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logoder Revista Derivas Analíticas - Nº 21 - Agosto de 2024. ISSN:2526-2637


Sobre o Penisneid: algumas contribuições terminológicas

Inés García López
Professora de alemão, Universitat Rovira i Virgili (Tarragona)

Sócia da Comunidade da Catalunha da ELP
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No alemão atual, o termo Neid se define como um sentimento de falta de vontade, ou descontentamento, um Unlustgefühl que afeta aquele que deseja o que o outro possui, mas não pode consegui-lo, ficando assim na posição de Besitzloser, quer dizer, despossuído, sem bens, (WAHRIG , 1978, p. 2636).

O significante Neid é sinônimo de Mißgunst e de Unwillen, palavras que se referem a sentimentos relacionados com a indignação, o desafeto ou o malquerer. Nos textos da Grécia Antiga, o Götterneid, a inveja dos deuses (φϑόνος ϑεῶν, phthónos theōn), converteu-se em um motivo literário: os deuses sentiam inveja uns dos outros e inclusive dos humanos (NORDHEIM-DIEHL, 2009). Posteriormente, no Antigo Testamento, a inveja é considerada um sentimento unicamente humano e o termo Götterneid desaparece dos textos bíblicos. Quando algo despertava inveja, fosse ela humana ou divina, as consequências costumavam ser fatais e levavam inevitavelmente a um enfrentamento. De fato, a origem etimológica do termo Neid provém do vocábulo em alto alemão antigo nid, que significa ódio. Alguns séculos mais tarde, aparece a expressão “ter nît” em alto alemão médio, que fazia referência aos sentimentos hostis que se sentiam por alguém (“eine feindselige Gesinnung”), até o ponto de querer provocar-lhe dano ou feri-lo em batalha. Tal como aponta Mathias Lexer (1932, p. 151), durante a Idade Média, esse termo estava relacionado com o ressentimento, os ciúmes e a violência.

Observamos, então, que, na língua alemã, o campo semântico do qual provém a palavra Neid tem relação com a ira, a inimizade e o enfrentamento. O mesmo ocorre em outras línguas germânicas. Por exemplo, no inglês médio encontramos o termo cognato nīđ, que significava disputa, agressão, ódio (HOLTHAUSEN, 1974, p. 237). Em islandês antigo, esse termo adquire um matiz diferente, já que níð se traduz por zombaria, vergonha ou escárnio. É interessante observar como o irlandês antigo, apesar de ser uma língua celta, também incorpora esse termo de origem germânica para referir-se a batalha ou combate (air. nīth).

Na tradução anglo-saxã do texto latino Historiae adversus paganos, de Paulus Orosius, encontramos um exemplo literário que ilustra esse uso de Neid em um contexto combativo e com relação a uma figura feminina. Ao narrar a história da rainha Semíramis, a fundadora da Babilônia, o tradutor utiliza uma expressão anglo-saxã que seria equivalente ao weiblicher Neid[1] em alemão moderno: “hió mid wíflice níþe wæs feohtende on ðaet underiende folc” (BOSWORTH; TOLLER, 1898, p. 722) – “ela [Semíramis] com ira feminina lutava contra a gente indefesa”.

Finalmente, é importante destacar que o termo envidia, o equivalente de Neid em espanhol, distancia-se do campo semântico germânico, já que se origina do vocábulo latino invidia. Literalmente, invidere se traduz por “lançar o olhar em algo”, isto é, dirigir o olhar em direção ao outro, mas com a intenção de produzir um mau-olhado (WALDE; HOFFMANN, 1938, p. 713). De fato, do verbo invidere deriva a expressão “echar mal de ojo[2].

O Penisneid na obra de Freud

Freud (1908/2018) utiliza o termo Neid em referência ao pênis pela primeira vez em seu ensaio “Sobre teorias sexuais infantis”,[3] escrito três anos depois da publicação dos “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” (FREUD, 1905/1976). Nesse texto, Freud nos indica que abordará as teorias sexuais das crianças, aquelas teorias que tomam forma no pensar infantil, e cujo conhecimento ele considera imprescindível para a compreensão das neuroses. Desde o início, Freud assinala a diferença sexual como uma questão fundamental, a qual os meninos e as meninas mostram um desejo precoce de compreender. No entanto, esse Wissensdrang[4] não desperta por uma necessidade inata de conhecer a causa das coisas,[5] mas sim “sob o ferrão das pulsões egoístas que as dominam” (FREUD, 1908/2018, p. 98). Observamos, então, ao continuar a leitura do ensaio, que o marco no qual Freud utilizará o termo Neid é justamente o do enfrentamento (primäre Feindseligkeit), uma hostilidade que chega ao ponto de cometer “pequenos atentados em prejuízo do outro”.

