A psicose ordinária
Uma leitura, sob transferência
Márcia Mezêncio
Introdução
Em 2012, por ocasião da publicação da edição brasileira de A psicose ordinária – A convenção de Antibes, Frederico Feu me convidou para apresentar, em seminário de leitura organizado e coordenado por ele na EBP-MG, o terceiro dos temas que compõem o livro A neotransferência. Interesso-me pelo tema das psicoses e, muito particularmente, interessam-me os questionamentos e as pesquisas sobre a transferência nas psicoses, tema que trabalhei em minha dissertação de mestrado a qual, no ano anterior, a Editora Coopmed havia editado sob o título Clínica psicanalítica das psicoses: o impasse da transferência.[1]
Naquela ocasião, dei à apresentação o título na forma de uma questão – Uma prática com as ‘neopsicoses’? – que retomava o subtítulo da parte III do volume preparatório à Convenção de Antibes,[2] acrescentando-lhe a interrogação. Propus alterar a pontuação a partir de outra questão que me colocava: o que ali se designa como neotransferência é um tipo de transferência específica das psicoses ordinárias ou podemos pensar que a própria transferência na psicose, por ser estruturalmente distinta da transferência na neurose, é o que aqui se apresenta e se designa como neotransferência? Foi por essa via que me pareceu possível tomar também o convite de Frederico Feu para fazer um recorte a partir de minha pesquisa sobre o tema da transferência nas psicoses.
Entre as questões de que eu me ocupava ao pesquisar a especificidade da transferência nas psicoses, eu me perguntava qual seria a utilidade da análise para o psicótico, se ele fazia a maior parte do trabalho sozinho. Em que medida haveria uma “utilidade social” da transferência, considerada como laço social criado pela psicanálise? É ainda bastante comum escutá-la em supervisão: “O que estou fazendo ao atender esse adolescente psicótico? Não sei se, eticamente, estou fazendo o certo, se há efeito para ele. Posso auxiliá-lo a responsabilizar-se pelo seu gozo?” Uma das pistas que muito me interessavam era justamente o deslocamento, operado pelos autores do campo freudiano, em relação ao entendimento da transferência nas psicoses em termos de “psicose de transferência” (em correspondência ao conceito de “neurose de transferência”) para a proposição de uma “psicose sob transferência”.[3]
Parece-me que o tema e o título do XI Congresso da AMP – As psicoses ordinárias e as outras – sob transferência[4] dão continuidade a esse propósito de investigar a especificidade da transferência nas psicoses, delimitando um campo, já que somente “sob transferência” é que se pode falar de uma clínica psicanalítica. “Sob transferência se realiza a clínica psicanalítica, na neurose e na psicose, o que requer a presença e o ato do analista”.[5]
Como se pode ver, a questão mantém sua atualidade e se recoloca mais uma vez, a partir do convite para a escrita do presente texto. Vou retomar alguns pontos que destaquei naquele seminário de leitura. A proposta do trabalho desenvolvido na série de conversações sobre o que a partir dali se convencionou chamar de “psicoses ordinárias”, era estabelecer “convenções” que pudessem orientar a “prática com as neopsicoses”. Buscavam-se instrumentos para operar com o que de novo se apresentava na clínica e avançar no que se refere à transferência, sua concepção e seu manejo. Não é demais reafirmar que a definição de psicose ordinária não é rígida[6] e que se trata “de uma categoria mais epistêmica do que objetiva”,[7] ou seja, de um projeto de investigação.
A psicose ordinária não é uma nova categoria clínica, mas um aparato epistêmico suplementar. As psicoses ordinárias, antes de mais nada, não se deixam circunscrever: pode-se encontrá-las em todos os lugares, inclusive onde menos se espera. Porém, elas não se encontram na ‘terra de ninguém’; elas são psicoses. Ao localizá-las nesse campo, é todo o conjunto das psicoses que é interrogado.[8]
Pareceu-me que uma boa forma de iniciar a apresentação da parte do livro intitulada A neotransferência seria começar um pouco ao inverso, tomando a questão (ou as questões) que Jacques-Alain Miller propõe na abertura do terceiro momento da conversação Do psicótico ao analista, que a ela é dedicada. São questões que permanecem na pauta e traçam a orientação para o próximo Congresso da AMP.
