A Psicanálise e os paradoxos da política da diferença

Heloisa Caldas
Marco Antonio Coutinho Jorge
Sonia Alberti

 

Paradoxos da política da diferença: talvez, o tema, por excelência, da Psicanálise. A Psicanálise se constituiu ao fazer emergir, para a consideração do ser humano, a diferença que ele porta em si mesmo. Foi precisamente o discernimento da alteridade radical que o inconsciente presentifica em todos os sujeitos e os faz divididos o que fundou a Psicanálise. Em 1892, Freud nomeou essa alteridade de modo embrionário por um termo negativo, a contravontade, Gegenwille. Pouco tempo depois, em 1900, essa alteridade adquire um nome positivo: o desejo, Wunsch. Ela é evocada na pergunta que Lacan faz, em “A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud”, de 1957, ao apontar a bússola da ética da Psicanálise, segundo ele formulada por Freud em termos comoventes, no célebre aforismo Wo Es war soll Ich werden: "Qual é, pois, esse outro a quem sou mais apegado do que a mim, já que, no seio mais consentido de minha identidade comigo mesmo, é ele que me agita?".

O advento do acesso à diferença radical que é aquela que cada um comporta e que reside no horizonte da experiência psicanalítica − pois, como postulou Lacan, em 1964, no Seminário 11, Os quatro conceitos fundamentais da Psicanálise, a Psicanálise visa obter a diferença absoluta − trouxe à baila, a um só tempo e inevitavelmente, as forças recalcantes e repressoras que obstaculizam seu advento. Empreende-se a política da diferença e os paradoxos dessa política a ela se acoplam imediatamente em sua empreitada. A liberdade inerente à associação do analisando, única regra que sustenta toda a experiência, é uma conquista a ser realizada por ele. Ela não se dá logo de início nem de uma vez por todas. Além disso, ela também pode evocar o pedido de encarceramento vociferado pelo supereu.

A política da Psicanálise se distingue da política social mais ampla pelo seu trabalho, na experiência de análise, de escuta e leitura de sintomas, um a um, que podem convergir para o que chamamos de sintoma social. Como também observa Luis Izcovich, em “Psicanálise e política”, de 2018, "a questão da política da Psicanálise é a da finalidade da análise", ligada à ética do desejo.

Ora, isso implica um desejo de saber o que Lacan situou como o mais próximo ao desejo do analista. O desejo de saber do analista não se confunde com o desejo de saber da ciência porque, no caso da ciência, o saber pode andar sozinho. Os significantes se movem sem que o sujeito seja sua causa. Talvez a produção capitalista seja, em alguns aspectos, exemplo disso que se move, a despeito do sujeito do desejo, em especial na atualidade, alimentado pelo consumismo desenfreado do neoliberalismo.

Por um lado, os sintomas, no melhor sentido do termo, como resposta singular ao real, produzindo a diversidade em vários âmbitos da vida; por outro, os mercados logo se apropriam dessa diversidade criativa para formatá-la e contabilizar ganhos. Veja-se a onda de cirurgias estéticas de silicone nas nádegas: de um desejo, produziu-se uma oferta cirúrgica que, por sua vez, gerou uma demanda administrada por um mercado tão ativo que já conta até com charlatães.

O desejo do analista não lida com esse tipo de saber, tampouco é um suposto saber, ainda que essa suposição mova o dispositivo analítico. O SsS lacaniano aponta mais para a douta ignorância: douta porque sabe que há um saber a construir, e isso não pode prescindir da operação subjetiva na qual o saber é suposto; ignorância porque não sabemos a priori de que saber se trata. Mas também ignorância douta, porque sabemos que o saber não é todo, que se há um inconsciente saber, também há o inconsciente real.