A primeira das teorias sexuais nas crianças consiste em atribuir a todos os seres humanos um pênis. A percepção dos genitais da mulher como mutilados por parte do menino faz emergir o espanto que se enoda no complexo de castração.[6] Na menina, por sua vez, o que surge inicialmente é um interesse pelo pênis. Esse interesse passará a ser dirigido posteriormente pela inveja, um sentimento que a faz sentir um prejuízo, um agravo (Benachteiligung[7]) a partir do qual ela formula seu desejo – “Eu gostaria de ser um menino”:

Ela desenvolve grande interesse por essa parte do corpo do menino, interesse que logo é comandado pela inveja. Ela se sente prejudicada e faz tentativas de urinar na posição que é possível ao menino por possuir um grande pênis e, quando expressa o desejo: “Eu gostaria de ser um menino”, então sabemos qual falta esse desejo deve remediar. (FREUD, 1908/2018, p. 104)[8]

O Neid e o complexo de castração[9]

Em “Introdução ao narcisismo”, Freud (1914/2010) articula o complexo de castração em torno dos sentimentos de medo ou angústia do menino quanto ao pênis e os de inveja da menina quanto a esse mesmo órgão: “Penisangst beim Knaben, Penisneid beim Mädchen”.

O narcisismo pode constituir-se como resposta ao “ferrão das pulsões egoístas” que desperta o desejo de saber na infância. De fato, Freud (1914/2010, p. 10) define o narcisismo como “o complemento libidinal do egoísmo do instinto de autoconservação”. A vida amorosa dos sexos, constituída pela diferença sexual, é um dos caminhos para explorar o narcisismo. Com relação à escolha de objeto, isto é, às distintas maneiras de amar, também se observam diferenças entre homens e mulheres. Nesse contexto, a inveja já não surge em relação ao órgão sexual, mas se desloca e emerge ante a forma mesma de uma pessoa narcisista. Segundo Freud (1914/2010, p. 23), o narcisismo gera atração e interesse; e, novamente, é um interesse dirigido pela inveja: “É como se os invejássemos pela conservação de um estado psíquico bem-aventurado, uma posição libidinal inatacável, que desde então nós mesmos abandonamos”.[10] A inveja surge em relação a algo que o outro possui; e, neste caso, algo a que nós resignamos.

O Neid e a inveja

O transfundo etimológico da palavra Neid, aqui exposto com a intenção de oferecer uma visão mais precisa do sentido da palavra nos textos de Freud, contrasta com o campo semântico do qual provém a palavra envidia em espanhol. Esse vocábulo de origem latina coloca em um primeiro termo o olhar.[11] Mas também é um olhar dirigido, como o é o do interesse do menino e da menina pela diferença sexual.

Cícero, no livro III de suas Discussões Tusculanas, descreve a inveja como um “olhar com demasiada atenção” e a considera como uma das perturbationes (paixões) da alma a que os gregos se referiam como pâthë e que se caracterizavam por não obedecer à razão. Cícero assinala que a palavra invidere é ambígua, já que significa não somente “ter inveja”, mas também “ser invejado”. Para solucionar essa ambiguidade, propõe o termo invidentia para referir-se de maneira mais precisa ao sentimento ou paixão daquele que tem inveja.[12] Do vocábulo invidentia deriva o termo espanhol moderno invidente, o qual, ainda que efetivamente signifique “cego”, etimologicamente significa “aquele que vê”.

Esse paradoxo se conserva em outras referências muito populares que foram conformando gradualmente o substrato simbólico da palavra inveja. Nesse sentido, resgatamos a sentença do historiador romano Tito Lívio em Ad urbe condita: “Caeca invidia est”: “a inveja é cega”. Esses dois significantes convergem e acabam deslocando esse “olhar com demasiada atenção” a um “não-ver”, do in-videre ao non-videre. Finalmente, nas Sententiae do escritor romano Públio Sirio, a propriedade de não-ver da inveja se soma à de não-falar, donde a expressão invidia tacite (“inveja calada”) ou a seguinte sentença – muito apropriada se a colocamos em relação com o pensamento freudiano –: “Invidia loquitor non quod est, sed quod subest”: “a inveja não fala do que é, mas do que subjaz”.

Tradução: Vinícius Lima
Revisão da tradução: Miguel Antunes

Referências

BOSWORTH, J.; TOLLER, T. N. An Anglo-Saxon Dictionary. Londres: Oxford University Press, 1898.

CÍCERO, M. T. Disputaciones Tusculanas. Barcelona: Editorial Gredos, 2005.

