O real irreal:
entrevista com Ricardo Aleixo

 

 

 Em um contexto difícil de pandemia, em que os encontros se tornam restritos pelo isolamento social e o virtual, o meio maciço de conexão, nossa entrevista ocorreu, exclusivamente, através da voz. Por meio de áudios, lançamos as perguntas e recebemos as respostas do nosso convidado, Ricardo Aleixo, que gentilmente nos concedeu essa troca.

Ricardo José Aleixo de Brito, belo-horizontino, é poeta, artista visual e sonoro, ensaísta e performador. Publicou os livros Festim (1992), A roda do mundo (1996 com Edimilson de Almeida Pereira), Quem faz o quê? (1999), Trívio (2001), Palavras a olhos vendo: escritos sobre escritas (2002), A máquina zero (2004) e Modelos vivos (2010). Fez também curadoria de diversas exposições e montou vários espetáculos. Foi curador do Festival Internacional de Arte Negra (FAN) e da Zona de Invenção Poesia & (ZIP), bem como editor da revista Roda - Arte e Cultura do Atlântico Negro.

Nesta entrevista, percorremos por pontos que tocam e conversam com esta edição de Derivas Analíticas, mas Ricardo Aleixo, com sua visão crítica, sensível, política e poética, nos leva além. Cada leitor poderá sentir o ressoar desse encontro potente com suas palavras e pensamentos. Como ele mesmo nos diz: “Não acredito que exista uma dimensão que se esgota na escrita sem deixar nenhum sinal, nenhuma marca para o que acontecerá depois, seja a partir do gesto vocal ou corporal de quem escreveu esse texto, seja de um ou uma intérprete”. Ricardo, além de poeta, podemos dizer com Lacan, é também poema, criador de mundos e rebentos. 

 

 

 

DERIVAS ANALÍTICAS: É do príncipe Mishkin, protagonista do romance O idiota, de Dostoiévski, a frase “A beleza salvará o mundo”. Como a poesia e a arte podem tratar o mal-estar? 

RICARDO ALEIXO: Cada poeta e cada artista terá uma resposta diferente para isso. Só posso dizer como eu, Ricardo, tento lidar com o mal-estar, a partir desses lugares da poesia e da arte. Tentando fazer com que essa poesia e essa arte seja o mais poesia e o mais arte possível; tentando não fingir; acreditando na força disso, que é muitas vezes invisível, intangível. Isso que nos conecta com outros domínios, com a filosofia, com a matemática, com a física, com a sociologia, com os outros campos todos de conhecimento, mesmo aqueles campos que não são aceitos como legítimos no âmbito do Ocidente europeu, do qual o Brasil acaba fazendo parte. A magia, por exemplo, que tem tanta e tão direta relação com a poesia e com a arte. Me parece - e isso se evidencia em meu trabalho nas últimas décadas, nos últimos anos - como algo que, quanto mais a percepção poética se abre, mais esse giro se coloca no mais remoto e, ao mesmo tempo, lá no futuro. Para falar do agora é preciso não perder de vista o que já foi, o que já aconteceu há muito tempo, nem o que pode vir a acontecer. O mundo sempre foi um grande problema para toda a gente e nós, poetas, sempre fomos um grande problema para o mundo, ninguém sabe o que fazer com a gente. Isso é maravilhoso! Porque nos permite a multiplicidade e a simultaneidade como estratégias. Nós podemos em tese tudo, ser tudo, fazer tudo. Se isso vai dar fim ao mal-estar do mundo, ao mundo como mal-estar, é outro papo. Mas, que essa multiplicidade e essa simultaneidade, que nos caracterizam enquanto poetas e enquanto artistas, são um ganho em relação ao mundo, onde tudo tem seu lugar definido e sua função definida, ah isso é, com certeza.

 

 

DERIVAS ANALÍTICAS: Percebe-se a influência na sua vida da palavra e exemplo disto é quando declama: "Palavra é que nem veneno: / mata, mas pode curar". Você acredita nesta face curativa da palavra para o mal-estar contemporâneo? 

