Revista Derivas Analíticas - Nº 20 - Março de 2024. ISSN:2526-2637
Sobre nuvens e redemunhos:
notas de uma visita a Coreografias do impossível [1]
Daniela Teixeira Dutra Viola
Psicanalista
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Crédito: Fotografia de Samesyn (2023), de Igshaan Adams. © Levi Fanan / Fundação Bienal de São Paulo. Usado com permissão.
Coreografias do impossível, o nome da 35ª Bienal de São Paulo, alude ao real do corpo. Do grego khorus (“círculo”) e graphe (“escrita”, “representação”), coreografar é grafar o espaço com o movimento corporal. O projeto curatorial parte da pergunta: “Como corpos em movimento são capazes de coreografar o possível, dentro do impossível?” (LIMA et al, 2023, s/p). Nessa proposta, a “ideia de coreografia se baseia na natureza enigmática do fato artístico e, portanto, em tudo aquilo que não está esgotado, nem evidente. No que podemos nomear como segredo, mistério ou o próprio infinito” (LIMA et al, 2023, s/p).
Uma coreografia é, então, uma escrita com o corpo. Em sua aproximação do campo da arte, a psicanálise pode sustentar o silêncio diante da natureza enigmática do fato artístico. E pode ler o enigma de uma escrita, à maneira que lê um sintoma (MILLER, 2011a) – sendo o sintoma aquilo em que identificamos o que se produz no real (LACAN, 1974-75), o impossível (LACAN, 1972-73/1985). Ainda que a perspectiva psicanalítica do impossível não compareça textualmente na carta da curadoria, é com essa referência que uma psicanalista caminha por algumas horas pelos amplos espaços do Pavilhão. E encontra uma Bienal traçada por linhas de força tais como a territorialidade, a segregação e a diversidade. A visada de um “encontro impossível” começa na formação da equipe de curadores, composta de forma horizontal por pesquisadores com diferentes trajetórias, origens, raças. O conjunto de obras demonstra o empenho em dar lugar ao que está nas margens. Vê-se uma profusão de materiais orgânicos, odores, texturas, sons, idiomas provenientes dos confins do Brasil e do mundo. Nota-se uma nebulosidade nos limites entre objeto artístico e objeto natural, arte e manifesto político, concreto e imaterial. Em meio ao “artivismo”, insurgências do fora de sentido.
Na “Lição sobre “Lituraterra””, Lacan (1971/2009, p. 108) comenta sobre a “intrusão” da psicanálise na crítica literária. Ele afirma que, se propõe à psicanálise o texto literário, é por abordá-lo mostrando seu fracasso: é ao demonstrar onde a psicanálise faz furo.
É por esse método que a psicanálise poderia justificar melhor sua intrusão na crítica literária. O que significaria que a crítica literária viria efetivamente a se renovar pelo fato de a psicanálise estar aí para os textos se medirem por ela, justamente por ficar o enigma do seu lado, por ela se calar. (LACAN, 1971/2009, p. 108)
Não seria esse “método de intrusão” uma orientação para a aproximação da psicanálise do campo artístico? Diante do enigma, lê-se o “está escrito impossível” (LACAN, 1971/2009, p. 119, grifo do autor) que a experiência com a arte, às vezes, proporciona.
Num de seus últimos escritos, Freud (1937/2017) carimba a marca de “ofício impossível” na psicanálise, que entra numa série ao lado de educar e governar por incluir a dimensão do fracasso em sua prática. A interpretação é insuficiente diante da resistência, da reação terapêutica negativa e da compulsão à repetição, ruídos da pulsão de morte. “Quase sempre há fenômenos residuais” (FREUD, 1937/2017, p. 331). Das considerações sobre os restos sintomáticos e os limites de uma análise, ele desliza para a feminilidade, um “continente” de impossível decifração no campo da sexualidade, aproximando-se, à sua maneira, do real – um “fenômeno residual” em sua obra.
E é ao redor da impossível inscrição da relação sexual para o ser falante que Lacan (1972-73/1985) vai definir o real como o que não para de não se escrever. Não há na linguagem existência da relação sexual, daí a tentativa infinita e sempre fracassada de sua impossível inscrição. Já o desejo “se inscreve por uma contingência corporal” (LACAN, 1972-73/1985, p. 126) e depende da função fálica, que opera o que ele chama de “regime do encontro” (p. 199): diante de certo objeto, para-se de não se escrever.
