Ligeiramente fora de foco
Reginaldo Luiz Cardoso
A Nilcéa Moraleida Bernardes, pelo ouvido sempre atento.
Depois de ser bombardeado
pela propaganda de segurança nas estradas,
foi quase um alívio me envolver
em um acidente de verdade.
J. G. Ballard. Crash.
Configuração do grotesco
Na penúltima segunda-feira de 2016, fora a agitação natural de uma semana que desembocaria no Natal, tudo estava dentro da normalidade em uma metrópole como Ankara, capital da Turquia. Nada prenunciava o que estava prestes a acontecer no começo daquela noite. No Centro de Arte Contemporânea, por volta das 18:00, tinha início o vernissage de uma exposição de fotógrafos turcos, cujo tema era a sua representação sobre a Rússia. Patrocinada pela Embaixada Russa na Turquia, a exposição teria em sua abertura entre curadores e autoridades do museu, o próprio embaixador russo. Os presentes − um grupo seleto de convidados locais e funcionários de alto escalão das demais embaixadas alocadas na Turquia – eram um número bem reduzido. E a segurança do local era feita, além dos guardas do museu, por agentes da polícia federal turca.
Às 19:00 o embaixador da Rússia, Andrei Karlov, 62 anos, começou seu discurso. Ele falava pausadamente para que o intérprete pudesse traduzir suas palavras para a língua turca. Ao fundo, atrás dele, estava um agente da polícia federal. De repente, o agente sacou uma pistola automática e desferiu nove tiros no embaixador, que teve morte instantânea. Seu corpo inerte caiu de costas no amplo salão. (19:05; 14:05 no horário de Brasília). Ao seu lado, empunhando a arma e bradando palavras em árabe e em turco, o policial, agora assassino, movia-se nervosamente. Tumulto geral: entre gritos e choros, uns correram, outros se agacharam. Uma testemunha ocular, iniciada nos meandros da arte contemporânea, disse que chegou a pensar que se tratava de uma performance. Parecia cena de filme de Tarantino, uma vez que seus filmes são verdadeiros aglomerados de estímulos estéticos dissonantes. Como defende Kayser, “faz parte da estrutura do grotesco que as categorias de nossa orientação no mundo falhem”.[1] O corpo robusto do embaixador estatelado no chão, perto do esquálido corpo do policial, poderia também ser parte de uma obra hiper-realista do escultor australiano Ron Mueck, em que talvez a única coisa surpreendente seria o fato de serem tão comuns.
Passage à l’acte
Pouco tempo antes do acontecimento trágico, o fotógrafo Burhan Ozbilici, 59 anos, terminava sua jornada diária de trabalho no escritório local da agência de notícias Associated Press (AP), onde trabalha há 25 anos. Um colega que Ozbilici convidara para uma saída em um bar qualquer declinou sua proposta alegando ter que fazer a cobertura de um vernissage no Centre of Arts Contemporary, Cagdas Sanatlar Merkesi, na língua turca. Burhan ficou um tempo a mais no escritório e resolveu dar uma passada no vernissage, já que o Centre ficava no caminho de sua casa. Entrou na galeria quando o evento já havia começado. Como disse em entrevista, foi por acaso que se encontrou ali. Quando soube que o embaixador iria falar, pediu permissão para tirar umas fotografias. E foi quando houve o acontecimento espetacular. Enquanto todos corriam ou se jogavam ao chão, Burhan clicava a cena com a câmera junto ao peito, sem dar as costas ao atirador, que continuava agitado e com a arma em punho. Não soube dizer se teve medo, mas é inegável que sua experiência como repórter de guerra deve tê-lo mantido acionando o dispositivo de imagens. Recuava e registrava as cenas ao mesmo tempo, sem dar as costas ao atirador, até que ficou escondido atrás de uma pilastra de 30 cm de largura. “Disparar al que dispara con la precisión del que mira”. Assim descreveu a situação, em sua conta no Twitter, a produtora executiva de Al Jazeera em espanhol, Alba Mora Roca. Pouco depois, no tiroteio que se seguiu, o atirador foi “neutralizado” pela força de segurança turca. No final daquela noite, as fotografias de Ozbilici haviam viralizado na web. Três meses após o acontecimento, Ozbilici recebeu o Nobel do fotojornalismo pelo ensaio fotográfico: o World Press Photo 2017. Sem dúvida alguma, podemos dizer que a história do fotojornalismo está ligada àquela da guerra.
