do qual havia naturalmente interesses materiais (basta lembrar que a acusação da Pitonisa de que Creso deveria ter voltado a consultar o oráculo de novo tem uma conotação no mínimo dúbia, uma vez que, a cada consulta, o rei lídio cumulava de tesouros não só o templo délfico, mas também os habitantes da cidade). Isso, contudo, não é o mais importante. Importante é observar que histórias como a de Creso difundem certa consciência de que é preciso buscar compreender as palavras do deus de um modo diverso daquele que se usa na linguagem comum.
O que mais estranha o leitor moderno na história de Creso, é o fato de que, apenas após o evento visado pelo oráculo, se tenha concluído o círculo interpretativo. Esse estranhamento nos permite tornar mais aguda nossa compreensão do estatuto da fala oracular, levando-nos a perceber o processo que faz resvalar os sentidos e funda sua polivalência. Em primeiro lugar, o oráculo não responde ao que lhe é perguntado. Creso indagou “se devia fazer guerra aos persas”, mas não obteve uma resposta simples: sim ou não. Pelo contrário, a resposta preservava a pergunta, ajuntando-lhe um segundo membro: se isso fizesse, “um grande império ele haveria de destruir”. Essa estrutura, articulada por um se, deixa aberto o problema: em primeiro lugar, porque não esclarece qual grande império seria destruído (o de Ciro, o de Creso ou qualquer outro); em segundo lugar, porque não esclarece o que aconteceria caso o rei lídio não fizesse a guerra (o que, segundo seus cálculos, implicava o risco de ter seu reino dominado pelos persas, uma ameaça tão evidente que o levara ao desejo de guerra, motivando a própria consulta ao oráculo). Assim, os dois membros do discurso délfico não têm uma relação unívoca, sendo muitas as possibilidades de articulação, que poderiam ser assim representadas, nos intervalos entre o dito e o não dito:
Se Creso fizesse a guerra | destruiria o império dos persas e não destruiria seu próprio império |
destruiria seu próprio império e não destruiria o império dos persas | |
destruiria um outro império qualquer e não destruiria seu próprio império nem o dos persas | |
Se Creso não fizesse a guerra | não destruiria o império dos persas e destruiria seu próprio império |
não destruiria seu próprio império e destruiria o império dos persas | |
não destruiria algum outro império e destruiria seu próprio império ou o império dos persas |
Note-se bem: qualquer que fosse o fato, a resposta seria verdadeira, ainda que se optasse por enunciar o primeiro membro da forma negativa. Assim, a confirmação do oráculo post eventum vem a ser um processo natural, até porque não há como fechar o ciclo de revelação senão diante dos fatos. Por outro lado, o acontecimento não despe o oráculo de sua carga enigmática, pois sempre restaria a pergunta: e se Creso não tivesse feito a guerra?
Isso, entretanto, não interessa. De fato, o que levou o rei a consultar o oráculo foi o desejo de fazer a guerra. Assim, sua pergunta já se encontrava carregada de intenções. Ninguém pergunta nada desinteressadamente. Na pergunta, já há uma expectativa de resposta, e foi essa expectativa que levou o rei a escolher um dos sentidos possíveis — de fato, aquele que ele esperava ouvir. Mesmo no teste preliminar dos oráculos, isso pode ter acontecido, embora não possamos saber quais foram aquelas respostas que foram consideradas incorretas por Creso, as quais Heródoto não registra. Não seria difícil, contudo, construir sentidos coerentes a partir de outras respostas — como parece que acontece com o manteîon de Anfiarao, que era diverso do de Delfos, mas igualmente correto. Em suma: Creso pensava estar testando os oráculos, quando estes é que o testavam.
Provavelmente seria infrutífero para Creso ter consultado de novo o oráculo, indagando sobre qual império afirmara ele haver de ser destruído. Na verdade, ele o fez, recebendo da vez anterior não uma resposta direta, mas oblíqua, já que Apolo nem diz nem oculta, apenas sinaliza.[12] Esse sinaliza (semaínein) como fundamento de uma determinada categoria de linguagem, rompe a lógica comum, ao desagregar a relação entre signos e coisas — ou entre significantes e significados — fazendo com que cada sêma, na qualidade de elemento central da linguagem, possa apontar para um número variado de objetos. O que se institui, então, é propriamente um discurso polissêmico, cujo sentido verdadeiro só pode ser apreendido a partir do contexto que o cerca. Nisso se concentra o teste a que, invariavelmente, o deus submete os que o consultam.
