Cristina Marcos

 

I “Ir para”: a vocação de escritor

Até hoje eu por assim dizer não sabia que se pode não escrever. Gradualmente, gradualmente até que de repente a descoberta tímida: quem sabe, também eu já poderia não escrever. Como é infinitamente mais ambicioso. É quase inalcançável.[1]

O título dado a esse pequeno texto é, curiosamente, Um degrau acima: o silêncio. Clarice Lispector sempre teve um sentimento paradoxal em relação à escrita. Desse sentimento talvez venha uma escrita em agonia, dilacerada, em vias de se calar. A escrita para Clarice Lispector é, ao mesmo tempo, o que salva e o que condena. Desde o início da sua carreira literária até a sua morte, ela foi atravessada pela alegria de escrever e por sua angústia, amarrando de modo inextrincável a preciosidade e a futilidade de toda escrita. Quando da publicação do seu primeiro romance, ela teve o sentimento de ter enganado seus leitores e de ter falado muito. Mais tarde ela dirá que a função do escritor é falar o menos possível.

Nascida entre dois mundos, em meio a uma viagem, Clarice Lispector tem dois anos quando chega ao Brasil com sua família, em 1922, fugindo da perseguição aos judeus na Ucrânia. Juntam-se aos irmãos de seus pais, que haviam se instalado em Maceió, onde viverão até 1924, quando enfim se mudam para Pernambuco. Seu pai era comerciante, e sua mãe estava sempre em casa devido a uma doença que a deixava gradualmente paralítica. Durante longo tempo Clarice acreditou que a doença de sua mãe estava ligada a seu parto.

Tenho certeza de que no berço a minha primeira vontade foi a de pertencer [...]. Quem sabe se não comecei a escrever tão cedo na vida porque, escrevendo, pelo menos eu pertencia um pouco a mim mesma. O que é um fac-símile triste [...]. No entanto fui preparada para ser dada à luz de um modo tão bonito. Minha mãe já estava doente, e, por uma superstição bastante espalhada, acreditava-se que ter um filho curava uma mulher de uma doença. Então fui deliberadamente criada: com amor e esperança. Só que não curei minha mãe. E sinto até hoje essa carga de culpa: fizeram-me para uma missão determinada e eu falhei. Como se contassem comigo nas trincheiras de uma guerra e eu tivesse desertado. Sei que meus pais me perdoaram eu ter nascido em vão e tê-los traído na grande esperança. Mas eu, eu não me perdoo. Quereria que simplesmente se tivesse feito um milagre: eu nascer e curar minha mãe. Então, sim: eu teria pertencido a meu pai e a minha mãe. Eu nem podei confiar a alguém essa espécie de solidão de não pertencer porque, como desertor, eu tinha o segredo da fuga que por vergonha não podia ser reconhecido.[2]

Se a criança é um objeto articulado à falta materna, todos fracassam, ou devem fracassar, na missão de tamponar essa falta. A criança, submetida ao desejo do Outro, quer ser o que falta à mãe, o objeto de seu desejo, o falo. Entretanto, ela deve encontrar para além da mãe que satisfaz e completa, a mãe desejante, a mãe para a qual a falta fálica está no lugar da causa de desejo. Para além da criança, a mãe de Clarice deseja se curar.

É curioso constatar um silêncio quase total de Clarice sobre suas origens judias e sobre uma realidade linguística dupla vivida por ela: a língua do seu país de adoção, o português, e a língua de origem de seus pais, provavelmente o iídiche. Clarice não fala dessa língua materna, primeira língua ouvida e nunca pronunciada. Entretanto, ela parece reencontrar em sua escrita uma língua próxima do território materno – próxima da sensação, do corpo, da voz, do sopro. Ao corpo paralítico e imóvel da mãe, do qual a filha provavelmente escutava chamados e sons em uma língua outra, Clarice responde com uma escrita fluida, que não termina nunca, que guarda uma estranha dicção, com sua sintaxe particular, suas frases suspensas, seus fragmentos inusitados.

“Minha vida me quer escritor e então escrevo. Não é por escolha: é íntima ordem de comando”.[3] Assim Clarice Lispector se refere à sua vocação de escritora. Pérfida vocação – tal é a expressão utilizada por Maurice Blanchot para falar da ordem imperativa que comanda a criação artística. Perversa, a vocação desconcerta o artista constituindo uma sombra que o precede, da qual ele foge e ao mesmo tempo persegue, como um desertor de si mesmo. Imperiosa, exigente e autoritária, a vocação não se deixa guiar necessariamente pelas aptidões e obriga a afastar uma multiplicidade de caminhos em prol de uma única via.