Era do acesso
Embora houvesse outros fotógrafos no evento, as fotografias de Ozbilici serviram de informações quando havia ainda pouquíssimo material disponível. Perceber que um fotógrafo enfrentou o atirador para capturar a cena também permitiu certo poder. Mas uma questão segue em aberto: por que somente essas fotografias viralizaram? Uma série de fatores concorreu para transformar as fotos de Ozbilici em virais: sorte, talento, técnica, poder econômico e velocidade: características típicas da era do acesso. De quebra, em seu posicionamento, Ozbilici tinha uma visão privilegiada, ângulo que os outros não tinham.
A Associated Press conseguiu capitalizar essa “exclusividade” quando baixou as imagens de Ozbilici no Facebook. Como fotógrafo da casa, ele pode enviar suas imagens diretamente aos editores, que as postaram rapidamente nas redes sociais. E isso quando o mundo ainda se perguntava se o tiroteio tinha mesmo ocorrido. Até a noite seguinte, as fotos tinham sido compartilhadas mais de 58.000 vezes.
A velocidade foi fundamental nesse caso, contudo há outras considerações importantes: quão acessível é o fotógrafo para uma entrevista? Ele ou ela fala inglês? Se não, como conseguir um tradutor rapidamente? O relato testemunhal de Ozbilici foi publicado pela AP e rapidamente adquirido pela rede de associados. Graças ao, digamos, poder de fogo da AP, as imagens de Ozbilici estavam impressas nas primeiras páginas dos principais jornais do mundo na manhã do dia seguinte: do New York Times ao Miami Herald, do Financial Times ao Libération.
Ordem do dia
Era 19 de dezembro de 2016. 18:00; 13:00, no horário de Brasília. O policial turco Mevlüt Mert Altintas apresentou seu distintivo à segurança e entrou na galeria em que o embaixador russo Andrei Karlov inauguraria uma exposição. Para os demais membros das forças de segurança turcas e para os guarda-costas do diplomata que faziam parte do sistema de segurança, sua presença era normal e tranquilizadora. “Um policial no meio de guarda-costas está acima de quaisquer suspeitas, disse uma fonte não identificada do Serviço de Inteligência francês. Eles são escolhidos a dedo, são psicologicamente estáveis e, por isso mesmo, são insuspeitáveis”.[2]
O policial havia adentrado no asséptico Centro de Arte Contemporânea de Ankara, onde em poucos minutos seria inaugurada a exposição de fotografias “A Rússia vista pelos turcos: de Kaliningrado a Kamchatka pelos olhos dos viajantes”. Uma exposição que propunha mostrar a visão dos turcos sobre diversas cidades russas. Ao se apresentar à portaria da galeria, Altintas vinha de um hotel das redondezas, onde esteve hospedado desde sábado à tarde, ou seja, dois dias anteriores à exposição. Naquela manhã de segunda-feira havia avisado a seus superiores que, por estar doente, não poderia ir trabalhar; apresentaria um atestado médico no dia seguinte. Mevlüt Mert Altintas fazia parte da unidade antimotim, a elite do corpo de segurança turco. Apesar da pouca idade, 22 anos, havia integrado, nos últimos seis meses de 2016, em ao menos oito ocasiões, a segurança pessoal do atual presidente do país, Recep Tayyip Erdogan. Ao que tudo indica, Altintas calculou cada passo antes de cometer o atentado.
Conforme o artista norte-americano Chris Burden, um dos pioneiros da performance na arte contemporânea, para considerar uma obra concluída há que se conjugar três coisas: “el concepto, el desarrollo y el resultado. Es difícil dar una prioridad a alguno de los aspectos, todos son esenciales”.[3] Segundo o fotógrafo Arnaldo Carvalho, “foi tudo muito bem calculado, ele sabia que os fotógrafos das principais agências estariam ali. O atirador sabia do poder da mídia, sabia que a cena seria registrada e ia correr o mundo”. Por conhecer profundamente os meandros das forças de segurança, o atirador sabia que não sairia com vida do local. Havia planejado um ato suicida.
Ao abrir fogo contra o embaixador, disse, entre outras coisas: “Don’t forget Aleppo, don’t forget Syria! So long as our brothers are not in safety, you will not taste safety either. Only my dead body will leave here”.
