Frederico Feu de Carvalho
I
É usual considerar que as ciências biológicas nasceram da analogia que se pode fazer entre o funcionamento do corpo e o funcionamento de uma máquina. Tal analogia é sugerida pela versão do corpo como res extensa, que Descartes distinguia da res cogitans, a fim de conferir a esta última o apoio necessário à certeza de si como pensamento e da qual depende o método científico que nasce na modernidade. Sabemos também que tal distinção não poupou a Descartes, particularmente em sua Sexta meditação, o problema da reunião do corpo e da alma, cuja solução é dada por uma estratégia similar àquela que liga o eu e o pensamento. De fato, diz Descartes, eu estou certo de habitar o meu corpo e de formar com ele uma espécie de totalidade, pois eu sou diretamente afetado por este corpo, como me mostram as experiências da dor, da sede ou da fome. Sendo assim, a natureza me ensina que “[...] não somente eu estou alojado em meu corpo, como um piloto em seu navio, mas que, além disso, lhe estou conjugado muito estreitamente e de tal modo confundido e misturado, que componho com ele um único todo”.[1] Aqui não se trata, portanto, de uma ideia clara e distinta, como a que permite deduzir a certeza do cogito da dúvida metódica: enquanto duvido, eu penso; logo, eu existo. A reunião do eu com o corpo é antes o efeito de se estar confundido com ele e, de tal maneira, que eu não posso dele me desvencilhar. Eu percebo meu corpo ao mesmo tempo como projeção de uma imagem e como encarnação; posso tomá-lo tanto como minha propriedade, na medida em que posso dispor dele e comandá-lo, quanto ser por ele comandado à revelia de meus desejos e vontades; ele é tanto uma máquina que funciona de modo autônomo, fugindo à minha detecção, quanto um clamor imperativo do qual não posso escapar ou ser indiferente.
É por oposição ao corpo pensado como uma máquina que Canguilhem se refere ao corpo vivo como sendo “[...] este existente singular cuja saúde exprime a qualidade dos poderes que o constituem, visto que ele deve viver sob a imposição de tarefas e, portanto, em relação de exposição com um meio ambiente sobre o qual, em primeiro lugar, ele não tem escolha”.[2] Para esclarecer essa diferença, Canguilhem lembra que “[...] esse corpo é, ao mesmo tempo, um dado e um produto; sua saúde é, ao mesmo tempo, um estado e uma ordem”.[3] Se, como um dado, o corpo responde a um patrimônio genético capaz de acionar a máquina que ele se torna, como um produto, ele se refere muitas vezes a um ideal de compleição, tornando-se objeto de cálculo e intervenção, sendo submetido como tal ao discurso da higiene. Sendo assim, a partir do momento em que a saúde como produto se sobrepõe à sua definição como dado, a saúde perde gradativamente sua significação inicial ligada ao funcionamento do corpo-máquina (“a saúde é a verdade do corpo”, verdade que seria dada pelas leis que se supõem ao funcionamento do corpo) para ganhar um estatuto cada vez mais próximo da facticidade, isto é, “[...] a saúde se torna o sentimento de uma capacidade de ultrapassar capacidades iniciais, capacidade de fazer com que o corpo faça o que ele parecia não prometer inicialmente”.[4]
Isso nos permite avançar em direção ao que Canguilhem chama saúde livre, isto é, a saúde como algo não condicionado e não contabilizado por um saber. “Essa saúde livre não é um objeto para aquele que se diz ou se crê especialista da saúde”.[5] Assim, podemos opor ao corpo-objeto do discurso do especialista o corpo como experiência singular e enigmática de um sujeito. Pelas mesmas razões, a ideia de saúde livre não poderia ser objeto de um discurso higienista, ou seja, de um discurso que se esmera em gerir uma população e que domina o espaço da saúde pública. Ela se refere apenas ao corpo subjetivo, um estado que só pode se relacionar à verdade do corpo enquanto “meu corpo”, que não é uma ideia susceptível de representação, que não pode ser descrito em terceira pessoa e que só pode ser construído na relação transferencial que cada um estabelece com o médico “enquanto meu médico”. O corpo subjetivo não equivale, portanto, a um corpo subjetivado; ele é a experiência imediata do corpo como um produto dos acontecimentos que o atravessam, o que compreende a experiência da língua e de seus efeitos. Enfim, o corpo subjetivo, ao qual se refere a ideia de Canguilhem de saúde livre, é o que resulta do fato de que temos um corpo, e não de que somos um corpo, o que coloca, como uma tarefa adicional do vivente, ter que se ligar ao seu corpo para dele fazer um habitat, seja como uma vestimenta, como um habitáculo, seja como um hábito.