RICARDO ALEIXO: Quando eu menciono num poema a palavra “cura”, quando eu falo explicitamente que a palavra cura, eu estou me referindo à cura no sentido de cuidado, e não no sentido que a medicina pode agir para dar cabo de uma dada enfermidade. Eu gosto muito de pensar na figura do zelador da palavra, que pode ser o xamã, o babalaô, que pode ser o pajé. Ele, para fazer a cura, promover a cura, ele precisa usar a palavra. Mais do que usar a palavra, ele precisa usar a voz. A voz tanto no rito, quanto na performance artística, ela é tão ou mais importante do que a palavra. Porque a palavra só é importante quando soa. As frequências da palavra dita ou entoada ou cantada, as cadências, as intensidades. Tudo isso que a voz realiza é tão importante quanto o que se diz. Pode ser até mais importante. Muitas são as culturas que cultivam as palavras que nós diríamos ‘sem sentido’ - que são as interjeições, as onomatopeias e as palavras inventadas - que podem abrir outras frentes de conexões, com outros interlocutores, que não os humanos. Nós nada sabemos, ou pouco sabemos, sobre as formas de comunicação com os outros seres vivos. O que é que uma palavra inventada, dita, vocalizada, entoada para uma planta ou para um bicho desperta nessa planta ou nesse bicho? Sabemos de nada disso. Em resumo precário, cura sim. A palavra cura, mas o que conduz a palavra, que é a voz, é que talvez tenha mais poder de cura. Cura neste sentido de cuidado, como quem diz a um outro ser, como quem diz, estou aqui, você não está só. Eu diria que sim, acredito nessa possibilidade curativa da palavra, nos tempos terríveis que vivemos. Mas, mais do que acreditar na palavra, e até mesmo na voz, eu aposto todas as fichas é na escuta. Precisamos nos aplicar é na escuta do que quer que seja carregado de potência transformadora. Precisamos escutar o mundo, seja em forma de palavra, em forma de voz assêmica, ou seja, sem sentido. E não apenas o que tem a dizer os autodenominados humanos. É preciso escutar os bichos, é preciso escutar o que resta das florestas, é preciso escutar o vento, as águas. É nisso que eu acredito. 

 

 

DERIVAS ANALÍTICAS: O poeta argentino Aldo Pellegrini, escreve em um de seus poemas que: 

DERIVAS ANALÍTICAS: “A poesia tem uma porta hermeticamente fechada para os imbecis, mas aberta de par em par para os inocentes. Não é uma porta fechada com chave ou ferrolho, no entanto, sua estrutura é tal que, por mais esforços que façam os imbecis, não podem abri-la, enquanto cede somente à presença dos inocentes.

O imbecil se move num mundo onde o único valor está dado pelo exercício de poder.

Os imbecis buscam o poder em qualquer forma de autoridade. Toda essa soma de poder está organizada contra a poesia.

O poeta busca na palavra não uma forma de se expressar, mas um modo de participar da realidade mesma. Recorre à palavra, porém busca nela o seu valor originário, a magia do momento da criação do verbo, instante no qual não era um signo, mas parte integrante da realidade. O poeta, por meio do verbo, não exprime a realidade, participa dela.

A porta da poesia não tem chave nem ferrolho: defende-se por sua propriedade de incandescência. Só os inocentes, que têm o hábito do fogo purificador, que têm dedos ardentes, podem abrir essa porta e por ela penetrar na realidade.

A poesia pretende cumprir a tarefa para que este mundo não seja um lugar habitável para os imbecis.” 

DERIVAS ANALÍTICAS: O que você acha desta posição de Pellegrini? 

