Louise Amaral Lhullier
Em Florianópolis, há um museu diferente de qualquer outro. O Mundo Ovo de Eli Heil é um conjunto de jardins e edificações onde essa artista catarinense morava, trabalhava e mantinha uma exposição permanente de suas obras.
A arte de Eli – pintura, desenho, escultura, cerâmica – é singular, difícil de classificar. Cores vibrantes, criaturas fantásticas, formas arredondadas constituem sua obra, lado a lado com outsiders como Aloïse e Scottie Wilson[1].
Além disso, Eli ofereceu algo muito valioso para a psicanálise: seu testemunho sobre a catástrofe subjetiva que abalou sua vida ordenada de jovem dona de casa e professora e seu árduo e lento processo de construção de um novo mundo, sustentado por sua arte. Buscando capturar em prosa e versos rimados algo dessa experiência, ela testemunhou sobre um sofrimento atroz que a invadiu e a tomou por completo, durante anos, e que identificamos como “além do princípio do prazer” (Freud, 1920).
Tudo começou, conta Eli, quando tinha 25 anos. Sentia-se forte e bem-disposta e já era mãe de uma menina quando nasceu seu segundo filho, um menino. Dois dias depois do parto, começou a sentir um sufocamento, uma agonia. O médico diagnosticou grave bronquite asmática. Mas, ao resumir esse momento inaugural e os oito anos que se seguiram, Eli não se prende às explicações da ciência ou do senso comum. Sua fala e sua escrita remetem diretamente ao mundo de seres fantásticos, emoções exacerbadas, sensações corporais e processos raros do qual emergiu sua obra. Desde o início, encontra-se em sua narrativa, reiteradamente, o significante que veio nomear e, de certa forma, organizar seu novo mundo: O OVO começou a borbulhar. O OVO começou a ferver. Parti para uma gravidez mental. Foram oito anos de sofrimento. Foram cinco anos de cama.[2].
Quatro anos mais tarde, um de seus irmãos foi morar em sua casa. Ao vê-lo chegar, ela diz ter experimentado um sentimento de fusão, de completude, que perdurou: Éramos dois seres num só.[3] Essa identificação com o irmão parece ter sido um apoio importante até que encontrasse, pela arte, outra forma de sustentação, mais eficiente: Essa criatura, durante todas as minhas agonias, me deu alegria, ternura e apoio[4].
No oitavo ano, algo mudou. Eli se refere ao grande dia em que o irmão trouxe para casa um quadro de um amigo pintor, ante o qual ela afirmou: Isto eu também faço[5]. A partir de então, ambos começam a pintar. Ele desiste logo e, daí por diante, dedica-se a apoiar a irmã em seu devir artista. Começou comprando as tintas. Depois, fez muito mais, organizando, no campo simbólico, toda a estrutura material, jurídica e administrativa do Mundo Ovo. Mas isso veio bem mais tarde.
Esse grande dia marca o surgimento da artista, segundo ela, através da expulsão dos seres contidos, doloridos, em grandes quantidades, num parto colorido[6], pois O OVO já estava bicudo[7]. Sua primeira pintura, aliás, mostrava uma galinha e um Ovo bem grande[8] com a inscrição A rainha do galinheiro põe um ovo bem grande, de um lado, e uma boa fritada, de outro, sob o ovo.
Pôs-se a trabalhar em ritmo intenso, até a exaustão, mas não encontrava nisso nenhuma paz: Era um entusiasmo incrível, ao mesmo tempo já era sofrimento, não sei como era aquilo; comecei e não parei. E fiz o terceiro, o quarto, o quinto (...) eu não podia mais parar. Passei a ter o sistema nervoso bem abalado[9].
A violência desse processo fica evidente quando ela escreve, por exemplo, que: Simplesmente vomitava. Não parava mais, a ponto de ter visões. Noite e dia eram a mesma coisa. [...]. O tempo, o corpo e o espaço eram poucos para mim. Tornei-me compulsiva[10]. O gozo que a invadia não encontrava outro limite que o colapso do corpo, quando ela desfalecia, exaurida, e dormia por algumas horas. Descansava só o suficiente para poder retomar o trabalho, tomada na mesma espiral de entusiasmo e sofrimento.