Depois do fato, muito se especulou sobre as consequências do assassinato do embaixador turco no difícil equilíbrio geopolítico da região e quiçá do mundo. Sem dúvida alguma, a ação deliberada de Altintas colocou mais lenha na fogueira da guerra que se desenvolve há seis anos na Síria. Alguns analistas políticos chegaram a pensar que aquele ato seria o estopim para o desencadear de uma guerra mais ampla, já que a Rússia claramente havia tomado partido do presidente da Síria, Bashar al-Assad, pivô da guerra que se iniciou quando a chamada “Primavera Árabe” desembarcou naquele país. Nesse sentido, a meu ver, a hipótese mais plausível foi elaborada pelo analista político Roger Sollenberger: “The assassination of the Russian ambassador won’t start world war III, but it won’t stop it, either”.[4]
O espaço
Tão logo aconteceu o atentado, a grande mídia percebeu o alto valor simbólico e, portanto, propagandístico, que o envolvia. Afinal, o acontecimento acabara de ocorrer em um dos espaços mais icônicos da cidade de Ankara – O Centro de Arte Contemporânea. Um espaço que permite que a cidade revele aos seus e ao mundo o seu pareamento com a contemporaneidade. Além do mais, o espaço está localizado em uma região da cidade estreitamente vigiada. Entretanto, as notícias referentes ao local do assassinato apareceram nas mídias somente através de frases vagas, imprecisas: “aconteceu em uma galeria de arte”, “ontem, em uma galeria de arte”, deslocando o todo para o infinitamente particular.
O Centro de Arte Contemporânea de Ankara é um imponente edifício pós-moderno localizado na prestigiosa e abastada municipalidade de Çankaya, parte da região metropolitana de Ankara, cujas cercanias alojam a maioria das embaixadas no país, o que explica a estreita vigilância na região. Visto da rua, o edifício que abriga o Centro aparenta ter proporções modestas, quando se considera a sua importância; porém, três de seus sete andares são subterrâneos.
A iniciativa de sua construção partiu do governo da municipalidade de Çankaya na última década do século passado. Ele deveria abrigar primeiramente um centro empresarial que ocupasse um terreno vago da municipalidade. Contudo, o escritório contratado para desenvolver o projeto arquitetônico − EG Minimarlik (Erdogam Elmas e Zafer Gulur) − fez uma contraproposta: por que não criar um espaço dedicado à arte contemporânea, algo que achavam que a cidade carecia? A sua construção teve a clara intenção de alojar a arte contemporânea local e internacional, que se ressentia de falta de espaço.
Assim, se construiu um prédio up-to-date: galerias amplas, climatização e iluminação concebidas de acordo com as normas e tecnologias mais avançadas para um espaço de exposições, cada andar tendo o seu próprio espaço de armazenamento. Cada detalhe foi pensado − desde o alto pé direito de algumas galerias − mais de 10 m, a fim de acomodar obras de arte de grande escala.
A entrada do Centro é coberta por uma pele de vidro que permite aos visitantes vislumbrar as obras de arte expostas antes mesmo de entrar no edifício. O interior foi projetado para “poder ser percebido como um todo”, afirmou Elmas, o arquiteto responsável pelo projeto. O resultado foi um espaço de 7.000 m², dos quais 2.200 m² são dedicados somente às exposições e divididos em cinco galerias.
O Centro de Arte Contemporânea foi inaugurado em 16 de junho de 1998. Com uma exposição de arte contemporânea? Não. Abrigando um Congresso Internacional de Arquitetura recheado de starchitects como Rem Koolhaas, Bernard Tschumi e Peter Eisenman. Nada mais contemporâneo do que isso.
Roleta russa
Logo após a morte de Chris Burden, em 10 de maio de 2015, o crítico de arte Silas Martí observou que: “o estrondo do artista Chris Burden ainda ecoa na arte contemporânea”.[5] Por ironia da história, poucas horas depois do atentado em Ankara, o jornalista Ryu Spaeth, da prestigiosa revista New Republic, profetizava, em sua edição online, que a foto de Ozbilici seria a “fotografia do ano”. Como não poderia passar despercebido aos olhares atentos, não faltou a evocação de que o ato e seu resultado tinham grandes semelhanças com a performance do artista norte-americano Chris Burden: Shoot, de 1971.
Cabe, então, uma pergunta: o que aconteceu no mundo contemporâneo que elevou ao máximo a proximidade entre o ato de Burgh e aquele de Altintas? Primeiro: os dois ocorreram em um contexto de guerra. Se o primeiro foi um libelo contra a guerra no Vietnã, o segundo foi um libelo contra a guerra na Síria. Segundo: ambos os atos se caracterizam por ser performáticos; dotados do elemento surpresa; realizados diante de uma pequena plateia e apostando no poder das gossips. Ambos são marcados pelas três características da arte contemporânea, desde que apareceram as performances, os happenings, a body art...: o efêmero, o momentâneo e o contundente. Hic et nunc.