A vocação tem isso de perverso, ela supõe uma exigência exclusiva, um movimento em direção a uma figura sempre mais determinada, a escolha, entre muitas possibilidades, de uma só que, mesmo permanecendo enigmática, afirma-se como essencial e de tal modo que não podemos nos afastar sem a certeza – imperiosa, indecifrável – de um erro.[4]

Clarice Lispector fala desse chamado irrefutável que obriga a um “ir para”, que permanece enigmático e intransitivo. “Ir para” é uma expressão recorrente em sua obra que nos envia tanto à vocação e seu chamado, quanto à fatalidade da morte. “Escrever sempre me foi difícil, embora tivesse partido do que se chama vocação. Vocação é diferente de talento. Pode-se ter vocação e não ter talento, isto é, pode-se ser chamado e não saber como ir”.[5] Toda vocação é um chamado. Ela é o chamado do Outro, mas é também chamado ao Outro, resposta a um apelo, a uma injunção, mas também apelo que o sujeito enderença ao Outro.

A resposta a essa voz que chama é a construção de sua própria voz – chamado ao Outro. “Minha vida é um grande desastre. É um desencontro cruel, é uma casa vazia. Mas tem um cachorro dentro latindo. E eu – só me resta latir para Deus”.[6] O desencontro com o Outro originário, que é a mãe, dá lugar a um latido infinito da escrita. Essa ordem íntima, imperiosa, responde à deserção primeira em relação a seus pais e a desdobra fazendo de Clarice sua própria sombra, sempre em falta em relação ao comando absoluto da vocação. Em suma, um desertor de si mesmo.

Clarice dá forma a uma escrita que caminha em direção ao impossível de dizer, em direção ao silêncio. “Ir para” é também buscar os limites da linguagem, seu além, onde as palavras são desprovidas de sentido e subsistem como som, pulsações corporais – sopro. “Ir para” assinala a propensão à errância, à viagem, ao que não termina nunca e que continua. Daí vem talvez um amor pelo informe, pelo inacabado, por aquilo “que desajeitadamente tenta um pequeno voo e cai sem graça no chão”. Há em Clarice Lispector uma estética do menor, do primitivo, do orgânico, do grotesco, de modo que as crianças, os animais, os loucos, as mulheres têm uma importância crucial em sua obra. A escrita é aqui movimento, caminho e extravio infinitos. A escrita é errância.

Em Água viva, há uma espécie de celebração de uma estética do feio: “O feio é o meu estandarte de guerra”. Ou ainda: “Só o errado me atrai”. Para Blanchot, o erro é o que conduz à essência da literatura: A verdade da literatura estaria na errância do infinito.[7]

O fato de estar a caminho sem poder parar transforma o finito em infinito. O erro quer dizer errância, extravio, caminho sem fim. A errância não precede a escrita. A escrita é, ela própria, errância, não o deserto, mas caminho infinito em direção ao deserto. Começar a escrever é estar no erro e no descaminho. Continuar a escrever é perseverar no erro. Sendo assim, o salto na literatura é a perda de si, o exílio, condição poética. Ainda segundo Blanchot, a experiência literária é inseparável de uma necessidade errante.[8] O erro é o fato de errar, de estar na indeterminação, na indiferenciação, na repetição sem fim. Em Um sopro de vida, “Ângela tem um dom que me comove: o dom do erro”.[9] [...] “Para onde vou? e a resposta é: vou”.[10]

Imperiosa e enigmática, a vocação comporta, como a ordem do supereu, um aspecto singular – sua intransitividade. Obedecer a seu comando conduz, de um lado, a um distanciamento de si e, de outro, desobedecer é a certeza da deserção. Se Clarice segue o chamado e escolhe o caminho da escrita, ela busca também uma literatura que inclui em si mesma o silêncio, talvez na esperança de um dia se calar.

Escrever parece situar-se em Clarice Lispector entre o impossível e o necessário. O corpo inerte da mãe, ponto de real, que não cessa de não se escrever, faz-se causa da escrita fluida, infinita, que não cessa de se escrever. Há uma dimensão do real que diz respeito à pulsão que não cessa de se escrever, de se repetir, até que algo se simbolize e tempere um pouco seu gozo, como fala Attié.[11] Na pulsão algo funciona como necessário, imperativo e, por isso, pode se escrever. Mas há também outra dimensão do real como impossível de se escrever, como a relação sexual.