A questão colocada com o termo “neotransferência” era a seguinte: como qualificar, teorizar, conceitualizar, a parceria do psicótico e do terapeuta quando este terapeuta é analista? O que é essa parceria? Quais são os termos que devemos utilizar para pensar o estatuto destes dois elementos um em relação com o outro?[9]
Em sua introdução à discussão, ele extrai as questões centrais de cada relatório e comenta que essa terceira parte seria mais heterogênea que as duas anteriores. Apresenta os contrastes entre os relatórios e resume as respostas que propõem para a questão examinada. Se o primeiro é qualificado de teoria hard, o segundo, em contraste, seria light em termos de teoria, e o terceiro, de composição equilibrada teoria-clínica. Quanto às respostas, o primeiro relatório propõe pensar a relação do psicótico e do terapeuta a partir de lalíngua; o segundo não apresenta uma tese propriamente dita; o terceiro toma a conceitualização de Lacan, que sobrepõe o par analista-analisante ao par verdade-saber, considerando-a não conveniente quando se trata do tratamento de um sujeito psicótico, que deve levar em conta o gozo, propondo que o analista deva ser o parceiro-sintoma em de lugar de parceiro-saber.
Uma leitura dos relatórios
Lalíngua da transferência nas psicoses é o título do relatório da Seção Clínica de Angers, apresentado por Fabienne Henry.[10] Esse é o relatório qualificado de teoria hard por Miller. É também o que apresenta uma tentativa audaciosa de pensar a relação do psicótico e do terapeuta a partir de lalíngua. Ainda que a considere precisa, Miller também alerta para o problema de que, considerando que lalíngua não serve à comunicação, como um diálogo poderia ser estabelecido a partir dela? Fica a tese, portanto, a demonstrar. Foi o relatório mais debatido durante a conversação, orientando-a de certa maneira. Além disso, foi proposto que se pensassem os casos dos demais relatórios a partir da hipótese nele apresentada, que foi tanto elogiada como criticada e testada.
Ele se inicia com as questões que orientam a aplicação da psicanálise ao campo das psicoses: a necessidade de um novo método segundo Freud, a prudência de Lacan em De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose,[11] a insistência de Miller em indagar quem explicará a transferência do psicótico. O novo ou ‘neo’ vinha sendo introduzido, a partir dos anos 1980 (jornadas da École de la Cause Freudienne, em 1983 e 1987, e o V Encontro Internacional do Campo Freudiano, em Buenos Aires, 1988, sobre a Clínica Diferencial das Psicoses), culminando na série de reuniões clínicas (Angers, Arcachon e Antibes), das quais se extrai uma nova questão, ao estilo “o ovo ou a galinha”: trata-se de que a clínica das neopsicoses criou uma “nova posição” do analista ou de que a nova posição do analista criou uma “neotransferência” nas psicoses?
Ao me deparar novamente com essas questões e mesmo com aquelas de Milller citadas acima, vejo justificado meu título e a ideia que me orienta, no sentido de que as questões aqui tratadas se aproximam daquelas que apresento em minha pesquisa de mestrado. Lembro-me de ter passado por elas, em sua publicação em francês e de tê-las “evitado”, mantendo-as no horizonte como orientação. Naquele momento, o neo ou novo me apareceram de modo diferente. Era necessário me manter, então, no campo tradicional, percorrendo as referências clássicas, ainda que a clínica já apresentasse a urgência das novas. No argumento do XI Congresso, vemos acontecer uma inversão. As psicoses extraordinárias se tornam “as outras”, lidas a partir do referencial da psicose ordinária. É questão de princípio que essa não invalida aquela e ainda que, diagnosticada a psicose ordinária, deva-se buscar referi-la ao quadro nosológico clássico.
Retomando a questão sobre a nova posição do analista, a resposta do relatório parte do princípio de que a “oferta dá forma à demanda”.
A hipótese central do relatório é a criação e o uso de uma “lalíngua da transferência” como neotransferência nas psicoses, partindo da constatação de que o par sujeito suposto saber-transferência tem um funcionamento distinto nas psicoses, porque o saber está do lado do psicótico.