Nesse intervalo temporal, uma indiscutível reconfiguração das subjetividades foi levada a termo. Contudo, qualquer tentativa de compará-los se exime de querer recuperar as subjetividades perdidas. A questão está em certificar que consequências possíveis trouxeram essas novas subjetividades. Para o filósofo Alain Badiou, há um nó górdio a decifrar:
E não se insiste o bastante no fato de que esses jovens se suicidam nos atentados. Para ter jovens assim, é preciso que estejam em um determinado estado de pulsão de morte e desesperança. E essa desesperança não vem do islã. Eles estão desorientados num sentido amplo.[6]
É como se na raiz dessa desorientação, desse mal-estar na hipermodernidade, a subjetividade − que implica necessariamente na noção de sujeito − estivesse prescindindo de sua historicidade. Esse ponto de vista é reforçado pelo filósofo Edgar Morin:
Qué queda por hacer cuando se ha perdido el futuro y cuando el presente es angustiante y aciago? La única manera de escapar a esta aporía es volver sobre el pasado, que deja de constituir un tejido de supersticiones para tornarse un recurso. Ésta es la causa por la que en el mundo aparecen fenómenos − integrismo, fundamentalismo y nacionalismo − que toman formas extremadamente diversas pero que tienen con punto en común la emergencia en las situaciones de crisis.[7]
Mas, afinal, de que “estrondo” fala o crítico Silas Martí, para o qual nos chama a atenção? Em 19 de novembro de 1971, Burden convidou uma seleta plateia de amigos e simpatizantes de suas ideias para uma performance sua na galeria F-Space, em Santa Ana, Califórnia. Estava pronto para encenar, ao vivo e em cores, a polêmica e duradoura performance Shoot. Chegou com um assistente − na verdade, um amigo ex-combatente do Vietnã − portando um rifle. O ato seria o seguinte: Burden seria baleado pelo assistente a uma distância de 5 metros. O tiro deveria atingi-lo de raspão no braço esquerdo, mas o atirador hesitou e acabou alvejando de fato o braço de Burden. “Fiz essa performance durante a guerra, quando milhares de garotos da minha idade eram alvos de disparos. Planejei tudo. Era para a bala passar de raspão e fazer rolar só uma gota de sangue”, lembrou Burden, em 2009.[8]
Fotografia 1 - Shoot, Chris Burden, 1971
Diante da estrondosa e instantânea repercussão do ato, Burden disse, à época: “Shoot was an attempt to control fate – or giving the illusion that you control fate”. Bruce Dunlap, o assistente, em entrevista ao New York Times, em 2015, indagado ainda sobre o célebre episódio, disse que aceitou o convite de Burden porque “I liked the challenge and the idea of shooting someone for art”.
Como lembra Spaeth,[9] “we can surmise that some similar idea drove Karlov’s killer”. A diferença é que uma linha sagrada foi cruzada: do conceito à realidade terrível, da vida à morte. Enquanto o projeto de Burden apresentava dois homens em estranha colaboração, a foto de Ozbilici revela dois homens mortos. De uma maneira ou de outra, a radicalidade dessas ações ou práticas ritualísticas vem sempre ligada à ideia de promover uma ruptura dentro de uma cultura de extrema alienação, retomar relações entre o sagrado e o profano, romper categorias preexistentes e dominantes. Burden partia da ideia de que o verdadeiramente importante não era o objeto artístico, e sim o que gera uma ação de arte. O corpo do artista tornava-se o novo “objeto encontrado”, propondo-se como obra de arte em substituição ao “pragmatismo” do objeto artístico.
Para Burden, a arte era “a free spot in society, where you can do anything”. Como observou o crítico Peter Schjeldahl em ensaio sobre Burden, “there was a limit to this radical idea, and that limit was death”. Complementou Spaeth:[10] “Ozbilici’s photograph shows that it is the world itself that has become a free spot − where nothing is unimaginable and everything is unreal”. Parafraseando Zizek,[11] desembarcamos todos no deserto do real?
De todo modo, desde o seu aparecimento, Shoot continua sendo a performance mais relevante de Burden, além do motivo de extensas discussões e polêmicas dentro e fora dos círculos de iniciados.