Originário do vocábulo grego paradoxos, para (contra) a doxa (opinião, senso comum), proposição contraditória, o paradoxo é como uma figura de linguagem, contém o equívoco. Como figura de linguagem, é também um oximoro, expressão muito comum na retórica clássica quando se colocam palavras de significados opostos lado a lado, criando um paradoxo que reforça o significado das palavras combinadas, como em douta ignorância, oximoro de Nicolau de Cusa, referência para Lacan.

Na filosofia moral, o paradoxo tem um papel central nos debates sobre ética. Por exemplo, o ditado tão comentado por Freud: "amar o seu próximo como a si mesmo" não apenas contrasta, mas está em contradição com um "próximo" armado tentando ativamente matar você: você não será capaz de amá-lo. Atacá-lo preventivamente ou restringi-lo não é tampouco, usualmente, entendido como algo amoroso. "A liberdade ou a morte!", lembra Lacan no Seminário 11, pergunta que se fazia ao condenado à guilhotina na Revolução Francesa, dando-lhe a chance de libertar-se, caso renunciasse a suas convicções, mas que na realidade era um paradoxo, pois a única liberdade do condenado é a de se sentir livre para reafirmar aquelas convicções que constituíam a razão pela qual estava sendo condenado à morte.

A física observa igualmente muitos comportamentos paradoxais, por exemplo, o copo com autofluxo de Boyle: na imagem ele pode preencher-se a si mesmo, mas uma máquina de moto contínuo é impossível, como é impossível um significante significar-se a si mesmo.

 

 A diferença e o Um

Em lógica também há vários paradoxos. Lacan cita o − frequentemente atribuído a Bertrand Russel − paradoxo da história de um barbeiro que, ao mesmo tempo, se barbeava e não se barbeava. Único barbeiro de um exército em que cada um não se barbeava, era o barbeiro que barbeava todos. Como então era ele próprio barbeado se ninguém se barbeava a si mesmo? Nenhum x se autobarbeava. Todo x era barbeado pelo único barbeiro. Quem barbeava o barbeiro? Ninguém. Então não todo x era barbeado pelo barbeiro, contradizendo a premissa de que o barbeiro barbeava todos.

"O desejo do analista não é um desejo puro", observava Lacan em 1964, no Seminário 11. Como dito acima, "é um desejo de obter a diferença absoluta", distinguindo a diferença estrutural da linguagem, que é relativa e se dá pela oposição: a direita oposta à esquerda, o rico oposto ao pobre, o homem à mulher como na diferença de gênero. Não é a este tipo de diferença que Lacan se refere. A diferença absoluta se esclarece pelas formulações de Lacan no Seminário 19, ...ou pior, quando ele aponta que não se trata da diferença entre o Um e o dois, mas da diferença entre o Um e o zero, como anterioridade lógica do Um.

No zero, não há traço algum. O Um, ao contrário, é o primeiro traço. Um traço que parte não de uma comparação, mas da inexistência de traço. Assim, Lacan vai colocar que "há Um" como efeito de uma falta. Essa diferença é, então, absoluta porque advém do zero. Isso ajuda a pensar no que vem a seguir na frase do Seminário 11 citada acima: "a diferença absoluta intervém quando, confrontado com o significante primordial, o sujeito vem, pela primeira vez, à posição de ser assujeitado a ele". No Seminário 19, ...ou pior , de 1971-72, Lacan desenvolve o mesmo como "Há Um" (Il y a de l'Un). Um significante primordial, um significante sozinho em coalescência com um gozo, peça solta da linguagem relativizada, lalangue que penetra no corpo fazendo ressoar a pulsão, inaugurando um gozo pelo ab-uso do corpo, violento e traumático, do qual, sabemos só muito depois, quando o sujeito alcança dizer ter sido objeto. Uma experiência ímpar, da qual o inconsciente revela ser uma elucubração, "buscando na sua língua nada além da integral dos equívocos que sua história deixou persistir nela", como indica Lacan, em “O aturdito”, de 1972.