RICARDO ALEIXO: Eu tendo a concordar com Aldo Pellegrini, enfaticamente até, no que diz respeito à definição dos imbecis, sendo necessário frisar o quanto a ideia de imbecilidade foi ampliada com a emergência da internet e das redes sociais. Eu não sei exatamente em qual época, em que ano Pellegrini formulou essa concepção do imbecil, mas ela foi atualizada com grande êxito, nas últimas décadas, como sabemos bem. O que não me agrada é essa definição da outra banda, que seria a banda dos poetas, como inocentes. Nenhum poeta é inocente, não é, já a partir da noção de relação íntima com o verbo, que é sempre primeiro, que é instaurador de mundos. Não se pode ser inocente quando se vai instaurar o mundo. A forma de relação com o mundo é que muda. Eu evito lidar com binarismos. Não diria que o mundo se divide em, de um lado, os imbecis, e de outro os inocentes. Porque, ainda assim, estaríamos dentro de um campo moral que em nada contribui para uma visão afirmativa do mundo. Nós teríamos que considerar, inclusive, o quanto nesse jogo já estamos perdendo. Estamos perdendo de goleada se formos opor essas duas categorias forjadas pelo Pellegrini. Eu acho que a imbecilidade se define por uma persistência desse modo de ver, de ser e de estar no mundo, enquanto que a condição do poeta muda conforme mudem as circunstâncias, porque ninguém é poeta vinte e quatro horas, e ninguém é poeta só porque escreve versos. Agora, toda e qualquer pessoa pode ser poeta a partir da ativação, que muitas vezes é inconsciente, de determinadas demandas que se encontravam recalcadas na sensibilidade dessa pessoa, e que afloram em um determinado momento, muitas vezes sem a utilização de palavras, um estado de poesia que toma, que pode tomar qualquer pessoa, num momento de contemplação, seja da lua, de uma criança, de um riacho, de uma injustiça, de uma catástrofe. A poesia, gosto sempre de lembrar da definição do saudoso poeta e crítico Mário Faustino, é um pássaro nada sofisticado, pode pousar em qualquer galho, menos no galho dos imbecis. Isso aí eu concordo. Mas essa pessoa tocada pela graça da poesia, ela pode ser chamada de tudo, menos de inocente. A menos que a concepção do Pellegrini seja muito mais complexa do que esses trechos que leram para mim dão a entender. Eu tentaria, acho que valeria a pena tentarmos formular outras categorias que se instauram, às vezes confortavelmente, às vezes desconfortavelmente, entre o imbecil e o inocente.

 

 

DERIVAS ANALÍTICAS: Em muitos de seus trabalhos, você aborda a temática da morte. Especialmente, o assassinato, genocídio da população negra. Em um dos poemas, você escreve: “morri tantas vezes / mas sempre renasço / ainda mais forte”. Qual é a relação, para você, entre a poesia e a possibilidade de “fazer a vida viver”? A escrita seria uma via possível de renascimento? De aposta na vida? 