Con mis performances obtuve pronto cierta notoriedad entre la prensa amarilla y el público en general. Me sorprendió, puesto que no era mi intención. Quería ser bien considerado por otros artistas y por el mundo del arte, pero no deseaba en absoluto llegar a ser una figura pública o un showman para la prensa sensacionalista y de gran tirada. Siempre creí que mis performances eran privados, frágiles y cuidadosamente construidos. Eran obras de arte malinterpretadas, distorsionadas y mal difundidas por la prensa y los medios. En realidad una de las razones por las que dejé de hacer performances fueron las malas interpretaciones de la prensa sensacionalista. Irónicamente, es por esta prensa sensacionalista y por la publicidad, a la cual todos somos sensibles, por lo que esta parte de mi trabajo es con diferencia la más conocida y, en consecuencia, la más popular.[12]
Justificativas à parte, o papel de Chris Burden como um dos pioneiros da arte performática assegurou-lhe um lugar na história da linguagem conceitual, “ao passo que a diversidade de sua produção e o apetite pela iconoclastia resultaram em uma obra indiscutivelmente singular”.[13]
A temporária teatralidade da arte baseada em performances fornecia uma oportunidade e uma via de expressão para artistas. Performances que dissolviam os limites entre a vida e o teatro nos quais o corpo humano enquanto instrumento artístico era testado até o limite. Desde então, a performance se consagrou como uma das vertentes artísticas mais provocativas.
A arte, segundo Mário Perniola, é opaca. “Quanto mais luz se projectar nesta, maior a sua sombra”.[14] Essa projeção é a essência do mal-estar, que Burden disseca muito bem:
Creo que los artistas reflejan su entorno social y cultural. En la actualidad, Norteamérica y todo el mundo industrializado está sujeto a una cantidad extraordinaria de violencia, tanto por la naturaleza de la sociedad moderna (véase, por ejemplo, la constante amenaza del terrorismo y la guerra, la magnitud de las catástrofes y el malestar general que desvirtúa la moralidad y los valores) como, también, por una falta individual de lugar y de poder en este enorme e impersonal mundo industrial.[15]
Fotografía 2 - Self Sabotage, Tania Bruguera, 2004.
Indubitavelmente, Burden não foi o primeiro a perceber a estreita relação entre armas e câmeras − tema por demais conhecido na teoria da arte e da fotografia, por exemplo, em Susan Sontag: “a câmera é uma sublimação da arma, fotografar alguém é um assassinato sublimado − um assassinato brando, adequado a uma época triste e assustada”.[16]
Feitas essas considerações, o “estrondo”, tal qual um vulcão adormecido, voltou à cena, em 2009, com Self Sabotage, da artista cubana Tania Bruguera. Na 53ª Bienal de Veneza, Bruguera fazia uma palestra sobre a “ineficácia da arte” sentada à mesa. Em determinado momento tirou da bolsa um revólver, carregou-o com uma bala, girou o tambor do revólver, fechou-o, apontou para a sua cabeça e atirou. Feito isso, colocou o revólver novamente sobre a mesa e continuou a palestra, em que termina dizendo: “a arte política deveria parar de usar referências e começar a criar referências”. No final, em resposta à dúvida levantada por uma pessoa do público sobre a arma estar carregada com bala de festim, Bruguera apontou a arma para cima e apertou o gatilho. A arma disparou.
Com a palavra, Burden, uma clara referência para uma artista que quer criar referências:
Pienso que toda obra que arremete contra la definición o los límites de lo que es el arte es, por naturaleza, transgresivo. Mi trabajo, en última instancia, debe ser considerado arte, incluso, aunque abarque otras disciplinas. Aunque puede no ajustarse a la definición de arte, tampoco se ciñe a ninguna otra categoría o disciplina. Así que, por defecto, mi trabajo entra dentro de la categoría de arte. Gran parte de lo que se considera arte es simplemente ilustración. Como los límites del arte son bastante elásticos, la verdadera discusión en todo trabajo no es si puede ser considerado arte, sino si tiene valor o calidad.[17]
Rede de intrigas
Apesar do reaparecimento de uma onda de atentados de terrorismo global, cada ataque se alimenta de dinâmicas locais e tem efeitos locais. O caso na Turquia não foi diferente. O evento teve um significado maior: marcou a primeira aparição pública do embaixador russo desde novembro de 2015, quando a força aérea turca abateu um jato militar russo na fronteira turco-síria, o que desencadeou uma grave crise nas relações entre os dois países. Essa crise durou até que o presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, formulasse um inesperado pedido de desculpas ao presidente russo, Vladimir Putin, há seis meses.
