Revista Derivas Analíticas - Nº 20 - Março de 2024. ISSN:2526-2637
Passagens femininas em Walter Benjamin[1]
Maria Josefina Sota Fuentes
Psicanalista
Analista Membro da Escola (AME)
pela Escola Brasileira de Psicanálise (EBP)
e Associação Mundial de Psicanálise (AMP)
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Rolf Tiedemann, o editor alemão de Das Passagen-Werk, esclarece que as reflexões teóricas e interpretativas que a obra mobiliza empalidecem diante da quantidade monumental de citações, comentários e materiais da coleta que o autor realizou em Paris, “a Capital do século XIX”. A decisão do editor foi a de manter o material como fragmentos de um trabalho em construção e jamais acabado, sem uma ordem que conferiria legibilidade e clareza ao texto, a fim de “manter a teoria e a intepretação de maneira ascética em segundo plano” (TIEDMANN, 2018, p. 15).
Assim, a própria arquitetura das Passagens conserva as peças desordenadas sem uma linearidade semântica nem univocidade do pensamento, compondo um mosaico de experiências diversas. O trabalho resulta em uma “constelação nova, inédita, se comparada a qualquer forma de apresentação comum” (TIEDMANN , 2018, p. 15) – ao menos no âmbito filosófico, uma vez que a estética não linear, dos fragmentos, rupturas e da incompreensão já era uma prática no espaço poético e pictórico (ROSA, 2009) que, inclusive, foi a fonte de inspiração para o filósofo frankfurtiano na crítica social à modernidade inaugurada com Baudelaire, na qual ele também se inscrevia.
As passagens benjaminianas convocam o leitor a flanar sem rumo pelos descaminhos da cidade, na incoerência e errância como o poeta em état de surprise, apreendendo materiais ao acaso, cujas conexões exigem do próprio leitor o esforço para a construção de um mosaico precário, inconsistente e inacabado. O leitor é ele mesmo arrastado pelas infindáveis páginas que percorrem ruas, passagens, arcadas, labirintos e o jogo de espelhos na metrópole parisiense que não devolvem a promessa de unidade do Eu, mas sua imagem perdida.
Acaso não seria exigido ao leitor de Benjamin a mesma Tarefa do tradutor dos poemas de Baudelaire para o alemão, à qual ele próprio se dedicara com “amor e minúcia”? “O essencial em um poema não é a comunicação, nem sua mensagem” – escreve Benjamin (1923/2010, p. 18). A tarefa do tradutor exige a renúncia do desejo de preservar o sentido original que jamais se esgota na língua. Sempre mutante, instantâneo e precário, é preciso, pois, libertar o peso do sentido fixo e manter fidelidade tão somente à literalidade da palavra para recriar, em outra língua, um intentio de sentido. Entre fidelidade e liberdade, a tradução deve assim apenas “roçar ligeiramente o sentido”, fazendo-o ressoar em outra língua “como o vento toca uma harpa eólica” (BENJAMIN, 1923/2010, p. 22).
Para Benjamim, a tradução não seria a conexão entre o que duas línguas mortas comunicam, mas reveladora do alcance vivo e político da criação poética que desestabiliza o sentido fixo das convenções linguísticas e sociais, mantendo as “portas da palavra alargadas” no exercício da tradução permanente que a linguagem humana exige. Portanto, é também “símbolo do não comunicável” (BENJAMIN, 1923/2010, p. 108), do que resta de inominável na linguagem, do silêncio que dá vida à palavra. No aprendizado de uma língua estrangeira, o essencial não é aquela que se aprende, mas o abandono daquela tida como própria – o que exige a desapropriação das identidades culturais para alojar o estrangeiro que habita o familiar em cada língua.