RICARDO ALEIXO: De fato, a morte é presença constante no que faço, principalmente essa morte praticada pelo racismo institucional, pelo racismo estrutural e estruturante, que inviabiliza a ideia da morte como algo que faz parte da vida. Algo que vai acontecer, estamos vivos, vamos morrer. Mas o modo como nós, pessoas negras no Brasil e no mundo, temos sido tratadas, cancela a hipótese de nos prepararmos para essa dimensão que eu chamaria até de elevada para o encontro com a morte – que do ponto de vista das cosmopercepções africanas não é o fim. Ocorre que, vivendo num país que tem o genocídio da população negra como um programa, um programa de Estado e um programa que sequer é questionado pela sociedade brasileira, nem mesmo pelos setores ditos progressistas da sociedade brasileira, a morte passa a ser simplesmente um monstro. Ela passa a ser o terror que se volta contra nós, pessoas negras. Não há possibilidade nenhuma de nos prepararmos para essa morte violenta, inclusive porque os níveis de violência são muitos e se dão ao longo do cotidiano. Não é só a morte por "surto, bala ou vírus", como eu tenho grafado num jogo de paráfrase com o verso da canção da Tropicália de “susto, de bala ou vício”. O racismo estrutural e estruturante se vale até mesmo da existência de um vírus, de uma pandemia para dizimar a população negra. E isso aparece sim como presença, para muitos obsessiva, até na minha obra. Mas, o que eu chamo de “minha obra” é indissociável dessa luta pela vida, nomeadamente pela vida da população negra. E fazer isso, protestar contra o modo como temos sido covardemente eliminados do conjunto da sociedade brasileira, é, ao mesmo tempo, celebrar uma hipótese de Brasil futuro, um devir Brasil. Não há passado no Brasil, não se pode pensar o Brasil de 1500 e pouco em diante, sem a presença negra, sem a presença dos africanos escravizados e seus descendentes, o Brasil não seria a potência que é. Potência hoje como algo bem relativizável, não é? Mas, o Brasil é grande sim, é maior que o bolsonarismo faz supor. E o que tem de grandeza neste país é indissociável da presença negra aqui. E isso é preciso que esteja na minha poesia. Eu não ficaria nem um pouco à vontade de definir como “minha poesia” um conjunto de textos que não mencionasse, que não aprofundasse a reflexão sobre as mortes das pessoas negras anonimizadas, ou seja, mortas duas vezes, todos os dias. É uma parte realmente significativa da minha escrita que se volta para essa questão. E será sempre assim, porque, ainda que cessassem essas mortes, eu me sentiria, eu me sinto na obrigação de prantear todas as mortes não pranteadas que já ocorreram desde a chegada da primeira pessoa sequestrada em África e trazida para cá. É a disposição de fazer uma denúncia que é trans-histórica. É assim que me vejo como poeta, é isso que me permite dormir em paz como quem fez o que lhe cabe fazer, como alguém que cumpriu o papel que lhe cabe cumprir. 

DERIVAS ANALÍTICAS: Mulheres, negros, trans e outros, de onde vem tanta segregação, até que ponto a arte é dessegregativa?  

RICARDO ALEIXO: Toda segregação quer me parecer que vem do desejo dos grupos hegemônicos de afirmar a idealidade do seu lugar, do lugar que ocupam e que ocupam acriticamente. É um lugar que se ocupa sem que se faça nenhuma pergunta acerca da pertinência de se ocupar esse lugar e acerca inclusive de quem é esse ente que ocupa esse lugar. Daí a importância extrema que se dá ao conceito de identidade nas sociedades protoautoritárias ou totalitárias. Porque essa é uma pergunta que os grupos hegemônicos, os grupos de mando não fazem a si mesmos. Branco é branco, macho é macho, adulto é adulto, evangélico é evangélico. São os grupos minoritários, e minoritários não em termo de número, não em termos quantitativos, mas em termos de oportunidades e de ocupação de espaços de poder, são esses grupos que a todo momento têm que se autoquestionar e se autodefinir em termos do que são, do que desejam. Como se fosse espúrio todo e qualquer desejo manifestado por esses grupos. Desejo por direitos, desejo de ir e vir, desejo de ser. Tudo isso que não pode ser apequenado, que não pode ser negado, mas que é negado diariamente a negros, a mulheres, a pessoas trans e com as combinações todas: as mulheres negras, as pessoas trans negras. E quanto mais há esse cruzamento de abre aspas de “identidades”, mais em situação de risco essas pessoas se verão. Agora, negros não são o problema, mulheres não são o problema, pessoas trans não são o problema. O problema é o modo como as sociedades se organizam, tendo sempre como premissa a definição dos lugares de privilégio a serem ocupados pelos grupos que eu defini como hegemônicos e que são definidores dos sublugares, dos lugares à margem para esses que são chamados de outros. Percebe como é um jogo muito perverso e calhorda de rearranjo do conceito de alteridade? Porque o outro é sempre esse outro absoluto, não é o outro que entra numa dinâmica de diálogo e de relação comigo. Eu não quero diálogo com ele. Eu o defino como outro exatamente para mantê-lo à distância. Ou à distância ou numa situação perenemente subalternizada. E a isso me parece que se presta a ideia sempre atualizada, sempre renovada de segregação.