Semaínen, que estou traduzindo como sinalizar, deriva de sêma, que significa sinal, signo, indício, augúrio, presságio, portento — tendo uso astronômico (um sinal celeste uma constelação), emblemático (um brasão, um distintivo, uma contrassenha) — ou, em outros contextos, a marcação de um limite territorial, a lápide funerária, etc. Assim, quem semaínei propriamente produz uma sêma, isto é, sinaliza e, a partir disso, ordena, comanda, faz saber, faz conhecer, anuncia, revela, mostra, manifesta, indica, significa. Considerados nessa amplitude, os sémata estão espalhados pelo mundo que é, em seu conjunto, pleno de significados. O oráculo é, assim, um sinal entre a multidão de outros sinais que o cercam.
Mais que a partir de uma relação unívoca entre um significante e seu significado, o sentido do sêmaconstrói-se na relação com outros sinais. A ordem de Apolo a Édipo — é preciso punir o assassino de Laio — é um sinal cercado de outros, como a peste que assola Tebas e os próprios fatos que cercam a história de Édipo. Por isso, o sêma nem diz, nem oculta, mas desafia a perícia hermenêutica do recebedor.[13]
Além do oráculo formal — como o recebido por Creso — outras modalidades de revelação são importantes, num mundo em que tudo é sinal e, por consequência, pode ter mais de um significado. O voo dos pássaros, a observação das entranhas das vítimas sacrificiais, o acompanhamento dos astros e os sonhos, entre outras, são formas eficazes de manifestação de enigmas destinados a incitar os homens a perceber o que está imediatamente oculto, o que está para sobrevir e o que deve ser feito.
Não se deve incorrer no erro de entender o caráter enigmático dos sinais enviados pelos deuses como uma flutuação de sentidos, o que os tornaria ambíguos. Pelo contrário, um enigma (aínigma) nunca é ambíguo, designando propriamente uma fórmula em que há não deficiência, mas exatamente sobrecarga de sentido. É essa sobrecarga de sentido que, no fundo, gera a polissemia da fala enigmática, provocando uma redefinição da estrutura básica do sistema de linguagem, baseado na relação entre significante e significado. Numa perspectiva comum, romper essa relação implicaria inviabilizar o processo comunicativo. No caso do enigma, supõe antes testar os limites possíveis da própria linguagem.
Explico-me melhor: quando a Édipo compete purgar a cidade do assassino de Laio, a partir do que o oráculo sinaliza, ele está na posição do salvador de Tebas, que executa a ordem do deus e, ao mesmo tempo, é a impureza que provoca a perdição de seu povo. Na linguagem comum, ser salvador e ser causa de perdição se excluem. Pressupõe-se que quem é a salvação, por princípio, não é a perdição e vice-versa, do mesmo modo que, ao dizer pai, estou por suposto dizendo não irmão e, ao dizer marido, estou dizendo necessariamente não filho. Isto é, a relação comum entre o significante e o significado supõe a afirmação de uma determinada identidade e, em consequência, a negação de tudo o mais que não for o significado visado.
Entretanto, Édipo é, ao mesmo tempo, marido e filho de Jocasta, como é pai e irmão de Antígona (a qual, por sua vez, é filha e irmã de Édipo, bem como filha e neta de Jocasta!). O próprio Édipo revela, portanto, uma natureza enigmática, fazendo com que os termos aplicados a ele e aos que com ele estão relacionados rompam o nível comum da linguagem, apresentando a sobrecarga de sentidos própria da fala enigmática, a qual pode incluir o normalmente excludente.
Em grande parte, a falha do Édipo está em não perceber esse caráter enigmático da fala de Apolo, nem o caráter enigmático da sua própria natureza, enquanto recebedor do oráculo. Isso porque o sentido da fala que nem diz nem oculta depende do recebedor, que vem a ser um dos sémata que a constituem — e possivelmente o mais determinante de todos. Assim se entende a falta de Édipo ou o erro de Creso. Ambos receberam a mensagem oracular como se fossem tábula rasa, e não um dos elementos integrantes do próprio enunciado, contaminado por seu desejo. No fundo, a mensagem ocular, dirigida a um consulente, que a provoca indagando algo ao deus, não tem como fim o consulente, mas atravessa-o e, contaminando-se com os sémata que ele próprio lhe empresta, dirige-se a um outro recebedor.