Todos nós conhecemos a passagem de Lituraterra na qual Lacan evoca uma paisagem vista do avião quando em sua viagem de retorno do Japão. Por entre as nuvens, ele vê uma planície desolada marcada unicamente pelo escoamento das águas. Os semblantes como as nuvens se rompem, e o que se precipita fura o saber como um ravinamento do significado, como gozo. Assim como a chuva faz rasura na terra, o gozo faz sulcos no real. A letra é o litoral que faz borda entre estes dois campos heterogêneos: o saber (os semblantes e os significantes) e o gozo.

Clarice Lispector e sua vocação de escritora nos ensinam que as relações entre a escrita e o real dizem respeito seja ao necessário, aquilo que cessa de não se escrever, seja ao impossível, aquilo que não cessa de não se escrever. Não seria esse o desassossego da escrita clariciana? Entre o necessário e o impossível?

II “Ir para”: o túnel da puberdade, outra errância

Encontramos em Preciosidade, pequeno conto que integra Laços de família, uma espécie de rito de iniciação no qual “ir para” ganha os contornos da escrita e do despertar do sexo. Inicialmente somos lançados na repetição. Um dia depois do outro, os acontecimentos se equivalem nos mesmos gestos cotidianos: uma adolescente faz o seu caminho da casa até a escola e da escola até a casa. Ela acorda antes de todos, atravessa a grande rua deserta, percorre seu caminho como um soldado. Séria como um missionária, ela sobe no ônibus desejosa de (não)ser vista pelos trabalhadores que poderiam lhe dirigir a palavra, ou simplesmente o olhar. Caminhando “como um soldado”, ela quer ser anônima, invisível. “O que a poupava é que os homens não a viam [...]. Eles olhavam e não a viam. Ela fazia mais sombra do que existia”.[12] Mas alguma coisa já começara a acontecer à medida que os dezesseis anos se aproximavam “em fumaça e calor”, alguma coisa “intensamente surpreendida” que surpreendia alguns homens.

Freud[13] descreve a puberdade como a conclusão de um túnel cavado através de uma montanha, a partir de ambos os lados. Sua tarefa mais dolorosa é o desligamento da autoridade dos pais. Algo impele o adolescente a transpor “a mornidão insossa da casa” e se lançar na vida verdadeira, aquela para além da casa e da família, e encontrar um lugar e um modo de ser longe do círculo familiar, com os outros. Esse momento de transição é marcado por uma distância “no sujeito entre seu ser de criança e seu ser de homem e de mulher”.[14] Lacadée afirma que a adolescência surge, a princípio, como um perigo para o indivíduo e que a psicanálise nos fornece o lugar e a fórmula desse perigo: a sexualidade.

No conto, todo o caminho da adolescente é contado como uma batalha, o outro é uma ameaça que poderia desvelar a preciosidade escondida nela. No medo, o desejo já desperto. Prepara-se o ato que vai acordar essa preciosidade secreta. Apesar de se fazer invisível, a sola dos sapatos faz um barulho insistente que se escuta ao longo da narrativa tornando-a evidente. [...] “os tacos de seus sapatos faziam um ruído que as pernas tensas não podiam conter como se ela quisesse inutilmente fazer parar de bater um coração, sapatos com dança própria”.[15] O desejo pulsando, fazendo barulho, irreprimível.

Chega então um dia diferente dos outros, um dia em que a repetição é rompida: era uma manhã mais fria, ela havia se levantado um pouco mais cedo, ela não estava sozinha. Dá-se o encontro com os homens: “[...] no fim longínquo de sua rua, de dentro do vapor, viu dois homens”.[16] Entre fugir e continuar, a impossibilidade da escolha, e “ir para” é a única decisão possível, marcando a inelutabilidade de um destino.

[...] mas como voltar e fugir, se nascera para a dificuldade. Se toda a sua lenta preparação tinha o destino ignorado a que ela, por culto, tinha que aderir. Como recuar, e depois nunca mais esquecer a vergonha de ter esperado em miséria atrás da porta?

[...] Mas não era coragem. Era o dom. E a grande vocação para um destino. Ela avançava sofrendo em obedecer.[17]

A vocação da menina contrasta com a falta de vocação dos agressores. Como diz Blanchot, ela está na impossibilidade de retornar sem a certeza de ter cometido um grave erro. A ordem é imperativa, urgente, inelutável.