 

 

DERIVAS ANALÍTICAS: “Quer coisa mais estranha que um poema enquanto lido?” A partir desta pergunta que você mesmo coloca, como se dá na sua criação a dimensão performática da leitura, da voz? Como que o corpo entra já no momento de criação? 

RICARDO ALEIXO: Essa questão diz respeito à lembrança, à simples lembrança de que a escrita em si é um ato performativo. Como eu já disse inúmeras vezes, escreve-se com as mãos, com os olhos, sentado ou deitado numa rede, deitado na cama, em pé, no ônibus. Eu mesmo escrevo muito no metrô, no ônibus. Escreve-se dentro de um avião, com cinto de segurança ou sem ele. Tudo isso aponta para a presença do corpo. O corpo é sempre ativo no ato da escrita. E se ele é ativo, ele é performativo. É de performance que estamos falando. Estamos falando daquilo que para o medievalista suíço Paul Zumthor, que é considerado um dos pioneiros do campo de estudo ao qual se dá o nome de poéticas da voz, é muito importante porque diz respeito a uma questão de competência. Performance é uma questão de competência, diz Paul Zumthor. Porque implica em um saber fazer que tem como finalidade última um saber ser. Não é uma ficcionalização de nada, não é a representação, mas é o ser. Essa mão que escreve, esse olho que lê, esse corpo que está assentado ou deitado ou em pé, tudo isso resulta em produtividade de escrita. E as marcas dessa escrita estarão presentes no ato da performance em si, como marcas vitais, como lembrança de que já passamos por aquele caminho durante a escrita. E se o texto não é nosso, essas marcas vão se configurar enquanto desconforto, enquanto matéria de prazer. O certo é que estarão lá. É um continuum. Não acredito que exista uma dimensão que se esgota na escrita sem deixar nenhum sinal, nenhuma marca para o que acontecerá depois, seja a partir do gesto vocal ou corporal de quem escreveu esse texto, seja de um ou uma intérprete.

 

 

DERIVAS ANALÍTICAS: Seu trabalho tem se servido de uma grande quantidade de materiais expressivos, imagens, sons, performances. Recentemente, li uma expressão que me pareceu cunhada por você: “pensar com os sons”. O que é para você pensar com os sons? 

RICARDO ALEIXO: Eu utilizei pela primeira vez a expressão “pensar com sons” por volta de 2006, quando eu era professor de Design Sonoro na Universidade FUMEC, dentro do curso de Design Gráfico. E essa expressão me veio em analogia com frases definidoras do que são outros campos do design, como eu já li que design gráfico é um modo de pensar com tipos. Isso de fazer a tipografia pensar, mais do que traduzir uma mensagem dada, um pensamento exterior àquela materialidade com o que design se expressa, é um pensamento que se desenvolve ali. O design gráfico pensa-se com os tipos, entre outros elementos obviamente. Eu comecei a dar aulas num período em que pouco se falava de design sonoro no Brasil. E, até onde eu alcanço, a FUMEC foi a primeira Universidade no Brasil a ter uma formação regular, a ter essa disciplina como parte da formação dos diversos campos do design. Eu tinha alunos do Design Gráfico, do Design de Superfície, do Design de Moda. Mas eu já pensava assim, antes mesmo de conhecer essa frase, definição do design gráfico como um “pensar com tipos”. Eu já pensava em outros usos do som que não aqueles realizados na música, ou em outros campos já mais aceitos. Eu sempre ouvi muito a chamada arte sonora, as várias correntes da poesia sonora, a música experimental, a corrente alemã da música experimental, eletrônica, eletroacústica. Tudo isso sempre me atraiu muito e o que se evidencia em todas essas vertentes é a materialidade do som disposta de modos não convencionais, explorações da fisicalidade do som que são um modo de pensar. Portanto, o que aqui se enuncia é menos uma suposta vontade de ser o autor desta frase e mais o fato de que ela serviu para mim enquanto parâmetro como professor e tem servido como artista, como artista deste campo que a gente pode chamar de intermídia ou transmídia e nas realizações mais diretamente ligadas ao som, na poesia sonora, na sound arte etc. 