Assim, a partir de uma concepção filosófica da linguagem, Benjamim confere à tradução e ao caráter poético inerente à linguagem o alcance subversivo, rompendo com a unidade do signo linguístico e seu complemento na comunicação. Para tanto, encontra no feminino (MATOS, 2006) a crítica às filosofias que se afirmaram dogmática e totalitariamente às custas da ilusão do logos viril da razão que o aniquila. Contrariamente ao modo pelo qual a mulher foi sistematicamente difamada pelos mesmos filósofos que ergueram as bases do pensamento ocidental ao longo da história, Benjamin encontrou nela a força política, epistêmica e afetiva necessárias ao filósofo frankfurtiano.
Portanto, ele critica o método socrático que força a resposta impondo-a como verdade única, como se as palavras fossem armas à serviço do logos da razão: “convencer é estéril”, escreve Benjamim (1928/1992, p. 40), “para os homens”. Enquanto os homens dialogam, Benjamin se interessa pela conversação feminina, resgatando a figura da Safo clássica e seus colóquios (como no fragmento “Sócrates”, de 1916), onde o silêncio – o lugar do feminino “nos confins da linguagem” –, o inexprimível, é condição criativa da palavra. Entre as mulheres, diz Benjamin (apud MATOS, 2006, p. 105), “o silêncio levanta-se, majestoso, sobre seu falar. A linguagem não confina a alma das mulheres [...]: gira em torno delas, tocando-as. A linguagem das mulheres não foi criada”.
Mas se ele prefere falar de masculino e feminino (e não da oposição entre sexos), é porque “um e outro se encontram assimilados entre si nos seres humanos, e assim considero os tipos homem e mulher como algo muito primitivo no pensamento da humanidade civilizada” (BENJAMIN apud MATOS, 2006, p. 183).[2] Deste modo, contrário às essências dogmáticas, encontra no feminino a presença da alteridade como potência criativa, a ruptura essencial dos dualismos que se sedimentam às custas da rejeição do heteros como tal.
No amor ao feminino à deriva na modernidade, a uma mulher nomeada no singular, o filósofo encontra também a crítica necessária ao mundo desencantado de Weber, que nasceu, para Benjamim, com o espetáculo da técnica nas exposições universais de 1855 – o advento do fetiche da mercadoria e da univocidade da ciência à serviço da sociedade de massas e de consumo capitalistas.
Despertar na cidade do sonho
Benjamin, leitor de Freud, inspirou-se também no Surrealismo para transportar a ótica onírica ao mundo da vigília, concebendo a cidade como a materialização do inconsciente na forma de um sonho a ser lido e interpretado. Não para promover a realidade sonhada, como no projeto surrealista, mas dele despertar. O capitalismo no século XIX já era esse mundo das coisas que fora sonhado por uma época, o pesadelo do qual, seguindo a via marxista, era preciso despertar. Assim, o “genuíno desprendimento de uma época” (TIEDMANN, 2018, p. 23) seria atingido com a “reviravolta dialética, o irromper da consciência que desperta” (BENJAMIN, 1927-40/2018, p. 660).
Aqui o historiador assume o lugar de intérprete do sonho que abateu a Europa, buscando, na experiência imediata vivida na cidade, as imagens enigmáticas do sonho a serem decifradas a partir do passado esquecido. A cidade convoca o historiador à rememoração do tecido histórico e a adotar o mesmo procedimento freudiano de decifração do inconsciente. Para recuperá-lo – tal como comenta Hanna Arendt (2007, p. 61) –, Benjamim se serve de inúmeras citações, pois “citar é nomear, e o nome, mais do que a fala, a palavra, mais do que a frase, é o que ilumina a verdade”, sendo esta um fenômeno acústico. Assim, Benjamin, ele mesmo inclassificável para Arendt (2007, p. 61), exercita o “pensar poeticamente” e procede como o “pescador de pérolas” que extrai do fundo do mar o que é estranho e valioso, convicto das “modificações marinhas, dos olhos abertos em pérolas e dos ossos viventes em coral”.