A partir dessa distinção e com base nas elaborações de Canguilhem, cabe perguntar em que medida a perspectiva psicanalítica do corpo se distinguiria da analogia biológica do corpo-máquina, levando em consideração a atualização dessa distinção à luz da noção lacaniana de corpo falante, conforme a tradução proposta por J.-A. Miller para o neologismo lacaniano do “parlêtre”, falasser, em seu texto de apresentação do X Congresso da AMP.[6]
A noção de corpo falante pode, a prinicípio, parecer desconcertante pelo duplo deslocamento que ela provoca: (1) do sujeito falante ao corpo falante, na medida em que a fala se desloca do sujeito ao próprio corpo; (2) do corpo máquina ao corpo falante, na medida em que o automatismo corporal que comumente atribuímos ao funcionamento orgânico se desloca para o campo dos efeitos de linguagem sobre o corpo. Mais do que desconcertante, no entanto, a noção de corpo falante é um mistério, como reconhece Lacan: “[...] o real, eu diria, é o mistério do corpo falante, é o mistério do inconsciente”.[7] O corpo falante não se restringe aos efeitos discursivos da fala sobre o corpo, como reconhecemos desde Freud nos sintomas conversivos histéricos, mas designa, sobretudo, a própria junção da fala e do corpo. Nesse sentido, o corpo falante não remete somente a um saber inscrito no corpo, um saber articulado à cadeia significante, mas também à função da letra no acontecimento de corpo que perpassa as últimas elaborações lacanianas sobre o sintoma. É em relação ao corpo falante que Lacan, em seu Seminário 20, mais, ainda, postulou uma terceira substância, a ser colocada ao lado da res cogitans e da res extensa, a substância gozante, como propriedade do corpo-vivo à qual podemos associar a deriva das pulsões.[8] Essa junção do corpo com a fala esclarece o efeito parasita da linguagem sobre o funcionamento dos órgãos e a distinção crucial entre a deriva das pulsões no ser falante e a orientação instintual de um comportamento animal.
II
A ideia de Canguilhem de saúde livre pressupõe, portanto, que a habitação de um corpo seja o resultado de uma construção, e não um dado. A relação imediata que tenho com o meu corpo, na medida em que eu o encarno, não é suficiente para assegurar a sua propriedade. Tenho várias razões para dizer que este corpo, em minha experiência imediata, não é uma posse, pois se ele pode passar gradativamente e parcialmente para o meu comando superando, assim, a fragmentação motora que se observa nos primeiros anos de vida, se o meu corpo me obedece e vai ao encontro do copo de água que mata a minha sede, ele também age por conta própria, como um navio que obedeceria ao seu próprio comando ou como uma máquina que funciona sozinha depois de ligada.
Esse automatismo pode nos ser tão alheio como a vida que perpassa nossos corpos. Certamente, de um ponto de vista estritamente biológico, a vida não é uma propriedade do indivíduo. Que ele possa ou não se apropriar de seu corpo, que ele possa decidir eventualmente por sua própria morte, é apenas de seu corpo que ele dispõe, sendo seu corpo apenas a condição da vida que o ultrapassa e que se transmite conforme as propriedades das células germinais, para além do organismo que ele é. Assim como a “vida” não é uma propriedade do ser vivo, suas manifestações no corpo e as forças que nele operam no sentido da perpetuação da vida – ou, para dizer conforme a primeira teoria pulsional freudiana, as pulsões sexuais, às quais podemos associar a preservação da espécie por oposição às pulsões de autoconservação – ultrapassam os limites do indivíduo, tornando problemática toda apreensão do corpo como totalidade, unidade, homogeneidade e homeostase, às quais comumente associamos as noções de indivíduo e organismo.