Miller (2011b) recorda que a noção de impossibilidade decorre do fato de ser impensável recompensar a falta fundamental do psiquismo. E que o real, por ser inassimilável, só pode ser introduzido por um “não”. Quer dizer que é preciso haver uma articulação simbólica para se considerar que alguma coisa é impossível. De acordo com ele, na análise, a passagem do que não cessa de não se escrever para o regime do que cessa de não se escrever se dá por atravessamentos. “Vemo-nos então constatando nossa capacidade de fazer o que antes nos parecia fora de questão” (MILLER, 2011b, p. 143). Tem-se o eco de que impossíveis obstáculos podem ceder, afirma. Para além da clínica, esse deslocamento do impossível ao contingente pode balizar uma leitura do campo artístico em sua dimensão de borda, como aquilo que, ao ultrapassar o negativo que enuncia a impossibilidade, dá certo testemunho do real, ainda que por um instante.
Um mapa do real: Igshaan Adams e sua “linha do desejo”
Créditos: Fotografia de Samesyn (2023), de Igshaan Adams. © Levi Fanan / Fundação Bienal de São Paulo. Usado com permissão.
Numa Bienal tonalizada por territórios e fronteiras, pela terra em suas diversas formas de composição orgânica e mineral como base dos objetos, uma instalação condensa de maneira notável as danças do impossível. Do artista sul-africano Igshaan Adams,[2] a obra Samesin – traduzido do africâner como “comunhão” – ocupa uma grande extensão do 2º piso do Pavilhão. O vasto mapa-tapete não é a cartografia de um lugar, mas uma espécie de “grafia” de um não-lugar, formada por um emaranhado de fios e franjas. No ar, em suspensão sobre a tessitura desse mapa abstrato, vê-se novelos e aramados também pontuados por pedrarias e miçangas, como precipitados do que não pôde se escrever no chão: uma alusão às “nuvens de poeira” que se formam nos campos a partir dos passos do riel, dança tradicional africana caracterizada pela ligeireza dos pés na terra, como informa o artista.
Adams diz que a instalação é atravessada por “uma linha do desejo”. Para ele, seu trabalho é inspirado pelas questões políticas e sociais que marcam seu lugar de origem, referindo-se ao segregacionismo do Apartheid na África do Sul. Seu mapa-tapete desenha os caminhos do desejo de liberdade, bem como registra os vestígios dos passos de uma dança. Resta o enigma cravado nas tramas dessa tapeçaria, em cada miçanga que guarda um segredo de quem a costurou, nos recortes inusitados e meandros de franjas – fronteiras que mais parecem litorais vistos do alto.
Ao flanar pelo mapa de Adams – como quem caminha pelos “mapas desmedidos” de Borges (1946/1982), aqueles que têm a mesma dimensão do que representam –, penso no sobrevoo de Lacan sobre a planície siberiana descrito em “Lituraterra”. A trama lembra o relevo de sulcos e litorais, enquanto as estruturas aramadas suspensas evocam as nuvens. Contudo, trata-se de “Lituraterra” de ponta-cabeça: em vez de águas que rompem da nuvem e chovem num ravinamento da terra, corpos escrevem com os pés no chão, elevando a poeira que forma a nuvem – esse objeto insólito e contingente. O artista costura sua arte com o fio do desejo a partir desse encontro, uma contingência corporal, que também acontece em seu ateliê, frequentado por um coletivo de mulheres bordadeiras, que dançam e cantam ao tecer um mapa sem fronteiras, avesso a qualquer apartheid.
Numa leitura de “Lituraterra”, Laurent (1999) destaca o “puro traço que opera” sem nada significar no escoamento das águas avistadas pelo sobrevoo lacaniano. Nas palavras de Lacan (1971/2009, p. 113), “rasura de traço algum que seja anterior”. O que se inscreve é um litoral, linha heterogênea em todos os pontos, separação que não é fronteira, e, sobretudo, que não delimita um interior e um exterior. A partir das indicações de Lacan sobre o traço do calígrafo e do pintor, Laurent (1999, p. 80) relaciona esse tracejar ao movimento do fort-da: “não é apenas a oposição fonemática o-a, fort-da, mas o próprio gesto que conta, uma vez que é portador da inscrição desse traço”. E esse gesto é o movimento do corpo que traça um limite entre o sentido e o campo do gozo.