Nesse texto, Lacan parte do Um-orangotango, referindo-se a “Totem e tabu”, de Freud. A posição que encontramos, na leitura feita ao longo dos séculos, do Parmênides, de Platão, é aporética, indecidível. Nela, o Um é. Para Lacan, diferente disso, há o Um. Qual a diferença?

O Um é, de Platão, implica o Ser. Apesar de isso não articular a proposta necessariamente a uma ontologia, é o que acabou acontecendo ao longo da história da filosofia, fundando-a por associar o ser ao saber – e deixando tudo de fora disso que escapa ao saber... Lacan depreende o parlêtre como produto da impossibilidade de representarmo-nos, sem furo, pelo Um traço, o significante. A Psicanálise é, então, antifilosófica por isso, por propor o ser não do lado do saber, mas do lado do Real – o que é impossível de saber. Mas, para Lacan, o Parmênides de Platão termina por chegar à incompatibilidade do Um com o Ser. Senão, vejamos: "É a lógica do Ἕτερος [héteros] que deve ser iniciada, sendo remarcável que a ela chega o Parmênides, a partir da incompatibilidade do Um ao Ser", diz Lacan, em “O aturdito”, de 1972. Ou seja, ao contrário da Filosofia que, em sua história, deriva o Um de uma necessidade ontológica universal, Lacan deriva o Um do héteros ali onde acabou chegando o próprio Parmênides de Platão. É disso que Lacan vai partir, "há o Um" é a exceção que faz existir a universal: todos são submetidos à função fálica. Todos, é todos mesmo, com exceção do Um, que existe: existe um x para o qual não phi de x. Sem isso, as fórmulas da sexuação não se escreveriam... não haveria o duelo – nem o elo – dos sexos, e isso funda a relação sexual como impossível porque, justamente, é a relação do Um com o dois que é o impossível.

Em seu segundo Teorema da Incompletude, Kurt Gödel, filósofo, matemático e lógico austríaco, conclui do paradoxo de Russel que a Teoria do Tudo é impossível: se o Um é o ponto de partida de todo número e por sê-lo produz outro, o dois, este, ou é também um – e aí não é diferente de um –, ou o impossível.

 

As emergências das diferenças no laço social

E é esse impossível que equivale à castração em Psicanálise, a determinar a diferença sexual. Radical, essa diferença é inominável e absolutamente enigmática e, por isso mesmo, na contramão da política da Psicanálise, que a sustenta em sua radicalidade, ela é alvo de todos os ataques do cientificismo contemporâneo. Os desenvolvimentos de Freud sobre a não existência da inscrição da diferença sexual no inconsciente – daí ter considerado a criança uma verdadeira teórica com suas "teorias sexuais infantis" – encontraram sua síntese no aforismo de Lacan: "Não há relação sexual".

As implicações desse aforismo se espalham por toda a teoria e clínica psicanalíticas, além de serem a fonte das mais poderosas repressões no seio da cultura. A homofobia reinante na cultura, apesar de todas as conquistas que os movimentos LGBTI+ realizaram nas últimas décadas, fala a favor de uma dimensão estrutural de repúdio à diferença radical, impossível de ser ultrapassada. Freud produziu, em “Análise terminável e interminável”, de 1937, um conceito a partir desse rechaço: o repúdio ao feminino.

Esse repúdio se traduz de diferentes formas, no sujeito e na cultura, e, como a homossexualidade é uma das exibições mais explícitas da inexistência da relação sexual e da impossibilidade de complementaridade entre os sexos, muitos ataques e violências se dirigem a ela. Sabemos que as análises dos próprios homossexuais revelam a necessidade de simbolizar a homofobia internalizada pelo sujeito, fonte de intenso sofrimento; assim como na cultura observamos a perseguição e o extermínio de homossexuais. Nesse caso da cultura, chegamos até a fazer trabalhar a hipótese de que a homofobia possa estar na base do empuxo à transexualidade observado em vários países hoje, inclusive no Brasil.