Sendo assim, mantemos com o nosso corpo uma relação de extimidade, para tomar aqui o neologismo lacaniano, que conjuga o mais íntimo com o mais alheio. Pensado a partir das pulsões sexuais, o automatismo da máquina não mais poderia refletir esse alheamento no sentido do “silêncio dos órgãos”, que René Leriche identificava à definição de saúde enquanto tal. De acordo com essa definição, quando se rompe esse silêncio, sabemos que estamos doentes ou que é preciso tonificar ou ajustar a máquina, de forma que o mecanismo se regule e reencontre esse funcionamento silencioso. Sabemos que nossos órgãos, na medida em que são afetados pela pulsão sexual, podem ser perturbados em seu funcionamento orgânico. A literatura psicanalítica produziu um farto material clínico que aponta para as incidências da pulsão sexual no corpo em sua busca obstinada de satisfação. Isso compreende tanto as chamadas “zonas erógenas”, com seus orifícios e bordas, em torno das quais se estabelecem esses circuitos pulsionais, como as afetações dos órgãos pela libido sexual nos fenômenos psicossomáticos.
Freud distinguiu em sua última teoria pulsional um funcionamento ruidoso das pulsões sexuais e um funcionamento silencioso que parasita o organismo e age no sentido de provocar a sua morte.[9] Se, por um lado, as pulsões de vida se articulam a um circuito ao fim do qual uma satisfação é atingida, mesmo que à custa de uma divisão subjetiva, isso se deve à existência de interdições, restrições e ideais aos quais vêm se somar as condições fantasmáticas criadas a partir do trabalho inconsciente, ou seja, dos sulcos formados na junção do corpo e da fala. Por outro lado, as pulsões de morte não se escoam através de nenhum sulco. Seu modo silencioso de incidir sobre o corpo, do qual pouco se sabe, revela-se apenas por sua finalidade, tendo o corpo por objeto. Sendo assim, não poderíamos falar de deriva da pulsão em se tratando da pulsão de morte; tampouco de um circuito pulsional, ao qual se poderia associar magnitudes de prazer e desprazer. A pulsão de morte seria, no fundo, como lembra Lacan, o destino de toda pulsão, na medida em que ela descreve um curto-circuito sobre o corpo, sem laços, sem escoamentos, sem vazão. Em certo sentido, a pulsão de morte reflete os aprisionamentos do gozo no corpo com seus efeitos de inércia e mesmo de aniquilamento sutil.
III
Canguilhem chama a atenção para o fato de que a analogia entre corpo e máquina poderia ser pensada também em sentido inverso: nós projetamos nossas máquinas em analogia com os nossos corpos, de forma que podemos conceber a máquina como uma extensão do corpo.[10] De fato, nossas ferramentas mais primitivas surgiram do nosso corpo como extensões dele, moldadas pelos nossos gestos, ajustadas às nossas mãos. Igualmente, os objetos criados pela ciência, como observa Freud em O futuro de uma ilusão,[11] são um prolongamento do nosso corpo. O telefone é um prolongamento dos nossos ouvidos, o microscópio estende a nossa visão e descortina um mundo que ainda não havia sido percebido por nós. Mas, como bem lembra Canguilhem, a analogia entre o corpo e a máquina, tal como formulada por Descartes, só se tornou possível a partir do momento em que a construção das máquinas foi além de um prolongamento cinemático do corpo, tornando-se autônoma pelo recurso a fontes outras de energia que não a musculatura animal ou humana. A analogia cartesiana com o mecanismo dos relógios reforça essa natureza autônoma da máquina.
A existência do corpo falante, do corpo na medida em que é afetado pela fala, torna também mais patente a desconexão entre o gozo sexual e a vida. Tal desconexão repercute em um segundo patamar a distinção feita por Waismann entre soma e gérmen tão explorada por Freud em O além do princípio do prazer.[12] Assim como a vida parece apenas querer se perpetuar, o circuito autoerótico do gozo parece ligar-se apenas à sua própria satisfação, sem que o sujeito seja levado em conta. Melhor dizendo, em relação ao circuito autoerótico do gozo, o sujeito só vem a posteriori, a reboque, em resposta ao acontecimento irruptivo do gozo, na medida em que este necessariamente o afeta. Mas ao contrário da vida, que prospera para além do meu corpo, o gozo está aprisionado a ele. Pode-se dizer, então, que o corpo-vivo é a condição do gozo. Não há gozo sem corpo. O gozo é, portanto, como diz Lacan, “[...] propriedade do corpo vivo”. Mas “[...] nós não sabemos o que é estar vivo, senão apenas isso, que um corpo, isso se goza”.[13]
Podemos dizer que há ao menos duas dimensões do corpo falante. Essas dimensões foram colocadas em relevo por Jacques-Alain Miller no texto de apresentação para o X Congresso da Associação Mundial de Psicanálise, ao qual já fizemos referência. Por um lado, o corpo falante é o resultado do aparelhamento do gozo pelo significante, que Miller remete ao trabalho do inconsciente e à gramática da fantasia. Por outro lado, o corpo falante é o que goza de si mesmo refletindo, assim, gozo opaco e fora do sentido do sintoma.