Com essa referência, podemos ler as linhas riscadas pelos pés no riel, num encontro de corpos dançantes, ou o que é tecido pelas mãos das tecelãs da “comunhão”, como a escrita de um mais-além do sentido político que uma fronteira representa. Como enfatiza Miller (2010), ao postular uma salvação pelos dejetos, na sublimação está em jogo uma socialização do gozo. Ou seja, o gozo do Um entrelaça-se com o discurso do Outro, de maneira a se inscrever no laço social. A instalação de Adams é exemplar dessa inscrição. Há um desejo de liberdade compartilhado, de modo que o social e o político estão bordados na obra, mas não literalmente – talvez, “Lituraterramente" – nesse efeito de sentido que um encontro contingente proporciona. É pela linha do desejo que se borda um mapa capaz de transbordar a segregação, preservando em sua trama os mistérios de um dark continent.
Nuvem, turbilhão, redemunho: imagem-enigma da contingência
Uma nuvem é “o semblante por excelência”, afirma Lacan (1971/2009, p. 114). Em “Lição sobre “Lituraterra””, há uma função para esse semblante na escrita erodida na planície siberiana: “o que se revela por minha visão do escoamento, no que nele a rasura predomina, é que, ao se produzir por entre nuvens, ela se conjuga com sua fonte”, pois é de sua ruptura – da ruptura com o campo do significante – “que chove esse efeito em que se precipita o que era matéria em suspensão” (LACAN, 1971/2009, p. 113-114). A nuvem introduz a dimensão do significante, que, como semblante, se dissolve na ruptura das águas. E há um gozo na ruptura de um semblante: o que chove no real e se apresenta como ravinamento das águas – imagem que Lacan utiliza para desenvolver a noção de letra. Trata-se de uma escrita no real, “o que choveu do semblante como aquilo que constitui o significante” (LACAN, 1971/2009, p. 114). Essa escrita não decalca o significante, mas remonta a ele ao receber um nome.
A nuvem, essa suspensão fugaz de partículas, é uma imagem da contingência. Laurent (1999) indica que nessa passagem da nuvem-semblante à rasura no real há uma abolição do imaginário. Na passagem do impossível ao contingente, um mundo de imagens anuviadas, não há metáfora, mas turvação do sentido. Se “O real é estritamente o que não tem sentido” (Lacan, 1976/2016, s/p), talvez a nebulosidade seja uma forma, via contingência, de evocação do sem-sentido.
O filósofo, historiador e crítico de arte Didi-Huberman (2013, p. 10-11) pergunta: “Ora, o que se pode conhecer de uma nuvem, senão adivinhando-a e sem nunca a apreender inteiramente?”. A nuvem não se deixa ler à maneira de uma imagem estável e delimitada. É um horizonte impossível para a decifração e costuma irromper em obras de arte ao longo da história com certa infamiliaridade.
Em sua obra Dentro do nevoeiro, o arquiteto Guilherme Wisnik (2018) também se detém diante da nuvem. Numa pesquisa que parte do marcante caráter de “nublamento” da arquitetura contemporânea, desbrava o universo das imagens vaporosas do mundo atual e demonstra como as brumas que pairam sobre a arte fazem parte de uma resposta à hipervisibilidade do nosso tempo.
A nebulosidade e a falta de clareza e de definição podem assumir sinais tanto negativos quanto positivos no mundo atual. Afinal, a imagem da nuvem não é unívoca. Se, por um lado, dentro dela nos vemos cada vez mais controlados e expropriados dos meios cognitivos para mapeá-la, por outro, são as poéticas do embaçamento e do retardamento, em arte, as estratégias que melhor se opõem ao regime de nitidez das imagens-fetiche que alimentam a “sociedade da hipervisibilidade” na qual vivemos, e que é o par oculto das nuvens financeiras e digitais. (WISNIK, 2018, p. 307)
Wisnik propõe a noção de imagem-enigma como contraponto à nitidez das imagens-fetiche que povoam a hipervisibilidade e a hiperexposição da cultura contemporânea. A instalação Samesin, de Igshaan Adams, segue essa linhagem enigmática e opera, para quem flana nos seus vãos, como a nuvem que embaça os excessos de um mundo hipervisível.