Propõe-se examinar o par lalíngua-transferência como uma aplicação particular e específica da prática com as psicoses na qual lalíngua da transferência seria um novo artefato para tecer o laço social. Segue um exemplo clínico (o caso Ophélie, de Jean Lelièvre) e a questão, que será bastante discutida na conversação: a prática com as psicoses deve necessariamente passar pela criação e a prática de uma lalíngua de transferência?[12]
A resposta, sustentada em exemplos clínicos (Danièle Rouillon e Gabriel Lombardi), é a de afirmar “que o que motiva a neotransferência não é o sujeito suposto saber, mas lalíngua”, na medida em que é “o que permite ao significante poder fazer signo” de algo que está fora do sentido, pela via das homofonias e onomatopeias.[13] Afirma-se, então, “que é pelo significante, e não pelo sentido, que se joga a partida da neotransferência como vetor do tratamento”.[14]
Evoca-se artigo de Miller[15] Teoria d’alíngua – no qual ele toma a palavra “lalíngua”, criada por Lacan dois anos antes, e desenvolve a teoria de que a psicanálise é uma forma de acesso à lalíngua e que lalíngua seria fundadora assim como o inconsciente estruturado como linguagem – para responder a três questões.
O que é lalíngua? Segundo Miller, “Lalíngua é feita de qualquer coisa, do que se arrasta tanto nos antros como nos salões”. Mal-entendido, depósito, coletânea de traços dos outros sujeitos, homofonia. Inscrição de desejo e de gozo do significante. Ainda segundo Miller, “a homofonia é o motor de lalíngua”, em tradução do jogo homofônico de Lacan em Mais, ainda, o que leva ao que este havia apresentado em O aturdito nos seguintes termos: “uma língua entre outras não é nada além do que a integral dos equívocos que sua história deixou persistir”.[16]
Que relação lalíngua mantém com a linguagem? Miller lembra que em Mais, ainda encontramos: a linguagem é um saber sobre lalíngua; já o inconsciente, estruturado como uma linguagem, é um saber fazer com lalíngua. Trata-se, então, do resultado do trabalho sobre lalíngua, impossível de apreender e dominar pela ciência.
Lalíngua é rebelde e indômita, pois nela “só há diferenças”. No campo da linguagem, articulação significante S1-S2 encadeia os efeitos de sentido, o que leva à significação e o sujeito é identificável. Em lalíngua tem-se uma cadeia significante sem efeito de sentido, segundo o matema S//s. O sujeito está fora da cadeia significante, “há um saber fazer com lalíngua, mas não um saber sobre lalíngua”.[17]
Lalíngua inaugural e o inconsciente estruturado como uma linguagem, remetem à produção do sujeito pelo significante e por seu primeiro estatuto de objeto (“causo” do desejo da mãe). Efeito de afetos, como Lacan apresenta em Mais, ainda: os efeitos de lalíngua vão muito além de tudo o que o ser que fala pode enunciar.[18]
Por fim, que relação lalíngua mantém com a pulsão? O relatório toma duas referências: Lacan (Seminário 11), para quem a cadeia significante rodeia o objeto pulsional, mas não o alcança e Miller (Silet), que define a pulsão como uma articulação entre a repetição e a transferência, que tem como produto o gozo – e propõe que, se existe relação entre lalíngua e pulsão, é também pelo gozo produzido via repetição e transferência, o que oferece “um esboço de lalíngua da transferência: uma cadeia significante de lalíngua, sem sentido, que aparelha o gozo, que desenha o percurso que vai do simbólico ao real”.[19]
A verdade de lalíngua não pode ser definida. É um ato que aponta o lugar central do real inacessível. Impossível de dizer, a raiva se apresenta como afeto que aponta para o objeto a. A raiva leva ao insulto que, no caso da psicose, serve para golpear o kakon, o objeto mal, de seu ser no Outro, pois não há palavras capazes de dizê-lo, e é preciso dar tratamento a esse gozo.
Tomando o algoritmo da transferência, “aplicação particular da experiência”, coloca-se a questão: “qual seria então a fórmula da neotransferência como aplicação particular da prática com as psicoses?”.[20]
O significante da transferência (St) não é um significante qualquer, mas seria o significante Um ou significante-mestre que, encarnado em lalíngua, é algo indefinido entre o fonema, a palavra, a frase e o pensamento todo. Esse significante-mestre, que é ao mesmo tempo unidade e totalidade concentrada, onde toda a cadeia subsiste. Marcado pela suspensão do sentido e despojado do lastro do significado, o significante funciona sozinho, girando sobre si mesmo. Os efeitos de sentido são infinitos e completamente separados do significante. Tudo pode ser dito sem se fixar uma significação.