Freud considerava que o estudo das pulsões, que ele chamava de sua mitologia, teria avançado muito pouco comparativamente ao estudo do inconsciente. É apenas quando a pulsão se articula à cadeia significante no inconsciente que dela podemos saber alguma coisa. Sendo assim, é quando o inconsciente se apresenta como uma formação, mais próximo de uma estrutura que realiza um circuito e uma entropia, que podemos falar mais apropriadamente do gozo relacionado ao funcionamento de uma máquina. Apenas nesse sentido, pode-se dizer, o gozo está de acordo com o princípio do prazer, embora, muitas vezes, sua satisfação pulsional seja experimentada como um caso de divisão subjetiva que resulta em desprazer para o eu. Para além dessa satisfação fantasmática, ligada às formações do inconsciente, o que ocorre primordialmente é uma satisfação da pulsão no próprio corpo, à revelia do sujeito.
A analogia cartesiana vem aqui em nosso socorro. Pode ser que o comandante ceda o comando à própria nau e se deixe levar por suas fantasias. A fantasia que se desvela em uma formação do inconsciente é, nesse sentido, uma espécie de envoltório do gozo, uma forma de conexão com o corpo, que permite ao sujeito em questão gozar do seu corpo. Lacan deu o nome de gozo fálico a essa forma de conexão. Mas também pode ocorrer que a própria nau tome o poder para atender à sua tendência de gozo, sem que isso passe pelo consentimento do comandante, como vemos com frequência nas compulsões ou em casos de psicose, quando verificamos mais claramente esse curto-circuito da pulsão que não passa pelo inconsciente e que opera mais de acordo com a ideia, mencionada por Lacan, de uma boca que beija a si mesma. Em ambos os casos, caberia pensar na instrumentação do corpo pelo gozo, quer isso passe ou não pela engrenagem significante no inconsciente. O que difere, em ambos os casos, é a posição do comandante, ou seja, a maneira como ele é afetado pela fruição do gozo. Podemos dizer que, de qualquer maneira que concebamos essa analogia, é a fruição de gozo que irremediavelmente enlaça o sujeito à máquina. Disso, como diz Freud, não se pode fugir. Nós o sabemos especialmente pelos estados de angústia que nos acometem. É o que nos dá a certeza de habitar um corpo.
Assim, se a saúde livre implica a construção de um corpo como meu corpo, sua definição inclui necessariamente a construção de um laço singular com este corpo que me afeta e a invenção de um artifício que regule a distância necessária à leitura do meu corpo, na medida em que ele é um mistério constituído e atravessado pela fala. Um ganho analítico seria uma espécie de passo na conformação do gozo, de maneira que eu possa consentir com ele; uma espécie de arranjo, mesmo que precário, que me permita encurtar a distância que me separa de meu corpo como uma máquina gozante e, paradoxalmente, separar-me do corpo com o qual eu me confundo e me misturo. Esse ganho seria uma espécie de reencarnação, uma forma de junção em relação a este corpo com o qual eu me encontro misturado.
IV
Podemos, então, definir o corpo máquina, no sentido da res extensa, como sendo o corpo no funcionamento dos órgãos enquanto não estamos enlaçados a ele, ou seja, na medida em que o gozo é excluído de sua apreensão. É, nesse sentido, o corpo silenciado. Levando-se em conta o corpo falante, por sua vez, a analogia com a máquina pressupõe o aparelhamento do gozo pelo significante, o que necessariamente inclui um sujeito, seja no intervalo da cadeia significante que estrutura a fantasia, seja basculando para a posição de objeto, mas sempre no ponto de junção entre o corpo e a fala.
Nessa perspectiva, o corpo falante excede a consistência imaginária do corpo. De fato, o gozo depende do um do corpo como moldura especular da fantasia que torna possível alguma contenção da deriva pulsional. Mas tal unidade é constantemente ameaçada de dissolução e de regressão mortífera ao estado de fragmentação corporal pela disjunção entre a deriva das pulsões e o um do corpo. Como vimos, o corpo falante se desdobra entre o gozo fálico que resulta de um trabalho do inconsciente e o gozo opaco do sintoma, fora do sentido. O corpo falante resta como um mistério, para retomar aqui o dizer de Lacan.[14] É o corpo na medida em que não nos identificamos com ele, mas com o qual estamos misturados, para além do gozo da saúde como silêncio dos órgãos e da unidade imaginária que lhe dá consistência.