Seria necessário, portanto, recusar tanto o esquema simples de comunicação
emissor |
→ |
mensagem |
→ |
recebedor |
quanto corrigir o esquema que acima sugeri, que faz interferir no processo de comunicação um quarto elemento,
emissor |
→ |
mensagem |
→ |
intérprete |
→ |
recebedor |
pois o recebedor faz parte da mensagem, que o atravessa sobrecarregando-se de sentidos dependentes de sua própria situação. O processo poderia ser representado do seguinte modo, em que se situa a posição do intérprete como o autêntico alvo da mensagem oracular:
emissor (deus) |
oráculo |
intérprete (mántis) |
||||
(lugar | palavra | consulente? |
Ora, se o recebedor desloca-se, assim, para a posição central (a qual, na verdade, condensa os elementos do processo simples de comunicação), não se trata de um nível de linguagem comunicativo — que diz isto é aquilo — mas de um nível de linguagem interpretativo ou enigmático, em que isso pode ser ou não ser simultaneamente aquilo. Tentando ser mais claro: o oráculo não se dirige a quem o interrogou, mas, passando através do consulente, dirige-se ao intérprete.Calcas e Tirésias, como os protótipos de adivinhos, são figuras lendárias que se apresentam dotadas de um poder oracular infuso. Representam uma sorte de idealização do mántis que, em inúmeros santuários, exercia uma verdadeira profissão cuja relevância era socialmente reconhecida. Aos adivinhos e intérpretes cabia tanto registrar a mensagem proferida pelos oráculos quanto interpretá-la para os consulentes. De uma certa forma, o consulente deve terceirizar a recepção da mensagem que busca, a fim de evitar mal-entendidos.Assim, embora se entenda que o intérprete deva ter uma propensão natural para sua função, é necessário também que tenha o conhecimento da arte da interpretação (isto é, da arte mântica). A mântica não é apenas um dom, mas igualmente uma espécie de ciência, em que, desde eras muito remotas, se acumulou uma sabedoria ancestral — muitas vezes derivada de observação empírica dos fenômenos. O intérprete (mántis) não pode ser apenas aquele que recebe a mensagem e a transmite, imutável, ao consulente, mas cumpre-lhe em geral, como afirma Artemidoro, “ajuntar por si mesmo alguma coisa devida a sua própria habilidade”.[14]Isso deve acontecer quando a totalidade dos sinais não é percebida (por exemplo, quando não se pode ver perfeitamente o que é revelado num sonho) ou, principalmente, quando o sentido dos sinais não é facilmente decifrável. Constantemente é preciso ter a habilidade de caminhar do fim para o princípio ou deste para o fim, estabelecer relações externas, provocar metástases de sentido e correlacionar sinais de diferente natureza (letras e números, por exemplo).Nesse contexto, os sinais decorrentes da situação do consulente têm relevância especial, como declara ainda o mesmo Artemidoro em seu tratado sobre a interpretação dos sonhos:
Poderá ser útil — mais que isso: não apenas útil, mas necessário — tanto para quem viu o sonho, quanto para quem o interpreta, que o oniromante saiba quem é o que viu o sonho, qual é sua profissão, qual a sua origem familiar, o que ele possui em termos de fortuna, qual o seu estado físico e a idade a que chegou.[15]
De fato, o próprio tratado de Artemidoro (Oneirokritikón) apresenta um esquema em que se detalham as circunstâncias experimentadas em cada tipo de sonho, esclarecendo-se, entretanto, os sentidos possíveis apenas em vista da natureza do recebedor.Cito apenas um exemplo suficientemente claro: se alguém sonha que está sendo dado à luz por uma mulher qualquer, isso pode ter os seguintes significados:
- para um pobre, é bom: pois terá alguém que o alimentará e tomará conta dele;
- para um trabalhador manual é ruim: pois os bebês são inativos e têm as mãos enfaixadas;
- para um rico, isso significa que ele não é senhor de sua casa, mas é governado pelos outros: pois os bebês são governados pelos outros;
- para um marido cuja mulher não esteja grávida, significa privação da mulher, pois os bebês não têm relações sexuais com as mulheres;
- para um marido cuja mulher esteja grávida, significa que terá um filho totalmente semelhante a ele: pois assim lhe pareceria que o recém-nascido é ele próprio;
- para um escravo, significa que ele é amado por seu senhor e será perdoado se cometer uma falta, mas não libertado: pois os bebês, mesmo nascendo livres, não são senhores de si mesmos;
- para os atletas, é um sonho mau: pois os bebês não andam nem correm;
- para quem está no estrangeiro, isso significa retorno para casa: pois ele voltará a seu ponto de partida, como o recém-nascido está no ponto de partida;
- para o doente, este sonho prediz a morte: pois os mortos são envolvidos em faixas, como os bebês — e a relação que tem o começo com o fim é a mesma que tem o fim com o começo;
- para quem quer fugir, esse sonho não permite que escape, pois os bebês não podem evitar o que está diante deles;
- para o que acusa num processo, o sonho é perigoso: pois ele não conseguirá persuadir os juízes, uma vez que sua voz, como a dos bebês, não é mais que um balbucio;
- para quem é acusado, quem defende e sobretudo para quem teme ser condenado, o sonho não é perigoso: pois as crianças, se cometem uma falta, são julgadas dignas de perdão.[16]
Observe-se como, de acordo com o recebedor, o sentido pode variar da felicidade para a desgraça, da vida para a morte. Esse critério, que soma a observação de um fenômeno à consideração daquele em que ele se manifesta, é curiosamente semelhante à prática médica, em que não só a doença, mas igualmente a natureza do doente deve ser considerada para a elaboração do diagnóstico.[17] Note-se, por outro lado, como em nenhum momento se pode acusar o sinal (neste caso: o sonho) de ambíguo — ele dá uma clara indicação do que irá acontecer, mas essa indicação não é imediatamente apreensível nem unívoca, devendo ser depreendida a partir da tensão significativa com o recebedor.É dessa forma, num mundo em que tudo é potencialmente signo, que o deus sinaliza para os homens de modo singular. Esse sinalizador ultrapassa a natureza do discurso humano, na qualidade de uma mensagem enigmática, porque sobrecarregada de sentidos, que, como as flechas certeiras de Apolo, sempre atingem os alvos visados. Sua eficácia, entretanto, depende da habilidade de intérpretes que fazem falar os sinais que o deus emite a partir de seus oráculos.
