Como encaminhar o tema?

Maria Silvia Garcia Fernandez Hanna

 

 

Os tempos mudavam, no devagar depressa dos tempos.[1]

 

 

As palavras do poeta dizem sobre os tempos que mudam, e certamente não ficamos incólumes frente a esse estado de coisas.

Entendemos que a escolha do tema do próximo encontro do Campo Freudiano do Brasil se encontra alinhada à política lacaniana da AMP, que desde os anos 80[2] vem refletindo sobre as modificações sintomáticas promovidas pelas modalidades dominantes de discurso.

Nesse sentido, tomamos o título como mais uma oportunidade de elaboração sobre a resposta do analista aos sintomas produzidos na atualidade no marco do declínio do Pai[3]. Lembramos que J. Lacan já se referia ao declínio do Pai no escrito de 1936, “Os complexos familiares”[4], situando-o como um dos fatos que teria propiciado o surgimento da psicanálise.

Situamos a clínica psicanalítica como uma experiência decorrente do discurso, enquanto uma forma de gozo que se articula pela lógica da sexuação fundada sobre “Não há relação sexual”.

Ainda que acompanhemos atentamente as mudanças na sociedade, especialmente nos grandes centros urbanos, produzidas pelo discurso do capitalismo selvagem e o avanço das descobertas da ciência e suas aplicações – que atingiram e atingem as tradições, transformando os costumes, a forma da família, a relação com o trabalho, a política na cidade e o próprio corpo, entre outros –, em alguns casos ficamos quase estupefatos com os ditos veiculados nas falas que nos são endereçadas, e também nas mídias e nas redes sociais. Recorto aqui dois exemplos: “Carrego seu bebê na barriga por R$50.000.”; “Vendo sêmen para fazer inseminação caseira.”. Isto não é sem consequência para a psicanálise!

Percebemos nessas ofertas que o corpo se transforma em um pedaço de carne, um objeto de troca que tem um valor mercantil.

A via do discurso capitalista

Acreditamos que a elaboração sobre o discurso capitalista, apresentada por J. Lacan em 1972, em uma conferência em Milão[5], pode ser um bom caminho para ordenar alguns dos sintomas e fenômenos de nossa época, em especial aqueles que não contam com a função do falo.

Apresentamos a seguir alguns pontos extraídos do texto de L. Gorostiza[6] que nos parecem interessantes, através dos quais o autor desenvolve a hipótese de que a elisão do falo seria a causa dos amores líquidos[7] e a declinação da transferência[8].

Lembramos ao leitor que os discursos construídos por J. Lacan[9] são quatro – o do mestre, o da histérica, o universitário e o do analista –, os quais colocam as letras que conformam a álgebra lacaniana – S1 (significante mestre), S2 (o saber), $ (sujeito) e o objeto a (mais de gozar) – nos lugares fixados como: o agente, o outro, a verdade e a produção. As letras mudam em cada discurso através de uma rotação que se dá no sentido dos ponteiros do relógio, produzindo assim as diferentes formas de discurso.

Como mencionamos acima, J. Lacan constrói um outro discurso denominado discurso do capitalista, concebido a partir de uma modificação do discurso do mestre e que não obedece à rotação acima citada. Trata-se de outra operação. Vejamos os lugares presentes em todos os discursos:[10] 

Agente outro

Verdade produção 

Podemos perceber no esquema, com bastante clareza, onde se produz a alteração do discurso do mestre. O sujeito ($) passa a ocupar o lugar do agente e o significante mestre (S1) fica no lugar da verdade. Há outra modificação no discurso capitalista que apaga a seta no andar superior e o signo de duas barras (//) no andar inferior do discurso do mestre. Isto indica que os termos estão em “uma continuidade que elide a impossibilidade estrutural que os discursos tradicionais preservavam”[11].

Lembremos que a presença da impossibilidade estrutural nos discursos força a dar uma espécie de salto a cada rotação dos termos quando se produz a mudança de um discurso para outro. Em cada rotação, em cada salto se produz o signo do amor.

No caso do discurso capitalista encontramos todos os termos em continuidade, portanto, sem obstáculo para se movimentar. Aí não encontramos o amor como signo e sim o excesso de gozo.

Esse aspecto é de suma importância e nos oferece uma pista para ordenar o amor e suas condições nos dias de hoje, bem como as mudanças sintomáticas que enfrentamos na clínica, encontrando, entre outras: a disseminação das adições seja a drogas lícitas ou ilícitas, as depressões, inibições, manias, todas como soluções que pretendem escapar, curto-circuitar a barreira da impossibilidade estrutural presente nos discursos.

Nesse sentido, parece-nos plausível a hipótese sustentada por Leonardo Gorostiza[12]: a aliança entre o discurso capitalista e o discurso da ciência pode favorecer e induzir a elisão do falo. A ciência e a tecnologia se colocam ao serviço do capitalismo, indo na mesma direção, escamoteando o intervalo produzido pela impossibilidade.