O assassino do embaixador russo não era sírio, mas um jovem policial turco. Para que ninguém ficasse confuso quanto a quem Mevlüt Mert Altintas queria dizer com “nós”, ao balear o embaixador, ele recitou em árabe: “Nós somos os únicos que prometemos aliança a Muhammad, para fazer a jihad”. Em suma: Altintas se identificou como um sunita, e não como um funcionário do Estado turco; tomou para si vingar a Rússia por seu papel no apoio ao governo sírio e às forças iranianas na Síria.
Os turcos geralmente consideram ‘ser um muçulmano sunita’ parte essencial da identidade nacional. A maioria da população turca é sunita e, para eles, a participação de sua rival histórica, a Rússia, ao lado de Assad ressaltou ainda mais a natureza pérfida da coalisão antissunita.
No território turco, manifestações públicas contra a “Rússia assassina” se tornaram uma característica regular da vida política após a intervenção russa na Síria. De fato, na semana anterior ao atentado, os cidadãos turcos organizaram um protesto em massa em frente ao consulado russo em Istambul.[18]
O objeto intangível
Fotografia 3 - Assassinato do embaixador, 2016
(Burhan Ozbilici - AP)
Fotografia 4 - Assassinato do embaixador, 2016
(Burhan Ozbilici - AP)
Para Barthes, uma foto pode ser objeto de três práticas, emoções ou intenções: fazer, suportar, olhar.
O Operator é o Fotógrafo. O Spectator somos todos nós, que compulsamos, nos jornais, nos livros, nos álbuns, nos arquivos, coleções de fotos. E aquele ou aquela que é fotografado é o alvo, o referente, espécie de pequeno simulacro, de eídolon emitido pelo objeto, que de bom grado eu chamaria de Spectrum da Fotografia, porque essa palavra mantém, através de sua raiz, uma relação com o “espetáculo” e a ele acrescenta essa coisa um pouco terrível que há em toda fotografia: o retorno do morto.[19]
Então seja as fotografias desse ensaio, seja outras quaisquer que estejamos olhando, é preciso não perder de perspectiva essa premissa de que estamos “diante do morto”.
Na primeira fotografia (Fotografia 3), a câmera está focalizada no embaixador Karlov, minutos antes de seu assassinato. Na parte inferior, à direita da fotografia, o microfone utilizado por Karlov durante o discurso da inauguração da exposição fotográfica na galeria. Embora somente o rosto do embaixador esteja nítido na fotografia, um elemento único e particular da imagem, está em segundo plano, ligeiramente fora de foco, quase fora do enquadramento.
Segundo Barthes, o punctum de uma fotografia é o acaso que, “nela, me punge (mas também me mortifica, me fere)”.[20] Vemos, então, nesse segundo plano − e, repito, ligeiramente fora de foco − um homem de pele branca, cabelo curto, vestindo terno e gravata escuros, as mãos entrelaçadas à altura do estômago. A imagem o mostra calmo, concentrado, com as pernas ligeiramente afastadas, na posição clássica de guarda-costas, a poucos metros atrás do embaixador. Talvez seja um segurança ou até mesmo um funcionário do museu. “Pensei que aquele homem estivesse ali como guarda-costas”, disse Yavuz Alatan, que trabalha para o jornal turco Sözcü e participava da exposição como fotojornalista e convidado.
Até aquele momento, o que ia suceder estava somente na cabeça de Altintas. O homem que quase saía do enquadramento da fotografia iria disparar e assassinar Andrey Karlov. O embaixador falava enquanto seu assassino esperava atrás, à sua direita. Um deles sabia que haveria duas mortes. O outro não. Os dois estão mortos. Novamente, Barthes:[21] “A partir do momento em que me sinto olhado pela objetiva, tudo muda: ponho-me a “posar”, fabrico-me instantaneamente um outro corpo, metamorfoseio-me antecipadamente em imagem”.
A segunda fotografia de Ozbilici (Fotografia 4) é fantasmagórica e cheia de ação. Um homem está em primeiro plano: terno preto, gravata preta, uma mão levantada para cima e a outra segurando uma arma apontada para baixo. Seu dedo aponta em direção ao céu, e seu rosto se contorce em um grito − um grito parado no ar! Do lado de cá da cena, já se sabe que naquele momento ele recitava um tekbir − um grito de ‘Allahu Aktar, “Deus é grande” − e que a sustentação de um único dedo indicador é um gesto utilizado pelos islâmicos sunitas para simbolizar a unidade de Deus. Embora a mão esquerda seja a desejável nesse rito, a direita estava ocupada empunhando uma pistola.