FREUD, S. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In: Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, Vol. VII, 1976. (Trabalho original publicado em 1905).

FREUD, S. Introdução ao narcisismo. In: Obras Completas. São Paulo: Companhia das Letras, Vol. 12, 2010, p. 13-50. (Trabalho original publicado em 1914).

FREUD, S. Sobre teorias sexuais infantis. In: Amor, sexualidade, feminilidade. Tradução de Maria Rita Salzano Moraes. Belo Horizonte: Autêntica, 2018, p. 95-116. (Trabalho original publicado em 1908).

FREUD, S. O infamiliar [Das Unheimliche]. In: Obras Incompletas de Sigmund Freud. Belo Horizonte: Autêntica, Vol. 8, 2019. (Trabalho original publicado em 1919).

HOLTHAUSEN, F. Altenglisches Etymologisches Wörterbuch. Universitätsverlag Winter GmbH Heidelberg: Heidelberg, Alemanha, 1974.

LEXER, M. von. Mittelhochdeutsches Taschenwörterbuch, S. Hirzel Verlag: Leipzig, Alemanha, 1932.

NORDHEIM-DIEHL, M. von. Neid. In: Das wissenschaftliche Bibellexikon im Internet. 2009. Disponível em: https://cms.ibep-prod.com/app/uploads/sites/18/2023/08/Neid__2018-09-20_06_20.pdf. Acesso em: 01 jul. 2024.

WAHRIG, G. Deutsches Wörterbuch.  Gütersloh, Alemanha: Editora Bertelsmann, 1978.

WALDE, A.; HOFFMANN, J. B. Lateinisches etymologisches Wörterbuch. Heidelberg, Alemanha: Carl Winter's Universitätsbuchhandlung, 1938.

[1] Nota do Tradutor: “Inveja feminina”.

[2] N.T.: Equivalente espanhol da expressão “lançar mau-olhado” em português.

[3] Na reedição dos “Três ensaios” de 1915, foi acrescentado um resumo do texto que estamos comentando, sob o nome Über infantile Sexualtheorien, que se pode consultar em espanhol no Volume IX das Obras Completas publicadas pela Editora Amorrortu (p. 95-116).

[4] N.T.: “Pressão” ou “ânsia de saber”.

[5] O caráter apriorístico da causalidade (de influência kantiana) e a necessidade inata do ser humano por compreender as leis causais (Kausaltrieb, termo que Freud provavelmente tomou de Hermann von Helmholtz) são mostra da concepção determinista da psique na teoria freudiana. Mais adiante, nesse mesmo texto, Freud mencionará “as necessidades da constituição psicossexual” que sustentam precisamente as teorias sexuais nas crianças.

[6] Nesse texto aparece a primeira referência a esse complexo.

[7] Freud não utiliza um adjetivo qualquer para descrever o que sente a menina; é muito preciso na escolha do termo benachteilen para referir-se a esse tratamento desigual, colocar um em desvantagem quanto ao outro.

[8] No original: “Es entwickelt ein großes Interesse für diesen Körperteil beim Knaben, das aber alsbald vom Neide kommandiert wird. Es fühlt sich benachteiligt, es macht Versuche, in solcher Stellung zu urinieren, wie es dem Knaben durch den Besitz des großen Penis ermöglicht wird, und wenn es den Wunsch äußert: Ich möchte lieber ein Bub sein, so wissen wir, welchem Mangel dieser Wunsch abhelfen soll.

[9] A tradução ao espanhol do texto Zur Einführung des Narzißmus pode ser consultada no volume XIV das Obras Completas publicadas pela Editora Amorrortu (p. 65-98).

[10] No original: “Es ist so, als beneideten wir sie um die Erhaltung eines seligen psychischen Zustandes, einer unangreifbaren Libidoposition, die wir selbst seither aufgegeben haben.”

[11] Note-se aqui a relevância que Freud outorga ao objeto olhar quando comenta a angústia de castração em relação ao conto Der Sandmann, de E.T.A. Hoffmann, em seu célebre estudo “O infamiliar” (FREUD, 1919/2019).

[12] “Ademais, se o sábio pudesse cair em aflição, poderia cair também na compaixão ou na inveja (invidentia), não utilizei o termo inveja (invidia), que se usa quando alguém é invejado, enquanto de invidere pode-se usar corretamente o término invidentia, para evitar a ambiguidade do termo invidia, palavra que deriva de ‘olhar com demasiada atenção a fortuna de outro’, como no Melanipo: Quem lançou mau-olhado à flor dos meus filhos?” (CÍCERO, 2005, p. 277).

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