Esse fato discursivo que coloca tudo em continuidade e tende a obturar a função da falta – tão importante para dar lugar a todas as relações possíveis entre o sujeito e o objeto pequeno a enquanto suporte do desejo – resulta na emergência de um gozo desmedido. Assim, constatamos a presença de sujeitos aprisionados a um não querer saber, a uma dificuldade de amar e desesperados para se livrar a qualquer custo (drogas-intervenções nos corpos entre outras) do mal-estar profundo que os habita. Muitos deles comandados por: Vamos produzir!!! Sem limites! Vamos gozar sem barreiras!!! Vamos ser felizes!!! Vamos ganhar muito!!! Vamos... Vamos!!!


A queda dos centros nos diferentes campos e o surgimento de uma nova geometria

Constatamos que a ideia de centro foi questionada através da história em todos os âmbitos, produzindo grandes mudanças, seja na astronomia, na física, na antropologia, na sociologia, na concepção do psiquismo, na política, no urbanismo, entre outros tantos.

Os centros organizaram durante muito tempo as relações do homem com os outros e foram depostos progressivamente. Citamos alguns deles:

  1. nas formas sociais de organização – o matriarcado, o surgimento do patriarcado e seu questionamento;
  2. o geocentrismo[13], que situava a Terra como centro do universo, foi substituído pelo heliocentrismo[14] (o sol como centro do universo), abandonado posteriormente pela descoberta da existência da galáxia[15], que por sua vez deixou de ser única para se multiplicar[16];
  3. o surgimento das físicas quântica[17] e relativista[18], que revisaram de alguma forma a física de Newton, incluindo novos elementos;
  4. a teoria da evolução das espécies[19], que situou o homem dentro de um sistema classificatório das espécies, colocando em xeque as crenças bíblicas no Ocidente;
  5. as formas de governos: a decadência dos reis e imperadores e o surgimento das democracias;
  6. a descoberta do inconsciente pela psicanálise (a consciência não é mais o centro do psiquismo);
  7. as cidades onde já não há mais um centro e sim vários centros, especialmente os denominados shopping centers, entre tantos outros.

Pensamos que a queda da noção de centro indica uma passagem da geometria euclidiana e seus doze axiomas para outras geometrias não euclidianas[20] apresentadas no século XIX.

A descoberta do inconsciente introduziu algo novo, algo que nos habita, que diz mais com menos, que produz seus flashes, mas que não substituiu a consciência. A partir disso não há mais centro no psiquismo e sua estrutura.

Mas podemos perceber que o inconsciente introduziu a necessidade de elaborar uma nova topologia. J. Lacan, orientado por este fato, se serviu dos grafos, das figuras topológicas de superfície e da topologia dos nós, o que possibilitou tecer uma série de considerações para situar a estrutura e seus elementos.


O falo e seu lugar na psicanálise

De posse desse marco geral, encaminharemos a ideia presente no título: a queda da concepção falocêntrica e as consequências para a psicanálise.

Constatamos, diz J. Lacan, que na obra freudiana

o objeto fálico tem uma posição central na economia libidinal tanto no homem como na mulher. Está aí um fato totalmente essencial, característico de todas as teorizações dadas e mantidas por Freud – seja qual for o remanejamento que ele tenha introduzido em sua teorização, através de todas as fases da esquematização que pode dar da vida psíquica, a prevalência do centro fálico jamais foi modificada.[21] 

Essa articulação determinou, em primeiro lugar, que o tratamento psicanalítico fosse pensado especialmente para os sujeitos neuróticos, deixando de fora uma série de sujeitos inseridos no campo da psicose.

Toda essa concepção se baseou na articulação Édipo-castração, em que a castração ocupava o primeiro e último termo na experiência da psicanálise. Nesse sentido, a castração ganhou o estatuto de rochedo intransponível no final da análise, que aparecia na forma de ameaça de castração ou de inveja do pênis.

J. Lacan realizou inúmeras modificações sobre o termo falo ao longo de seu ensino, sempre na tentativa de fazê-lo mais operativo, entre as quais citamos, nos anos 50, o falo como objeto imaginário, a significação do falo como efeito da metáfora paterna, significante da falta e por consequência do desejo, significante do gozo, falo real.

Ele surge como mediador justamente aí onde nada há. Ele é apresentado como o instrumento que permite a cada um “... identificar-se com o tipo ideal de seu sexo e responder às necessidades de seu parceiro na relação sexual e acolher com justeza as da criança daí procriada e a cópula entre os sexos”[22].

É justamente no Seminário 10 onde J. Lacan começará um trabalho sobre o objeto, escolhendo a via da angústia, que terá como uma consequência a queda do falo do lugar central. Durante o seminário é apresentada a operação de divisão entre o sujeito mítico com o Outro (a entrada na linguagem), que tem como resultado um sujeito dividido e um objeto que cai, que se separa do corpo. O caminho da angústia permite aceder ao objeto a, objeto real, irredutível ao significante, cujas substâncias episódicas dão notícias de um corpo fragmentado, um corpo em pedaços: o seio, as fezes, o falo, o olhar e a voz.