Como se articulam, na psicose, os dois saberes inconscientes distinguidos por Lacan em O Seminário, livro 20: mais, ainda:[21] o inconsciente é um saber fazer com lalíngua, a linguagem é uma elucubração de saber sobre lalíngua. Estabelecer essa distinção é também fazer a distinção entre inconsciente e linguagem. Nos casos apresentados há o testemunho e a aposta nos efeitos de lalíngua: reconhece-se o saber já-posto nas psicoses, para além do que pode ser enunciado e ainda se aponta a possibilidade de aprendizagem de lalíngua. O analista se presta à aprendizagem de lalíngua porque supõe que o psicótico possui um saber fazer com a língua e que o desejo do analista poderá operar no sentido de que o psicótico poderia elaborar esse saber já-posto como uma elucubração de saber sobre lalíngua.[22]
É importante assinalar, a partir do discurso do analista, a inversão das posições, operação pela qual do analista se presta à aprendizagem de lalíngua na posição de sujeito barrado, que trabalha pelo saber do paciente, ao qual supõe um saber para além de seu enunciado. Parte-se da consideração de que “entre psicótico e analista não há encontro sem amor do Outro” e de que “lalíngua da transferência poderia bem ser essa do amor”.[23] Coloca-se, então, a questão de como evitar a erotomania delirante. Trata-se de favorecer a resposta pela via da metonímia e não da metáfora, adiamento que pode colocar o sujeito a trabalhar sobre um novo laço social com o Outro social e não com o Outro do delírio.
Se lalíngua não se presta ao diálogo ou à comunicação, como colocar limite ao monólogo autista do gozo? Ao nenhum-diálogo? Conforme Miller: “a interpretação analítica faz limite”. Esclarece-se que a interpretação não aponta ao sentido, pelo contrário, visa ao real, à formalização matemática. Nos casos apresentados, trata-se de algo que vai na contramão do sentido: onomatopeia, cifra ou traço escrito.[24]
O discurso analítico se oferece como matriz de laço social onde se torne possível o aparelhamento do gozo. Para os autores, a aprendizagem de lalíngua pelo analista, faz com que esta se transforme, deixando de ser uma muralha para se tornar uma elucubração de saber sobre lalíngua, permitindo a aproximação ao uso comum da língua. A presença do analista possibilita a introdução da função do Outro. É a matriz de um laço social típico que faça limite ao nenhum-diálogo.[25]
Lalíngua da transferência tem seus impasses e limites: da erotomania (indicado acima), do semblante, do sintoma. O semblante se refere ao sentido e ao objetivo socializante do discurso. Deve-se distinguir que o estatuto do chiste na psicose está do lado da alusão e da ironia e não do semblante. Também não se trata, na psicose, da precipitação do sintoma a partir da transferência (cf. relatório 3), mas de cristalização do sintoma, com articulação do gozo por lalíngua da transferência. Ao se fazer destinatário dos signos ínfimos do real de lalíngua, sem se ocupar do sentido, o psicanalista tem possibilidade de se fazer parceiro do psicótico em lalíngua da transferência, engajando-o em um laço social para uma elaboração de saber.[26]
Retomando a questão que orienta e a resposta proposta pelo relatório, são feitas ainda duas perguntas: Há uma ou várias neotransferências? Há uma ou várias lalínguas da transferência? Em resposta à primeira, são apontados, sem desenvolvimento, a necessidade de retomar a letra e a aparola como outros aparelhamentos de gozo. Quanto à segunda, os exemplos clínicos apontam para uma lalíngua da transferência diferente a cada vez. Sobre a posição do analista, esta não se assenta em um saber como fazer com um psicótico, mas em uma destituição do sujeito (ou da passagem da posição de sujeito para a de objeto) que deve ser renovada também a cada vez.[27]
Na conclusão, retoma-se o caso de Ophélie para se discutir sobre o aparelhamento que permitiria lutar contra os desligamentos sucessivos nas neopsicoses. De que psicose se trata? Os autores remetem à diferença estabelecida por Miller entre as enfermidades de mentalidade e as do Outro. No caso trata-se de enfermidade da mentalidade: o Outro está em déficit, as identificações não cristalizaram em Um, a relação imaginária se impõe, e o gozo é flutuante. Ainda que não se verifique que tenha havido um desencadeamento, falta à menina a ferramenta necessária para tamponar o gozo. Ela não se queixa daquilo que seu entorno apresenta como suas dificuldades e suas deficiências, mas de sua relação com o outro imaginário, com seu semelhante. Ela estabelece uma espécie de divisória que classifica/opõe os bons e os maus, edificada sobre a imagem, com a qual ela fabrica uma espécie de ponte entre imaginário e real. Trata-se de um enlaçamento centrado na imposição do imaginário, articulando-se, por um lado, com o simbólico e, por outro, com o real. Simbólico e real não mantendo, no entanto, nenhuma relação entre eles, senão via imaginário.[28]