A Paris do poeta, diz Benjamin (1927-40/2018, p. 65), é a do seu olhar melancólico lançado sobre a cidade de idílio fúnebre, o olhar de quem ali se sente como um estranho. Como spleen, estilhaça o ideal da modernidade, submergindo na “cidade subaquática” para conhecer sua geografia. Em seus passos perdidos, “abandona-se a si mesmo”, “convida-se à ausência” (BENJAMIN, 1927-40/2018, p. 341), ele mesmo se estilhaça. Ali, “as imagens da mulher e da morte se interpenetram com uma terceira imagem, a de Paris” (BENJAMIN, 1927-40/2018, p. 65). As prostitutas, o fetiche, a moda, as arcadas, os anúncios, as citações, os vestígios não cessam. O passante se “asila na multidão”.
Com efeito, tal como propõe Laurent (2007), ao tomar a cidade como lugar de leitura da modernidade é o texto inconsciente que ali se atualiza. Freud já havia inaugurado essa via e não faltam exemplos de cidades, ruínas, palácios, templos, evocados em sua obra como “entidades psíquicas”, morada do “material do inconsciente”. Lacan (1966/2017, p. 13) inseriu-se nessa mesma tradição ao dizer, poeticamente, que “o inconsciente é Baltimore ao amanhecer”, o lugar onde os pensamentos não param e a estrutura do inconsciente se atualiza na fórmula da fantasia que fornece o enquadre da realidade.
Contudo, uma travessia decisiva foi feita por Lacan nos anos 70. Primeiro, com sua viagem ao Japão, revisita a “instância da letra” e concebe um “inconsciente litoral”, localizando no vazio da letra o lugar de acolhida do gozo que permanece fora do sentido, distinto do saber produzido na articulação significante do “inconsciente estruturado pela linguagem”. A metáfora do litoral elucida a função da letra de articulação entre campos heterogêneos (o vazio, o saber e o gozo fora do sentido), diferente de uma fronteira que separaria o território do Eu de um dark continent distante. No litoral, os rastros do mar na areia se refazem continuamente, desfazendo as muralhas das identificações e as certezas do Eu.
Com efeito, Lacan teve de “arrancar algo de si mesmo” – como diz Jacques-Alain Miller (2021, p. 34) –, dar um passo a mais em relação às suas passagens pela sexualidade feminina: “O que ele entreviu, pelo viés do gozo feminino, ele o generalizou até fazer dele o regime do gozo como tal”. Nem essência, nem propriedade d´A mulher que não existe, o gozo não-todo, infinito e não simbolizável, permanece como um real irredutível “na dialética falocêntrica”. Assim, o feminino como o lugar da alteridade – da diferença, não relativa entre opostos, mas do Outro absoluto – é também um modo de gozo que não se elimina, nem mesmo com as mais iluminadas “reviravoltas dialéticas” do intérprete esclarecido. E, se ao final do seu ensino, Lacan (1977-78, s/p) chega a enunciar que o “inconsciente é exatamente a hipótese de que não se sonha apenas quando se dorme”, é porque não nos desvencilhamos desse real frente ao qual, efetivamente, qualquer teoria e intepretação empalidecem. O pas-tout par tout (MILLER, 2005, p. 109) que se esparrama por toda parte, arrasta o sujeito, sem ponto de basta, ali onde ele não mais se encontra.
Assim, nem toda cidade se deixa ler com a rememoração da história das pérolas extraídas da “cidade submersa” (BENJAMIN, 1927-40/2018, p. 66). E quando esse laço discursivo se perde, é o funcionamento da letra que se impõe atualizando o regime do não-todo. Dilacerada com as “refrações do significante” (LAURENT, 2007) na perpétua tradução do que não cessa de não se escrever, a cidade torna-se o “império do vazio” (LAURENT, 2007) sob a modalidade de pensamentos a serem lidos que não cessam de se impor, mas cuja leitura jamais se alcança. “Na rua é preciso ler o que nunca foi escrito” (HOFMANNSTHAL apud BENJAMIN, 1927-40/2018, p. 701), evoca Benjamin.
Contudo, nesse empuxo ao ilegível, foi Lacan quem soube ler os efeitos incalculáveis do feminino, ali onde A mulher que não existe pode se apresentar no real de um gozo infinito, nem sempre desejável.