DERIVAS ANALÍTICAS: Vemos seu esforço em dizer de novas formas, em experimentá-las e em desconstruir formas estabelecidas. O que você pega e o que não pega com a linguagem poética? 

RICARDO ALEIXO: Eu quase nunca tenho em mente um assunto do qual vou tratar. Existe uma disponibilidade criativa contínua em mim – isso desde que comecei a escrever poesia com 18 anos – que faz com que, muitas vezes, eu só perceba de qual tema estou tratando quando o poema já está pronto. Nem sempre eu sei do que estou falando. Olhando por esse ângulo, o que eu posso te dizer é o que eu digo no poema no livro quina zero, de 2003, quando me defino como alguém "permeável a tudo". Tudo me atravessa, tudo atravessa o que eu escrevo. Porque muitas vezes eu parto de um som, de um timbre, de uma cadência... Eu parto de um elemento estrutural e não necessariamente de um tema, ou de uma palavra. É um jogo muito sério. Falo de jogo como quem respeita muito essa dimensão de jogo que é fundante para as culturas. Quando penso, por exemplo, em um título de livro, que é verso de um poema do livro que vou mencionar, o “Impossível como nunca ter tido um rosto”, tenho que ser honesto e dizer que não sei o que quer dizer esse verso, que vira título: “impossível como nunca ter tido um rosto”. Mas eu sei falar das cadências, eu sei falar das intensidades, eu sei falar dos timbres que estão presentes aí. Porque foi tudo isso que motivou a escrita desse verso, que eu já não sei nem mesmo se foi o primeiro verso do poema, talvez não tenha sido. Óbvio, há situações como um poema dedicado à memória de Marielle Franco, então o tema já está dado. Mas não está dado o encaminhamento dele, isso é parte desse jogo, dessas relações de homofonia, essas relações técnico-formais, microestruturais, que conformam o poema. E que muitas vezes se sobrepõem ao meu desejo, ou o desejo de qualquer poeta de levar o poema para tal ou tal lugar. Para mim, é assim que acontece.

 

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Cabeça de serpente

a serpente morde a própria cauda. a serpente pensa que morde a própria cauda. a serpente apenas pensa que morde a própria cauda. a serpente morde a própria cauda que pensa. a serpente morde a própria cauda suspensa. a serpente pensa que a própria cauda morde. a serpente pensa com a própria cabeça. a serpente sonha que simula o próprio silvo. a serpente sonha ser outra serpente que simula o próprio sonho e silva. a serpente pensa e silva selva adentro. a serpente sonha que pensa e no sonho pensa que as serpentes sonham. a serpente pensa que sonha e no sonho pensa o que as serpentes pensam. a serpente morde sem pensar no que pode. a serpente pensa que morde a própria causa. a serpente pensa e morde em causa própria. a serpente pensa e morde apenas o que pensa. a serpente pensa que pensa e morde o que pensa. a serpente morde o que pensa e o que morde. a serpente pensa o que pensa a serpente. a serpente se pensa enquanto serpente. a serpente se pensa enquanto ser que pensa. a serpente pensa o que pensam as serpentes. a serpente morde o que pensa a serpente. a serpente morde o que mordem as serpentes. a serpente morde o que pode. a serpente pensa em se morder. a serpente morde sem pensar o que pode. a serpente morde sem pensar o que morde o que pode. a serpente morde o que morde. a serpente morde enquanto pode. a serpente pensa sem palavras. a serpente só não pensa a palavra serpente. a serpente só não morde a palavra serpente. a serpente pode o que pode sem palavras. a serpente morde o que pode sem medir palavras. a serpente mede de cabo a rabo a própria cabeça. a serpente emite a própria sentença. a serpente morde a própria cabeça.

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