O caso testemunha que a paciente tem um saber fazer com lalíngua (o que é demonstrado pelo equívoco com o nome do analista) e um saber sobre a língua (surpresa com o lapso do terapeuta). A aprendizagem e elaboração da língua Donald como lalíngua da transferência é o que enlaça saber fazer com e saber sobre lalíngua. O relatório apresenta a possibilidade de que essa lalíngua permita forjar os elos que faltam à cadeia e enlaçar o simbólico com o real como uma vã esperança, lalíngua da transferência tomando o lugar de semblante. Ainda assim, sugerem que se trata de que o analista seja suficientemente dócil à aprendizagem de lalíngua da transferência e que a cadeia possa se fechar um dia por um Witz.[29]
Elaborado pela Seção clínica de Bruxelas, tendo como relator Alexandre Stevens, o segundo relatório[30] A transferência e a psicose nos limites se sustenta na discussão de três casos clínicos de psicose e tenta isolar neles as particularidades da transferência. O título faz alusão à orientação, presente na IPA a partir dos anos 1960, relativa aos chamados estados limite e às psicoses desencadeadas sob transferência, que indicariam um manejo pela técnica do holding, apresentada pelos autores do relatório como “uma técnica que pretende orientar a escuta analítica visando o apoio da personalidade, muito mais do que a análise do material sintomático”.[31] O relatório interroga: “o que pode ser uma prática da transferência nesses casos, quando somos orientados pelo ensino de Lacan”?[32]
A resposta é apresentada por meio de três casos que colocam a questão dos limites – da transferência e das psicoses – com a advertência de que é uma resposta parcial, que o acento está colocado na elaboração significante (seja uma organização do delírio, historização ou tentativa de nomeação), isto é, “trata-se sempre de tentar organizar uma suplência de tipo sintomático, o que é muito diferente de querer sustentar ou organizar a personalidade”.[33]
Como indica Miller, esse relatório não apresenta uma resposta para a questão proposta, mas os casos podem ser trabalhados em relação com os outros relatórios.
Produzido pela Antena clínica de Toulouse e relatado por Bernard Nominé, o terceiro relatório[34] O psicanalista como ajuda-contra parte da descrição do percurso analítico feita por Lacan como o destino do sintoma no tratamento, de complemento de saber à sua função de enodamento, isto é, do sintoma ao sinthoma, para colocar, entre outras, a questão: esse processo é o mesmo, e o analista ocupa o mesmo lugar segundo a estrutura do sujeito, neurose ou psicose?
A função do analista enquanto ‘ser-de-saber’ inaugura o processo analítico e entra aí para completar o ‘ser-de-verdade’ do sintoma. Enlaça, portanto, sintoma e transferência, e possibilita que o sintoma inicialmente incompleto se torne sintoma sob transferência, que então poderá ser decifrado e reduzido. Cumprir o percurso e chegar à função de sinthoma implica que tal deciframento foi acompanhado do processo de resolução da transferência. Esvaziado do sentido e de seu gozo, o sintoma se torna sinthoma e alcança o ‘fora-de-discurso’ da letra prescindindo de todo ‘ser-de-saber’ e de toda ideia de complemento de saber. Nesse sentido, a resolução da transferência fecha o sinthoma ao Outro e estabelece uma nova forma de autismo do gozo, o gozo da letra, que satura a função do sintoma.[35]
Nos casos de psicose, desencadeadas ou não, a função do psicanalista não é a de “complemento” do sintoma, mas a de sinthoma,[36] em uma inversão do sintoma analítico (sintoma + sujeito suposto saber). O analista como sintoma faz existir um apoio contra o qual o sujeito possa pensar. Apoia-se contra um significante para pensar. Lacan apresenta o nó borromeano como o apoio para o furo freudiano no qual se apoia a hipótese do inconsciente.[37]
A perspectiva borromeana das psicoses exclui a hipótese de uma complementação do sintoma psicótico pelo ser-de-saber do psicanalista. Por duas razões:
- o sintoma psicótico é menos um ser-de-verdade (retorno do recalcado, estrutura de metáfora) que um ser-de-gozo (retorno no real do foracluído no simbólico). Então, o sintoma psicótico não se interpreta, já que não se complementa.