O héteros, a diferença, é a política da Psicanálise. Não a do ser, mas, ao contrário, a da falta-a-ser (Lacan, 1958). Deriva daí que o termo "sujeito" − esse que está do lado do todos − é falta a ser, esvaziada de identificações imaginárias, das racionalizações de um cogito filosófico e das esperanças substancialistas da biologia, como aponta Pernot em Du sujet de l'inconscient au parlêtre. Se para o silogismo aristotélico – articulado à lógica como ciência do real –, Lacan observa que não importa se o animal é branco ou não, então para o sexo – articulado à mesma ciência do real –, não tem a menor importância o fato de o parceiro ser do mesmo ou de outro sexo anatômico, ou de qualquer outra substância. Referir o sexo ao duelo é um jogo, uma equivocação, mais audível em francês: "duelo", em francês, "duel", equivoca com "duel" em "a relação dual". Em se tratando de estrutura, da estrutura do sexo, o fato de ela ser da ordem do duelo é justamente a razão de ela não ser dual, mas dois, em que pese o fato de esse dois implicar a diferença radical do Um. Daí o Outro sexo. O Um da heteridade implica o dois, o não-todo, o Outro sexo – que pode ser ou-não branco, ou seja, que não tem nenhuma qualidade de verdadeiro, como vimos no início, que não tem nenhuma substância biológica mesmo se, durante séculos, era identificado como sendo a mulher. Esse Outro sexo, esse dois, só se associa ao Um no imaginário de fazer Um, no imaginário do amor dual, furado na mais reles experiência: Não há relação sexual, isso não funciona.

A visita que o presidente eleito fez, no dia seguinte à apuração das urnas, ao mais escarnecido ativista político que levanta a bandeira da chamada "cura gay" e se apresenta como o representante das forças que se unem para condenar a homossexualidade em nome do mal que ela faz, é altamente significativa. Trata-se de uma mensagem homofóbica oficial dirigida a todos.

Apesar do aparente paradoxo, a homofobia é expressão do horror à diferença, pois a homossexualidade expressa justamente a impossibilidade de normatizar o encontro sexual, de fazer de conta de que não há o Um e o real. É o mesmo horror de que fala Freud em seu “O mal-estar na cultura”, texto que tinha intitulado inicialmente "A felicidade e a cultura"; em seguida, "A infelicidade na cultura"; até chegar ao que é: o mal-estar cujo apanágio é a relação entre os seres humanos. É também o mesmo horror em nós provocado diante do assassinato da jovem Marielle Franco: uma jovem negra, moradora da favela da Maré, formada em sociologia pela PUC, lutadora pelos direitos humanos, uma das forças renovadoras e progressistas da política brasileira, nela radicalmente diferente.

E ainda podemos associar: o incêndio do Museu Nacional, fruto do descaso do governo com a riqueza ímpar ali contida, grande parte de nosso passado sendo destruída em algumas horas – nossa história, nossos símbolos, nossa cultura e nossa ciência –, e a ameaça da destruição de nosso presente, infiltrado pela segregação, os incêndios de nossas matas, o descaso com os índios, a violência contra os negros. A negação das diferenças é que leva ao ódio ao outro aqui entendido, com Lacan, como radicalmente outro.

Emergências desse repúdio à diferença, crucial e emblemático, contrastam, por exemplo, com o que pudemos acompanhar quando o presidente do Uruguai, José Pepe Mujica, foi perguntado sobre o porquê de legalizar num só ano a maconha, o aborto e o casamento de pessoas do mesmo sexo. Sua resposta foi: "Apliquei um princípio simples: o reconhecimento da realidade". Esta resposta tão decidida causa espanto no mundo de hoje em que fake news e pós-verdade são fórmulas inscritas no corpo da sociedade e refletem precisamente o desconhecimento da realidade.