O falo enquanto real é concebido a partir de sua detumescência, de sua queda[23]. Aí onde ele cai encontramos o objeto pequeno a caído, separado do corpo.

O efeito dessa abordagem faz com que a castração, alinhada ao complexo de Édipo, perca seu lugar de ser o primeiro e o último termo na constituição do objeto. Há algo anterior que se separa do corpo no seu encontro com a linguagem, e esses pedaços separados poderão ganhar, a posteriori, uma articulação à lógica fálica ou não.

Descortina-se, nessa época, a operação de separação[24] que promove os objetos a, a qual não precisa de um agente para ser realizada, como acontece no caso da castração.

Lembremos que a castração articulada ao complexo de Édipo coloca um significante (Nome-do-pai) que substitui o significante Desejo da Mãe, surgindo como resultado a significação fálica que ordena e cifra uma parte do gozo, introduzindo a lógica denominada atributiva (ser ou não ser – ter ou não ter o falo).

Essa operação continua a valer, mas se transforma em um caso particular, uma teoria restringida que responde aos casos de neuroses.

O Nome-do-pai edípico passa a ser considerado um sinthoma que mantém unidos e diferenciados os três elos: real, simbólico e imaginário.[25] Essa concepção está assentada em um deslocamento que passa do Nome-do-pai para o ato de nomear[26], isto é, o acento passa para o ato de nomear. Isso indica a possibilidade de que cada sujeito possa vir a se responsabilizar pela invenção de um nome que lhe permita habitar a linguagem sem tanto sofrimento (as psicoses extraordinárias e as psicoses ordinárias). Esse deslocamento foi denominado como a Pluralização dos Nomes-do-pai, ou seja, pode haver muitos nomes que cumpram a função de amarrar os três elos do nó.

Concluímos afirmando que essa teorização ampliou o horizonte e o alcance da experiência analítica nos seguintes pontos:

  1. A possibilidade de acolher sujeitos que precisam inventar um nome para ordenar seu gozo (pluralização dos nomes do pai).
  2. O fim da análise pode ultrapassar o rochedo da castração, permitindo acolher aquilo que está além do pai, além do falo.
  3. A elucidação de alguns sintomas que resistem a entrar na lógica fálica.

 

[1] Guimarães Rosa, J. A terceira margem do rio. In: ___. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, ano. p. xx.

[2] Miller, J.-A. (1996-1997) El Otro que no existe e sus comités de ética. Buenos Aires: Paidós, 2005. Com a colaboração de Éric Laurent.

[3] Bernardes, A. C. Aí estamos. Boletim Polifonias – XXII Encontro do Campo Freudiano no Brasil 2018.

[4] Lacan, J. (1936) Os complexos familiares. In: ___. Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, ano. p. xx-xx.

[5] Lacan, J. “Del discurso psicoanalítico”, conferencia en Milán el 12 de mayo de 1972, publicada en Lacan in Italia. Contri: editora, 1976. p. 32 y 36.

[6] Gorostiza, L. Capitalismo plus ciencia. Papers 7.7.7, EOL.

[7] Bauman, Z. Os amores líquidos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008.

[8] Gorostiza, L. Capitalismo plus ciencia. Papers 7.7.7, EOL.

[9] Lacan, J. O seminário, livro 17: O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992. p. 9.

[10] Lacan, J. O seminário, livro 20: Mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1981. Capítulo 2.

[11] Gorostiza, L. Capitalismo plus ciência. Papers 7.7.7, EOL.

[12] Idem.

[13] Aristóteles, Platão e Ptolomeu foram os defensores do geocentrismo.

[14] Copérnico, Nicolas. De revolutionibus (1543).

[15] William Herschel (1790).

[16] Edwin Hubble.

[17] Max Planck.

[18] Albert Einstein.

[19] Charles Darwin, Lamark.

[20] Encontramos Bernhard Riemann como um de seus teóricos mais destacados.

[21] Lacan, J. O seminário, livro 3: As psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985. p. 351.

[22] Lacan, J. A significação do falo. In: ___. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998. p. 692.

[23] Miller, J.-A. Introdução à leitura do Seminário 10 da Angústia de Jacques Lacan. Opção Lacaniana, São Paulo, Edições Eólia, n. 43, maio 2005.

[24] Lacan, J. O seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1988.

[25] Brousse, M.-H. A psicose ordinária à luz da teoria lacaniana do discurso. Latusa digital, ano 6, n. 38, set. 2009.

[26] Agradeço aos colegas de cartel constituído por Carlos Augusto Nicéias (mais um), Dóris Diogo, Fatima Pinheiro, Isabel Lins, que me ajudaram a elaborar algumas das questões presentes neste texto.

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