Ovo, óvulos, ovário, gravidez mental, parto colorido de seres doloridos, grávida de criações. Ela fala de seu fazer artístico fazendo uso de significantes que remetem diretamente a esse território da mulher-mãe, à concepção, à gravidez e ao parto. Seu companheiro, que sempre a apoiou e incentivou, mantendo-se a seu lado até morrer, não se destaca em seu relato. Sabemos mais dele pelas histórias contadas por terceiros.
Nomeia seu atelier Sala de Parto, suas produções são os filhos de seu cérebro, resultado do trabalho de um monstrinho doce que o habita, composto de cabeça e cauda, e que a perturba, querendo criar incessantemente[11]. Nos desenhos, a semelhança entre o monstrinho e a imagem de um espermatozoide é flagrante.
O sofrimento está sempre presente na ficção por meio da qual explica seu processo criativo. Fala de si como uma pessoa que [...] sofreu, chorou muito para gerar como filhos a arte[12]. Descreve em termos muito vívidos o sofrimento físico associado à expulsão dos seres: convulsões do corpo, grande agitação e vômitos. No entanto, afirma, sua arte foi sua salvação. Quanto mais intensa a agonia, tanto mais trabalhava[13].
Os períodos de intensa atividade se alternavam com os de profunda depressão. Neste polo, seu corpo vacilava e, às vezes, caía. Era necessário um esforço para evitar que perdesse esse corpo vazio – em contraposição à mente cheia – por despedaçamento, por decomposição, por evaporação... E as várias fases de seu trabalho vão refletindo cada movimento, que ela própria aponta e nomeia.
Logo, a casinha onde morava ficou completamente tomada pela sua produção, não havia mais lugar para nada. Então, algumas pessoas do circuito artístico-cultural da cidade se mobilizaram e conseguiram um espaço para acomodar suas obras, o que resolveu o problema até o início dos anos 1980, quando se apresentou novamente, especialmente porque, durante vinte anos, ela resistiu a desfazer-se do que produzia.
Chegou então o momento em que isso também mudou. Angustiadíssima, ela decidiu pintar uma série de painéis com o objetivo de vendê-los e levantar fundos para a construção de um lugar onde tivesse espaço suficiente para viver e trabalhar à vontade. Consentir em separar-se dessas e, mais tarde, de algumas outras obras foi muito difícil. Mas foi também fundamental para o que ela própria considera uma solução para sua vida após a catástrofe que experimentara. Os valores assim arrecadados possibilitaram a construção, num amplo terreno às margens de uma rodovia da Ilha de Santa Catarina, um conjunto de edificações que nomeou O Mundo Ovo de Eli Heil, para o qual se mudou com a família, suas obras e seu ateliê em 1987. Assim, O OVO se concretizou, fora, no mundo, oferecendo-se ao olhar do Outro, e com ele os pequenos monstros de olhos esbugalhados, os seres fantásticos, os filhos do cérebro de Eli, objetos elevados à dignidade da arte.
Esse arranjo notável aponta um sinthoma, acontecimento do corpo que se goza no parto criativo. Lacan localizou o gozo da escrita em Joyce como uma forma de extração do objeto voz – as palavras impostas. O testemunho de Eli faz pensar em algo semelhante: uma localização do objeto olhar mediante a invenção desse admirável Mundo Ovo, que pode lhe proporcionar certo apaziguamento em relação às visões que a atormentaram durante mais de vinte anos.
[1] Como ocorreu na XVI Bienal de São Paulo, na qual dezessete de suas obras compuseram a exposição de Arte Rara (Uncommon Art).
[2] Heil, Eli. Vomitando os sentimentos. Florianópolis, Fundação O Mundo Ovo de Eli Heil, 2000. p. 17.
[3] Idem, p. 23.
[4] Id., p. 23.
[5] Idem, p. 17.
[6] Id., p. 17.
[7] Id., p. 17.
[8] Id., p. 23.
[9] Lorenz, J. A obra plástica de Eli Heil. Florianópolis: FCC, 1985. p. 32.
[10] Heil, op. cit., p. 23.
[11] Heil, op. cit., p. 29.
[12] Id., p. 79.
[13] Garcia, Ivanir Barp. La sublimación como um recorrido de la pulsión. Buenos Aires, Universidad Del Salvador, Facultad de Psicologia, 1991, p. 121. Tese de doutorado.