Reconhecer a realidade tem certamente muito a ver com a Psicanálise. Freud falou do teste de realidade e do princípio de prazer/realidade e mostrou com precisão que o princípio de realidade não é, como seria de se esperar a realidade, e sim a fantasia. Introduzindo o conceito de Real, um dos conceitos, juntamente com o objeto a, que qualificou como sendo sua contribuição à Psicanálise, Lacan retificou a problemática da realidade com a qual Freud se debateu ao longo de toda sua obra, não sem antes indicar o real ao falar, em seu ensaio terminal, como "aquilo que permanecerá para sempre inacessível...".

Os avanços da Psicanálise são efetivamente derivados − nunca é demais insistir − de uma ética própria à clínica da associação livre. Uma ética do desejo, esse inominável e inapreensível que conduz o sujeito e constitui sua realidade psíquica não sem a perda que a fantasia promove ao vir tamponar a castração que o fundou.

 

A não neutralidade do psicanalista

Nos recentes e devastadores eventos políticos brasileiros, um fato pareceu interessar diretamente ao psicanalista em sua existência na pólis: a questão da neutralidade do psicanalista. Ela foi invocada por alguns como uma necessidade absoluta, fora do campo da prática e sim na rede social, ávida de um posicionamento dos psicanalistas. Contudo, a questão se impõe: como pensar a neutralidade fora do âmbito do dispositivo psicanalítico? Ela pode ser sustentada? E nesse caso, deve sê-lo?

Por muitas décadas, a neutralidade do analista permaneceu uma noção que atravessaria toda a teoria da clínica analítica de modo bastante evidente: o analista deve se despojar de seus gostos e preferências para poder ouvir a posição fantasística a partir da qual o sujeito profere seu discurso; a interpretação deve utilizar as palavras do analisando, as quais permitem – e só elas – o seu reconhecimento da posição subjetiva que sustenta; o analista não deve falar sobre sua pessoa, pois a tela em branco que ele erige precisa poder receber com bastante nitidez a projeção da fantasia do analisando etc. Como observa Barbieri, em “O que a Psicanálise tem a dizer sobre política”, de 2017, houve um tempo em que psicanalistas não deviam discutir "temas como gênero, etnia, raça e arte [...], como se a Psicanálise se restringisse a um saber teórico e técnico sobre a neurose, e não houvesse nada que ela pudesse dizer a respeito de outros assuntos".

Então, se o desejo do analista não é puro, posto ser desejo de obter a pura diferença, não deveria ser neutro? Deveria ser o psicanalista aquele que não toma partido? Na realidade, Freud nunca usou o termo neutralidade em “Observações sobre o amor transferencial”, como aponta Jacques-Alain Miller em “Ponto de basta”, de 2017. Trata-se de um equívoco da tradução inglesa de Strachey que, posteriormente, em 1937, deu margem a um desenvolvimento de Edmund Bleger de uma "neutralidade benevolente". Freud, a rigor e em alemão, usou o termo Abstinenz, que deveria ter sido traduzido em português por abstinência, e Indifferenz para se referir à escuta flutuante, sem saber prévio, do analista com relação ao que espera encontrar. Se o analisando na associação livre não escolhe o que dizer; em contrapartida, o analista, na atenção flutuante, não escolhe o que escuta. Mas há algo mais a fazer além de escutar do lado do analista. Espera-se dele uma análise. Nesse sentido, o desejo do analista comparece em sua enunciação. Na "Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola”, Lacan aponta para isso: "O desejo do psicanalista é sua enunciação, a qual só pode operar se caso venha ali na posição de x". A indiferença freudiana é um meio, aponta Miller, que o analista usa para com esse x causar o desejo do sujeito em análise. Um desejo advertido dos efeitos das palavras e seus poderes sugestivos, entre outros, mas que não é puro porque depende da experiência do analista extraída de sua própria análise.