A tarefa de se ligar ao corpo, em decorrência do fato de que não nos identificamos a ele, pode ser entendida como o resultado de um duplo movimento. Por um lado, trata-se de percorrer os desfiladeiros significantes do sintoma que emolduram para cada sujeito a satisfação fantasmática que lhe serve de anteparo frente ao real. Por meio do significante, que trabalha para o gozo, o ser falante se separa da carne extraindo dela um quantum libidinal ao qual ele se liga na fantasia. É a este trajeto regressivo demarcado pela cadeia significante que se liga o trabalho de decifração de uma análise. Por outro lado, trata-se de ir além da fantasia, em direção ao real fora do sentido e ao gozo opaco do sintoma.[15]
Se o corpo falante não se refere apenas às formações do inconsciente, tal como foi abordado por Freud, que viu no corpo uma espécie de superfície de inscrição metafórica e metonímica a ser decifrada, cabe ainda indagar como se pode ler a opacidade do sintoma. Mesmo que não faça funcionar uma cadeia significante, ao modo de uma fantasia, o corpo falante ainda se serve dos rudimentos da língua, dos restos dos encontros do corpo com a língua que materialmente o atravessam. Em certo sentido, o corpo falante fala por si, e isso não estabelece comunicação alguma, a não ser que eu estabeleça uma conversação com este corpo falante sustentada por uma relação de transferência para além de uma suposição de saber, ou seja, por meio de um artifício que torne possível uma leitura do gozo sem sentido do sintoma que perpassa o “meu corpo”, um artifício de nomeação que me permita uma nova aliança com o meu corpo a partir dos traços deixados pela incidência da linguagem no corpo.
É de tal artifício que os analistas nos dão o testemunho no passe. Isso supõe tomar o sintoma na vertente do que Lacan chamou um acontecimento de corpo, e não como uma formação do inconsciente. Como mostra Miller, a definição do sintoma como acontecimento de corpo foi eclipsada pela ênfase dada ao sintoma como advento de significação.[16] Interrogando-se sobre a função do saber em seu Seminário 20, mais, ainda, Lacan lembra que foi a psicanálise que pode anunciar que “[...] há saber que não se sabe, um saber que se baseia no significante enquanto tal”.[17] Isso se mostra na experiência dos sonhos, tanto quanto nos anagramas dos versos saturninos dos quais se ocupou Saussurre e que lhe colocava a enigmática questão de saber se, afinal, eram ou não intencionais. De qualquer forma, atribuindo-lhe ou não um querer dizer, é no lugar do Outro que esse saber se aloja, e o seu sentido é ser um meio de gozo. Aqui se rompe a analogia entre o corpo e a máquina, pois mesmo que uma máquina seja capaz de pensar – como bem indica Lacan nesse mesmo seminário a propósito dos computadores – ela não seria capaz de gozar de si mesma. Canguilhem ressalta que, diferente de uma máquina, um organismo se distingue por portar o saber nele mesmo. A aproximação das teses de Lacan e Canguilhem exige, então, uma retificação. Há, de fato, um saber inscrito no corpo, ao qual podemos atribuir uma função biológica. É mesmo essa a definição do que seja um instinto: um saber já inscrito no corpo, capaz de se transmitir como o gérmen de Waismann, e que se liga ao gozo enquanto tal. Mas em se tratando do ser falante, não saberíamos mais situar em que ponto se perdeu o contato com esse saber já inscrito. Talvez essa perda seja contemporânea do advento da linguagem na medida em que ela prefigura o lugar do Outro como tal. Se o saber do qual se serve o ser falante não está no corpo, mas no lugar do Outro, é justamente por isso que a linguagem deve ser tomada como um órgão fora do corpo. É o que daria sentido à expressão “corpo falante”. É também o que justificaria a aproximação feita por Lacan, na sequência do Seminário 20, mais, ainda, entre o gérmen e a letra:
Penso que vocês sentem aí, quanto ao saber, a função que dou à letra. É aquela a propósito da qual eu lhes rogo não deslizar depressa demais para o lado das pretensas mensagens. É aquela que faz a letra análoga de um gérmen, gérmen que devemos, se estamos na linha da fisiologia molecular, severamente separar dos corpos junto aos quais ele se veicula vida e morte conjuntamente.[18]
Se definirmos a saúde como silêncio dos órgãos, podemos concluir, então, que não há saúde do corpo falante. Em outros termos, o ser falante é aquele que padece do traumatismo da linguagem e de seus efeitos sobre o corpo. Se esse corpo se encontra desnaturalizado ou mesmo mortificado pela incidência da linguagem é somente pelo trabalho do significante que ele poderá encontrar o caminho de volta para que o gozo do corpo lhe seja minimamente acessível. Nesse sentido, só podemos compartilhar das reflexões filosóficas de Canguilhem sobre o destino da analogia cartesiana do corpo-máquina ao tomar a máquina e a técnica em geral nada menos do que como um prolongamento do nosso corpo a serviço do gozo.