O que se seguiu foram quatro mãos difíceis, foram quatro mãos que não sabiam o que queriam, quatro mãos erradas de quem não tinha vocação, quatro mãos que a tocaram tão inesperadamente que ela fez a coisa mais certa que poderia fazer: ficou paralisada.[18]

As mãos deles não têm vocação, não sabem o que querem, enquanto a menina tem um dom, a grande vocação para um destino que se confunde entre mulher e escrita. Depois, ela é uma mulher, se dá conta de sua solidão no mundo e não reconhece mais a letra redonda que era a sua. A adolescente parece privada da sua língua da infância, na qual ela se reconhecia e se identificava. Será preciso inventar outra letra. Não tão redonda. À ordem dos dias, à rotina, aos ritmos, à uniformidade da letra redonda, sucedem-se a desordem, o inconcluso, a fluidez de uma escrita inacabada.

Lacadée evoca uma precisão feita por Lacan em relação à raiz etimológica do verbo “errer” (vagar):

Errer resulta da convergência de error com algo que nada tem a ver em sentido estrito, mas é aparentado a esse erre: a relação com o verbo iterare. Iterare aí está unicamente pelo iter, que quer dizer viagem. Assim, ainda que errer venha de iterare, nada tem a ver com viagem, pois quer dizer repetir de iterum.[19]

Se, como afirma Lacadée, o não tolo busca preservar sua “liberdade de ação” em relação à linguagem, recusando-se à captura do Outro da linguagem, ele se encontra condenado a errar. “Tal é o preço da liberdade na língua, liberdade que leva, para além do erro, à errância dos neologismos, verdadeira busca de uma nova língua”.[20] O destino da nossa “missionária” está ligado à escrita, que não cessa. Preciosidade exibe como a adolescência se articula com o encontro do sexual, que retira o sujeito da sua infância, anunciando a separação de seus pais. Nesse túnel, o adolescente será levado a rejeitar os semblantes do Outro no qual ele se situava. Privado da língua da sua infância, será preciso inventar sua própria solução.

Cristina Marcos é psicanalista, mestre em literatura brasileira pela UFMG, doutora em psicanálise pela Universidade de Paris 7 e docente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da PUC Minas.

Derivas analíticas agradece a Cristina Marcos por sua colaboração com este número da revista.

Notas

[1] LISPECTOR, 1999a, p. 414.

[2] LISPECTOR, 1999a, p. 110, grifo da autora.

[3] LISPECTOR, 1999b, p. 29.

[4] BLANCHOT, [1959] 1995, p. 142.

[5] LISPECTOR, 1999a, p. 286.

[6] LISPECTOR, 1999, p. 46.

[7] BLANCHOT, [1959] 1995, p. 130.

[8] FRIES, 1999.

[9] LISPECTOR, 1999b, p. 131.

[10] LISPECTOR, 1999b, p. 66.

[11] ATTIÉ, 2012.

[12] LISPECTOR, 1994, p. 104.

[13] FREUD, (1905) 1989.

[14] LACADÉE, 2011, p. 19.

[15] LISPECTOR, 1994, p. 105.

[16] LISPECTOR, 1994, p. 109.

[17] Lispector, 1994, p. 110.

[18] LISPECTOR, 1994, p. 110.

[19] LACAN, 13 nov. apud LACADÉE, 2011.

[20] LACADÉE, 2011, p. 43.

Referências

ATTIE, J. Écriture et réel. Quarto Revue de Psychanalyse, Paris, n. 101-102, p. 142-151, juin 2012. École de la Cause Freudienne.

BLANCHOT, M. L’échec du démon: la vocation (1959). In: ______. Le livre à venir. Paris: Folio Essais, 1995.

FREUD, S. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905). In: ______. Um caso de histeria, três ensaios sobre a teoria da sexualidade e outros trabalhos (1901-1905). Direção-geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 128-229. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 7).

FRIES, P. La théorie fictive de Maurice Blanchot. Paris: L’Harmattan, 1999.

GOTLIB, N. Uma vida que se conta. São Paulo: Ática, 1995.

LACADÉE, P. O despertar e o exílio. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2011.

LACAN, J. Lição sobre “Lituraterra”. In: ______. O seminário, livro 18: de um discurso que não fosse semblante (1970-1971). Rio de Janeiro: Zahar, 2009.

LISPECTOR, C. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999a.

LISPECTOR, C. Laços de família. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.

LISPECTOR, C. Um sopro de vida. Rio de Janeiro: Rocco, 1999b.

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