Fora do dispositivo psicanalítico, contudo, o analista prossegue sendo agora porta-voz do discurso psicanalítico, embora não seja exigido dele esse despojamento de sua subjetividade – aliás impossível, porque fora do dispositivo psicanalítico ele é um sujeito como qualquer outro. Fora do dispositivo analítico, o sujeito que no dispositivo é analista opera na própria divisão que lhe é intrínseca como sujeito, ou seja, a partir da indicação de Lacan, no Seminário 22, RSI, de 1974, segundo a qual "é indispensável que o analista seja ao menos dois: o analista para ter efeitos e o analista que teoriza esses efeitos".

Poderíamos associar os efeitos desse problema de tradução no texto de Freud (1915) sobre a transferência, “Bemerkungen über die Übertragungsliebe”, com aquele a que nos referíamos, com Lacan, sobre a tradução do Parmênides de Platão. Ao longo dos séculos que nos separam deste, o Um e o Ser foram amalgamados, velando o que o próprio Platão distinguira. Assim também, ao longo das décadas que nos separam de um século da publicação do texto de Freud, por algum motivo que certamente não é apolítico, se quis fazer crer que o psicanalista deve ser neutro diante do que mais singulariza o humano, indicado por Freud em O mal-estar na civilização, de 1930: o homem é o lobo do homem.

Diante da situação política que vivemos agora, o analista é convocado à reflexão. Veja-se, por exemplo, o debate possível entre Psicanálise e política a partir da culpabilização, em “A culpa na política brasileira atual: O que nos ensinam Freud e Hannah Arendt?", de Bianca Rodrigues e coautoras, de 2020. Lacan formulou, em “Introdução aos Nomes-do-Pai”, de 1963, com todas as letras uma posição em que uma suposta neutralidade não deve apagar o posicionamento do analista no campo de sua existência social quando afirmou com veemência, encerrando seu seminário de uma única lição sobre os nomes-do-pai: "Nunca, em momento algum, dei-lhes pretexto para acreditar que para mim não havia diferença entre o sim e o não". A mesma veemente posição é explicitada por Freud quando ele nos adverte, numa entrevista a Viereck, em 1926, de que "a tolerância para com o mal não é de maneira alguma um corolário do conhecimento". Com a Psicanálise que entendemos e sustentamos, a política é a de fazer valer o Ἕτερος, a diferença, para cada falta-a-ser que a ela se dirige. Uma análise é uma subversão que remonta à primeira escolha como sujeito do inconsciente, advento de uma subversão inaugural. Por isso, ela visa à diferença absoluta. Subversão é uma palavra que se originou do latim subversu e significa desestabilizar. Os dicionários dizem: revolta contra a ordem social, política e econômica estabelecida, vigente; insubordinação; oposição a normas, autoridades, instituições, leis. Uma análise é uma subversão. Na sua transmissão e na sua diversidade de ações na pólis, nos mais variados dispositivos de que se vale, o analista opera pela subversão, animado por um desejo, impuro, uma vez que advém de sua posição assujeitada de objeto, recolhida de sua própria análise. Assim, "o analista não é indiferente, ele não é aquele que não escolhe, pois tem uma ética [...] Uma ética da Psicanálise comporta que há uma escolha na própria posição do analista. Notemos, com Miller, em ‘Ponto de basta’, de 2017, que a palavra 'ética' não é a palavra 'moral' e ela inclui, de bom grado, a política".

Só assim, diante do mal-estar na cultura com o qual nos deparamos, podemos responder que se trata de criar, dar respostas a partir do desamparo, pois é da posição subjetiva primordial, a da falta-a-ser, que se institui o desejo. Não ceder de um desejo pela democracia.

Publicado originalmente em Trivium – Estudos Interdisciplinares, Rio de Janeiro,  v. 13, número especial, p. 3-11, mar. 2021. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2176-48912021000100002&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt 

 

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