Derivas analíticas agradece a Frederico Feu de Carvalho por sua contribuição com este número da revista.
Frederico Feu de Carvalho é psicanalista (EBP-AMP). É mestre em Filosfia pela FAFICH (UFMG) e doutor em Linguística pela FALE (UFMG). É autor de: O fim da cadeia de razões. Wittgenstein, crítico de Freud (Ed. FUMEC e Annablume, 2002).
Notas
[1] DESCARTES, 1983, p. 136, 24.
[2] CANGUILHEM, 2005, p. 41.
[3] CANGUILHEM, 2005, p. 42.
[4] CANGUILHEM, 2005, p. 43.
[5] CANGUILHEM, 2005, p. 44. O leitor encontrará em MILLER, 2011, especialmente no quarto capítulo, um desenvolvimento dessas questões.
[6] MILLER, <http://ebp.org.br/eventos/congressoamp2016.com>.
[7] LACAN, (1972-1973) 1985, p. 178.
[8] LACAN, (1972-1973) 1985, p. 35.
[9] FREUD, (1920) 1969.
[10] CANGUILHEM 2012, p. 130ss.
[11] FREUD, (1927) 1969.
[12] FREUD, 1920) 1969.
[13] LACAN, (1972-1973) 1985, p. 35.
[14] LACAN, (1972-1973) 1985, p. 178.
[15] MILLER, <http://ebp.org.br/eventos/congressoamp2016.com>.
[16] MILLER, 2004, p. 27.
[17] LACAN, (1972-1973) 1985, p. 129.
[18] LACAN, (1972-1973) 1985, p. 131-132.
Referências
CANGUILHEM, G. Escritos sobre a medicina. Tradução de Vera A. Ribeiro. Revisão técnica de Manoel B. da Motta. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005.
CANGUILHEM, G. O conhecimento da vida. Tradução de Vera L. A. Ribeiro. Revisão técnica de Manoel B. da Motta. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012.
DESCARTES, R. Meditações. 3. ed. Tradução de J. Guinsburg e Bento Prado J. São Paulo: Abril Cultural, 1983. (Os pensadores).
FREUD, S. Além do princípio de prazer (1920). In: ______. Além do princípio do prazer, psicologia de grupo e outros trabalhos (1920-1922). Direção-geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1969, p. 17-88. (Edição standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud, 18).
FREUD, S. O futuro de uma ilusão (1927). In: ______. O futuro de uma ilusão, o mal-estar na civilização e outros trabalhos (1927-1931). Direção-geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1969, p. 15 -71. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 21).
LACAN, J. O seminário, livro 20: mais, ainda (1972-1973). Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Tradução de M. D. Magno. 2. ed. rev. Rio de Janeiro: Zahar, 1985. (Campo Freudiano no Brasil).
MILLER, J-A. Biologia lacaniana e acontecimento de corpo. In: Opção lacaniana, Revista Brasileira Internacional de Psicanálise. São Paulo: Eolia, n. 41, dez. 2004, p. 7-67.
MILLER, J-A. Perspectivas dos Escritos e Outros Escritos de Lacan –Entre desejo e gozo. Tradução de Vera Avellar Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 2011. (Campo Freudiano no Brasil).
MILLER, J-A. O inconsciente e o corpo falante. Disponível no site do Congresso AMP 2016. <http://ebp.org.br/eventos/congressoamp2016.com>. Acesso em: 20 jul. 2015.