- nas psicoses trata-se de obter um enlaçamento, de evitar um desligamento ou de ajudar a refazer um nó onde o precedente se desenlaçou.[38]
Então, afirma o relatório, na clínica das psicoses, o analista seria chamado a suportar a função de sinthoma, uma vez que na psicose não há análise, ou seja, que nenhuma elaboração significante, nenhum apaziguamento de gozo, nenhuma estabilização são suficientes para fazer passar o sintoma psicótico ao sinthoma.
A proposição do analista como sinthoma, tomada de Lacan, que vale tanto para a neurose como para a psicose, introduz a questão da continuidade, não da neurose à psicose, mas da posição do analista, assentada na psicose como modelo da relação do sujeito com o Outro e com o gozo. Lacan faz do analista como sinthoma uma ajuda contra o complexo de Édipo, na medida em que se possa prescindir do Nome-do-Pai, com a condição de dele servir-se. Nos casos de psicose, deveria servir de ajuda contra os efeitos da foraclusão do Nome-do-Pai: “contra o que o impele na direção d’A mulher em seu encontro com Um-pai, uma ajuda contra seu ‘sem razão’ que lhe serve de apoio contra o significante do Outro que não existe, S(Ⱥ)”.[39]
Segue-se a apresentação de dois casos clínicos, nos quais se deveria identificar essa posição do analista como sinthoma. A observação de Miller na conversação é de que tal demonstração não fica evidente.
O foco da investigação desse terceiro relatório foi o gozo à deriva, lugar que o analista é levado a representar, como a parte de gozo que excede o gozo fálico, isto é, o gozo feminino, e que, considerando a lógica da experiência clínica, pode, em certos casos, funcionar como um limite e oferecer um refúgio ao ser do sujeito sem recurso à função fálica.[40] A hipótese é que o analista, parceiro do psicótico, é levado a representar o lugar de um gozo à deriva, encarregando-se da posição feminina e servindo de sintoma para o sujeito analisante, cumprindo sua função de não-todo, o que deve constituir um limite.[41]
A ideia de manejar o não-todo para se opor aos estragos do supereu psicótico está implícita, para os autores do relatório, no centro da tese do analista-sinthoma do Seminário 23. Para eles, o analista-sinthoma opera uma inversão quando propõe o não-todo no lugar do Outro do Outro, o que funciona contra a consistência desse Outro. É nessa referência que os autores sustentam a tese do psicanalista como ajuda-contra.[42]
A conversação
Os principais pontos da discussão são assinalados pelos subtítulos inseridos.
Do saber suposto à lalíngua exposta[43]
Explicita-se o ponto de partida para a proposição do relatório de Angers: o algoritmo da transferência, substituindo o sujeito suposto saber por “lalíngua da transferência” e o analista se colocando em posição de aprender a lalíngua do paciente e de se mostrar dócil à sua invenção. Ainda que lalíngua não seja um instrumento de comunicação, o eixo do trabalho é buscar, através de sua aprendizagem, a restauração de um laço social que não existia ou que estava perturbado, numa tentativa de fazer passar essa lalíngua ao discurso comum.
A dificuldade, que Miller indica, de pensar um tipo especial de transferência pela modificação da transferência normal, é que a transferência do algoritmo da transferência só pode ser pensada a partir da relação S1-S2, à qual lalíngua precede, não sendo uma língua suposta, mas exposta, podendo tornar o sujeito exposto à intrusão do outro.
A língua e o laço social[44]
Justapõe-se a teoria clássica da posição do analista em relação com a psicose – localizar e limitar o gozo, descompletar o Outro – à novidade do relatório de Angers: novo modo de conceitualização de transferência na psicose – lalíngua.
Uma questão controversa se deduz: que diferença há entre a concepção de colocar-se a falar a lalíngua do paciente e o que Lacan chamou delirar com o paciente? E mais outras. Deve-se dirigir o tratamento no sentido de levar o sujeito a um esforço de tradução ou tratar de aprender sua língua? Cada um tem sua língua própria? Ainda seria necessário precisar que não se deve confundir socialização com entrada no laço social.