Ao fundo, um homem caído de costas no chão polido da galeria de arte, as solas dos sapatos meio gastas de frente para a câmera. Seu rosto está escondido atrás do corpo. Atrás, como em uma mise-en-scène expressionista, uma fileira de imagens fotográficas, inclinadas em uma angulação tal que parecem escorrer em direção ao chão. Ainda mais atrás, ao fundo, quase imperceptível, os óculos do homem caído jazem em um canto. Não há sinal de sangue no chão.
Um foco tão proeminente sobre o atirador elevou sua importância, em um momento de muitas perguntas e poucas respostas. Em questão de minutos, aquele que estava “ligeiramente fora de foco” se torna o foco de atenção de quem o enfrentava para capturar a cena. E surgem algumas perguntas: Altintas se deixou fotografar? Era essa a aposta do fotógrafo?
A Foto-retrato é um campo cerrado de forças. Quatro imaginários aí se cruzam, aí se afrontam, aí se deformam. Diante da objetiva, sou ao mesmo tempo: aquele que eu me julgo, aquele que eu gostaria que me julgassem, aquele que o fotógrafo me julga e aquele que ele se serve para exibir sua arte.[22]
A única certeza é que “una fotografía puede abrir la puerta para que la historia simplemente pase”.[23]
Historicamente, o momento atual tem se mostrado cada vez mais como um ponto de inflexão no qual não temos a menor ideia do que está por vir. Momento muito semelhante à transição da Idade Média para o Renascimento. Momento de loucura.
Marshall Berman fala disso ao descrever a primeira fase da modernidade:
[Nela], do início do século XVI até o fim do século XVIII, as pessoas estão apenas começando a experimentar a vida moderna; mal fazem ideia do que as atingiu. Elas tateiam, desesperadamente, mas em estado de semicegueira, no encalço de um vocabulário adequado.[24]
A interrupção banal do cotidiano, carregado de uma encenação teatral absurda que muito longe de se mostrar dramática terminou em tragédia, talvez enuncie o próprio cerne da guerra: a sua falta de sentido aparente.
As questões que influenciam a arte contemporânea são cada vez mais essas da produção de imagens em geral. Vou mais além: essa questão não somente influencia a arte contemporânea como também tem uma enorme porosidade que vai da arquitetura à política, das redes sociais ao cotidiano das pessoas, cujo pano de fundo está no capital financeiro, o senhor da guerra.
Para Cotton, a arte contemporânea não prescinde de rigoroso planejamento. Para ela, o ato artístico central consiste em direcionar um evento especialmente para a câmara. “Esta abordagem significa que o ato da criação artística começa muito tempo antes de a câmera ser efetivamente fixada na posição adequada e de a imagem ser registrada, uma vez que se inicia com o planejamento da ideia criativa”.[25]
Com um mínimo de esforço podemos observar nos fatos que cercam essa passagem ao ato a presença dos mesmos elementos presentes na arte contemporânea: fato e ficção, exibicionismo e voyeurismo, performance e audiência.
Ensaio fotográfico
Observando a reprodução das imagens de Ozbilici nos veículos de comunicação, percebe-se que a única coisa que as explica é a legenda. Sem ela, não saberíamos que aquilo era/foi um assassinato real, e não uma cena de um filme ou de outra encenação qualquer e/ou performática. Não alcançaríamos o sentido da obra sem a legenda: sem ela, a imagem pareceria problemática e ambígua, esmaecendo os elementos visuais de impacto, as pitadas de surrealismo. Tudo na ação nos permite vê-la com nada de improviso, nada deliberadamente grosseiro. Estratégia de sobrevivência que é da ordem do efêmero, do transitório.
Suponhamos que o planeta ou a civilização tenha sobrevivido à sanha contemporânea. A antropologia do futuro terá muitos problemas ao tentar captar a realidade cotidiana que prevalecia na mudança do milênio. Imaginemos que, a esse suposto antropólogo do futuro, caiam-lhe em mãos, simultaneamente, os registros da performance Shoot do artista norte-americano Chris Burden e os do assassinato do embaixador russo.
Quarenta e cinco anos separam esses acontecimentos que, estranhamente, ocorreram em galerias de arte: o primeiro aconteceu em 1971, e o segundo, em 2016. Para nós, contemporâneos de nós mesmos, o hiato temporal pode parecer muito, mas para o antropólogo do futuro, devido ao seu distanciamento espaçotemporal, as datas podem até se sobrepor, ou ser percebidas como instantâneas. Revelaria uma estranha categoria dessa época: um jetztzeit de dupla face − metáfora e metonímia.