Asja Lascis, “reencanto” do mundo
Não é de se estranhar que tenha sido justamente nesse terreno que Benjamin encontra uma função para o amor, reunindo a experiência erótica e epistêmica do filósofo moderno. A mulher amada é a mulher nomeada, conclui Olgária Matos (2002, p. 119), pois, para Benjamin, “ama-se a amada em seu nome”. É o amor à palavra que cria a realidade do nome, cria a aura em torno de uma mulher que condensa a experiência de um amor carnal sem ser fetichista, divino sem ser Deusa, através do qual se vislumbra Outra forma de viver e cumpre sua função paradoxal: “comunica o incomunicável” (MATOS, 2006, p. 199). Ali, as diferenças se avizinham.
Em 1928, Benjamin publica o livro Rua de mão única. O nome dessa rua ele o revela logo na dedicatória: “Esta rua chama-se/ Rua Asja Lascis,/ em homenagem àquela que,/como engenheiro,/ a rasgou no íntimo do autor” (BENJAMIN, 1928/1992, p. 35). Asja Lascis, a revolucionária russa com quem viveu uma paixão, caminha como guia à sua frente, torna legível a experiência na cidade, dando “um sentido a essa rua e um significado político à crise da República de Weimar” (MATOS, 2006, p. 191).
Uma mulher que aloje um rumo, inspiração para o amor e causa do desejo, em consonância com um modo singular de gozar do inconsciente, será aquela que cumprirá sua função de dar à letra desgarrada um novo destino: o de aninhar com um nó os elos perdidos que as passagens errantes na cidade não-toda desencadeiam: “Assim como os pássaros buscam proteção nos esconderijos da folhagem da árvore, também as sensações se refugiam nas rugas sombrias, nos gestos deselegantes e nas manchas despercebidas do corpo amado, em cujo esconderijo se refugiam em segurança” (BENJAMIN, 1928/1992, p. 46).
Referências
ARENDT, H. Introducción a Walter Bejamin. In: BENJAMIN, W. Conceptos de filosofía de la historia. Buenos Aires: Terramar, 2007, p. 7-63.
BENJAMIN, W. Rua de sentido único. Lisboa: Relógio d’água. 1992. (Trabalho original publicado em 1928).
BENJAMIN, W. La tarea del traductor. In: Obras. Vol. 1, Livro IV. Madrid: Abada, 2010. (Trabalho original publicado em 1923).
BENJAMIN, W. Passagens. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2018. (Trabalho original redigido em 1927-40).
LAURENT, É. “Cidades analíticas”. A sociedade do sintoma: a psicanálise, hoje. Rio de Janeiro: Contracapa. 2007, p. 91-110.
LACAN, J. Acerca da estrutura como imisção de uma alteridade prévia a um sujeito qualquer (Conferência em Baltimore). Opção Lacaniana: Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, n. 77, p. 9-22, ago. 2017. (Trabalho original proferido em 1966).
LACAN, J. Le séminaire, livre 25: Le moment de conclure. Paris, 1977-78. (Trabalho inédito).
MATOS, O. Benjamin e o feminino: um nome, o nome. In: As mulheres e a filosofia. São Leopoldo: Unisinos, 2002.
MATOS, O. Discretas esperanças: reflexões filosóficas sobre o mundo contemporâneo. São Paulo: Nova Alexandria, 2006.
MILLER, J.-A. L’être et l’un. La cause du désir. Revue de Psychanalyse, n. 107, 2021.
MILLER, J.-A. El Otro que no existe y sus comités de ética. Buenos Aires: Paidós. 2005.
ROSA, M. Da cadeia significante à constelação de letras: os signos do gozo. Àgora, v. 12, n. 1, p. 53-73, 2009.
TIEDMANN, R. Introdução à edição alemã. In: BENJAMIN, W. Passagens. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2018.
Notas
[1] Versão reduzida do texto publicado na íntegra em: Passages féminins chez Walter Benjamin. La cause du désir. Revue de Psychanalyse, n. 103, p. 73-78, nov. 2019.
[2] Carta de Benjamim a Herbert Blumenthal (23/06/1913).