Uma imagem-enigma que também se conjuga com uma escrita do real e que faz parte do repertório cultural brasileiro é o “diabo na rua, no meio do redemunho”, figuração contingente e perturbadora que irrompe na travessia de Grande Sertão: Veredas (ROSA, 1956/2019). Um “redemunho” é um turbilhão, imagem importante no último ensino de Lacan (1977/2016, s/p) para figurar o que, do desejo, turbilhona em torno do furo. Redemunho, neblina, nuvem de poeira, nevoeiro infamiliar, turbilhão, que, talvez, muitos de nós, mineiros com raízes “de lá do sertão, lá do cerrado, lá do interior do mato”,[3] ou simplesmente marcados pela letra de Rosa, conheçam pelas mais recônditas memórias carregadas de assombro. No meio do caminho, às vezes, tem um redemunho.[4]
Créditos: Fotografia de Samesyn (2023), de Igshaan Adams. © Levi Fanan / Fundação Bienal de São Paulo. Usado com permissão.
Referências
BORGES, J. L. Sobre o rigor na ciência. In: História universal da infâmia. Lisboa: Assírio e Alvim, 1982. (Trabalho original publicado em 1946).
DIDI-HUBERMAN, G. Diante da imagem: questão colocada aos fins de uma História da arte. Tradução de P. Neves. São Paulo: Editora 34, 2013.
FREUD, S. A análise finita e a infinita. In: Obras incompletas de Sigmund Freud: Fundamentos da clínica psicanalítica. Tradução de C. Dornbusch. Belo Horizonte: Autêntica, 2017. (Trabalho original publicado em 1937).
LACAN, J. Le Séminaire, livre 22: R.S.I. (Inédito). (Trabalho original proferido em 1974-75).
LACAN, J. O Seminário, livro 20: Mais, ainda. Tradução de M. D. Magno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985. (Trabalho original proferido em 1972-73).
LACAN, J. Lição sobre “Lituraterra”. In: O Seminário, livro 18: De um discurso que não fosse semblante. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009. (Trabalho original proferido em 1971).
LACAN, J. Atas de encerramento das Jornadas de Cartéis. Pharmakon Digital, v. 12, nov. 2016. Disponível em: http://encerramento-das-jornadas-de-estudos-de-carteis-da-escola-freudiana/. Acesso em: 01 fev. 2024. (Trabalho original publicado em 1976).
LAURENT, É. A carta roubada e o voo da letra. Correio – Revista da Escola Brasileira de Psicanálise n. 65, abr. 1999.
LIMA, D. et al. Projeto curatorial: coreografias do impossível. Sobre a 35ª Bienal de São Paulo. 2023. Disponível em: https://35.bienal.org.br/sobre-a-35a/. Acesso em: 01 fev. 2024.
MILLER, J-A. Le salut par les déchets. Mental: Clinique et pragmatique de la désinsertion en psychanalyse, n. 24, abr. 2010.
MILLER, J.-A. Ler um sintoma. AMP Blog, ago. 2011a. Disponível em: http://ampblog2006.blogspot.com/2011/08/jacques-alain-miller-ler-um-sintoma.html. Acesso em: 01 fev. 2024.
MILLER, J.-A. Perspectivas dos escritos e outros escritos de Lacan. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2011b.
ROSA, J. G. Grande Sertão: Veredas. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. (Trabalho original publicado em 1956).
WISNIK, G. Dentro do nevoeiro: arquitetura, arte e tecnologia contemporâneas. São Paulo: Ubu, 2018.
Notas
[1] Este texto é um efeito da visita de uma integrante da equipe editorial da Derivas Analíticas à 35ª Bienal de São Paulo, intitulada Coreografias do impossível, em outubro de 2023.
[2] Igshaan Adams nasceu na Cidade do Cabo, África do Sul, em 1982, onde vive.
[3] Da canção Lamento sertanejo, de Gilberto Gil (1975).
[4] “Redemunhos”, ou redemoinhos, são ventos em espiral que costumam aparecer subitamente como torvelinhos de poeira em terrenos vastos e ermos em dias quentes de sol. São relativamente comuns no chamado “sertão” brasileiro, sendo sua imagem (in)familiar para aqueles que têm experiências em territórios rurais no interior de Minas Gerais, como a autora deste texto nas fazendas e lendas de sua infância.