Derivas analíticas agradece a Jacyntho Lins Brandão pela gentileza e disponibilidade em colaborar com a republicação deste artigo.
NOTAS
Conferência pronunciada na Biblioteca Aílson Braz Sena da EBP-MG e publicada na revista Curinga n. 8. Belo Horizonte: EBP-MG, 1996.
Professor da Universidade Federal de Minas Gerais, atualmente ocupa o cargo de professor titular de língua e literatura grega. Seus principais trabalhos são na área de literatura grega (Luciano de Samósata, o romance e as teorias literárias gregas), língua grega (ensino do grego antigo) e filosofia grega (Platão). Publicou ainda obras de ficção.
[1] Para uma relação dos oráculos gregos e suas características, ver BURKERT, 1993, p. 233-240. Tratei da adivinhação no segundo século em BRANDÃO, 1991, p. 123-133.
[2] Sobre o oráculo de Delfos, a respeito do qual temos um grande número de informações procedentes dos autores antigos, bem como dados arqueológicos que nos garantem sua excepcional importância, ver DELCOURT, 1955.
[3] Ilíada, I, 68-100.
[4] Édipo rei, 95-104.
[5] Édipo rei, 316 ss.
[6] Heródoto, I, 46.
[7] Heródoto, I, 47.
[8] Heródoto, I, 49.
[9] Heródoto, I, 53.
[10] Heródoto, I, 91.
[11] Cf. Alexandre ou o falso profeta, uma violenta denúncia da falsidade dos oráculos, apresentados como um negócio milionário cujo objetivo é apenas o lucro e cuja estratégia se baseia em ludibriar os fiéis.
[12] Logo após a consulta sobre se deveria fazer a guerra contra os persas, Creso se dirigiu mais uma vez ao senhor de Delfos, perguntando se seu reinado seria de longa duração), o que implica saber se seu reino cairia ou não proximamente). Obteve como resposta:
Quando um mulo (hemínos) se tornar rei dos Medas,
então, lídio efeminado, para as margens do Termo pedregoso
foge; não fiques parado e nem te envergonhes da covardia.
Creso se tranquilizou pensando que seria absurdo admitir que, em alguma época, um mulo (literalmente, um semiasno) pudesse reinar sobre os Medas. Mais tarde, ouviu de Pitonisa a seguinte explicação, que mais uma vez apontava seu erro de compreensão: “Creso não compreendeu a resposta de Apolo com relação ao mulo. Ciro era esse mulo, por pertencerem os autores de seus dias a duas nações diferentes, sendo o pai de origem menos ilustre que a mãe; esta era natural de Média e filha de Astíages; o outro era persa e súdito da Média. Embora inferior em tudo, havia desposado a soberana” (Heródoto, I, 55-56; 91). A chave para a compreensão do oráculo está no fato de que os mulos e as mulas (ou mulatos) são o resultado do cruzamento entre as espécies cavalar e asinina (cruzamento de égua com asno ou de burra com cavalo). Nesse sentido, o termo grego é significativo: hemionos (semiasno).
[13] Um magnífico exemplo dessa situação se encontra em Os sete contra Tebas, de Ésquilo, em que se impõe a Etéocles o desafio de interpretar corretamente um conjunto amplo de sinais, desde os sématapintados nos escudos dos inimigos, aos fornecidos pelos adivinhos e aos percebidos pelo coro de dentro da cidade sitiada. Tratei do assunto em Ver, ouvir, interpretar: a propósito dos “Sete contra Tebas”, de Ésquilo,Clássica, n. 2, p. 69-87, 1989. Ver também P. Vidal-Naquet, Os escudos dos heróis: ensaio sobre a cena central dos Sete contra Tebas. In: VERNANT; VIDAL-NAQUET, 1991, p. 183-220.
[14] Artemidoro, I, 11.
[15] Artemidoro, I, 9.
[16] Cf. Artemidoro, I, 13.
[17]Ver BRANDÃO, 1990, p. 1-20.