Contudo, não será necessário a esse nosso personagem hipotético ser muito arguto para perceber inicialmente a prevalência das imagens ante qualquer outro tipo de representação nesse período. Sua ampla profusão e difusão, além de ser tonitruante, dir-lhe-á muita coisa sobre nós. Esse estudo poderia ser a afirmação − e de certa maneira o ponto final − da arqueologia do saber promovida por um filósofo antigo, Michel Foucault, que viveu no último século antes do fim do segundo milênio. Talvez tenha sido realizada a sua profecia:
Uma coisa em todo caso é certa: é que o homem não é o mais velho problema nem o mais constante que se tenha colocado ao saber. [...] Pode-se estar seguro de que o homem é uma invenção recente. [...] O homem é uma invenção cuja recente data a arqueologia de nosso pensamento mostra facilmente. E talvez o fim próximo. Se estas disposições viessem a desaparecer tal como apareceram, se, por algum acontecimento de que podemos quando muito pressentir a possibilidade, mas de que no momento não conhecemos ainda nem a forma nem a promessa, se desvanecessem, como aconteceu, na curva do século XVIII, com o solo do pensamento clássico – então se pode apostar que o homem se desvaneceria como, na orla do mar, um rosto de areia.[26]
Procuremos outra chave de análise para o acontecimento, pelo simples exercício da tautologia. Em um clássico artigo, o crítico norte-americano Clement Greenberg[27] fez a seguinte formulação: “onde há vanguarda geralmente também encontramos uma retaguarda”. Para confirmar a formulação, recorreu ao conceito de kitsch, numa clara alusão ao termo cunhado na Alemanha dos 1870, assim definido: “a arte e a literatura popular e comercial com seus cromotipos, capas de revista, ilustrações, anúncios, subliteratura, histórias em quadrinhos”.[28] Segundo ele, uma das precondições do kitsch é a extração do sangue da reserva de experiência acumulada. Ou seja, “depois de um tempo suficiente, o novo é pilhado para compor novos coquetéis, que são então diluídos e servidos como kitsch”.[29] Demonstrando com rica e ampla empiria, extrai duas características marcantes do kitsch: a primeira é que ele é mecânico, e a segunda é que ele é enganador. E conclui: “se a vanguarda imita os processos da arte, o kitsch, como vemos agora, imita seus efeitos”.[30]
Se a encenação macabra que acabamos de acompanhar está imiscuída de traços da arte de vanguarda dado seus efeitos perversos, ela ficará congelada indefinidamente em um instante kitsch, à espera do antropólogo do futuro.
Mas não precisamos esperar tanto. Olhando essas fotografias e o mundo da nossa época, talvez possamos dizer, parodiando o fotojornalista Robert Capa:[31] as coisas estão “ligeiramente fora de foco, um pouco subexpostas e a composição não é nenhuma obra de arte”.
Reginaldo Luiz Cardoso graduou-se em psicologia pela FAFICH - UFMG. É mestre em ciência política (DCP – UFMG) e doutor em planejamento urbano (IPPUR - UFRJ). Atualmente é pesquisador junto ao Laboratório Estado, Sociedade, Tecnologia e Espaço – LABespaço, do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR - UFRJ).
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Referências
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[1] KAYSER, 2013, p. 159.
[2] MOUTOT, 2016.
[3] BURDEN, 1996.
[4] SOLLENBERGER, 2016.
[5] MARTÍ, 2015b.
[6] BADIOU, 2017.
[7] MORIN, 2003, p. 39-40.
[8] MARTÍ, 2015a.
[9] SPAETH, 2016.
[10] SPAETH, 2016.
[11] ZIZEK, 2003.
[12] BURDEN, 1996.
[13] ASKEW, p. 562.
[14] PERNIOLA, 2006, p. 8.
[15] BURDEN, 1996.
[16] SONTAG, 2004, p. 25.
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[19] BARTHES, 2015, p. 17.
[20] BARTHES, 2015, p. 29.
[21] BARTHES, 2015, p. 18.
[22] BARTHES, 2015, p. 20.
[23] MORALES, 2016.
[24] BERMAN, 1982, p. 16.
[25] COTTON, 2013, p. 21.
[26] FOUCAULT, 1987, p. 403-404.
[27] GREENBERG, 2013, p. 33.
[28] GREENBERG, 2013, p. 33.
[29] GREENBERG, 2013, p. 34.
[30] GREENBERG, 2013, p. 39.
[31] CAPA, 2010, p. 101.