Decomposição espectral da linguagem[45]
Em O seminário, livro 20: mais ainda, Lacan decompõe o conceito de linguagem em duas partes: lalíngua e laço social. O conceito estruturalista condensava as duas partes, a norma social veiculada invisivelmente pela estrutura, e a linguagem é o produto de uma operação de domínio. Com lalíngua passa-se por debaixo da norma social. Sob a linguagem normalizada, escrita, está o escutado, lalíngua, os mal-entendidos infantis, as homofonias, os sentidos gozados.
O psicótico, afetado no laço social, mais ou menos desligado do Outro, se mantém mais conectado com sua lalíngua.
Pode-se dizer que cada um tem sua língua (a questão insiste) na medida em que o investimento libidinal na língua é próprio a cada um. A partir da linguagem, da objetividade do significante, da gramática e das normas, cada um faz sua lalíngua, construída a partir do escutado e do mal-entendido. A aprendizagem da escrita reinveste a norma.
Word and object[46]
Com o funcionamento de lalíngua na psicose, pode-se opor aprendizagem e tradução? Laurent afirma que se trata, de fato, de uma questão muito geral sobre a linguagem: como se aprende a língua? No fundo, aprende-se a língua por uma tradução permanente e constante, pelo uso, mais ou menos regulamentado ou adequado. Já na psicose o funcionamento de lalíngua está de saída desligado de todas as ilusões do funcionamento normalizado, pois o laço social foi tocado e se está na dimensão de uma língua privada, que possui ressonâncias particulares. Se buscamos saber sobre essas particularidades, estamos na dimensão do esforço de tradução. Assim, pode-se dizer que a relação normal com lalíngua é a do psicótico e que não é possível estabelecer o sentido das palavras. Só se sabe o sentido de uma língua por sua prática, e as traduções sofrem de um princípio de indeterminação. O método para estabelecer um princípio de tradução, a partir de Lacan (Lituraterra), deve levar em conta as ranhuras deixadas pelo significante, que Laurent aproxima da expressão “a rotina das práticas” utilizada por Miller.
Já Miller aponta para a importância das conversações, a partir do momento em que sabemos que o Outro não existe, que é uma ficção do laço social. Devemos estabelecer as condições da conversação com o psicótico e nos oferecer para que ele se sirva de nós, ainda que sejam usos que não estão normalizados nem completamente previsíveis.
Língua pública e língua privada[47]
Laurent retoma a questão que remete a um debate extenso no campo da linguística. No campo da psicanálise é difícil eliminar a noção de língua privada. O sujeito psicótico mostra que se pode construir uma língua privada, atravessada por uma significação particular, ainda que, em casos paradigmáticos e paradoxais (Rousseau e Wittgenstein), construa sua obra em língua perfeitamente pública. Deve-se perguntar sempre que língua fala o sujeito, sabendo que é uma bricolagem particular e oferecer-se ao uso que o psicótico faz de nossa presença, com método. A língua privada seria uma forma de sulcamento próprio, a partir da língua pública, uma inscrição da soma dos equívocos aceitáveis para cada um, dos sem sentido, non-sense, do sentido gozado que não é um sentido comum.
Como o sujeito psicótico pode se valer de nós?[48]
Retoma-se a questão da docilidade do psicanalista à invenção do psicótico, e se interroga em que medida seria possível a suposta inserção do psicótico em um discurso ou laço social.
A partir do esquema da decomposição da linguagem, Zenoni retoma a distinção de dois modos de retorno do gozo: a identificação do gozo no lugar do Outro e o retorno do gozo no próprio corpo. Distinção que lhe permitirá se perguntar não mais pela inserção ou não no discurso, mas se perguntar pelo “ligamento com o discurso”, mesmo sem entrar nele, como na vertente paranoica, em que existe um mínimo de laço social, que é a identificação do gozo no lugar do Outro.
Questão estratégica da manobra da transferência: deslocamento da “limitação de gozo” para o “aparelhamento do gozo” por um sujeito a quem faltam as ferramentas para tal.
As condições da conversação com um psicótico[49]
“Não há nenhuma diferença entre a transferência na psicose e a transferência na neurose”[50] é a proposição provocadora de Marie-Hélène Brousse, a partir da qual são relançadas, por Philippe De Georges, ao debate e à pesquisa, as “especificidades evidentes da transferência psicótica”: a erotomania em lugar do amor de transferência, a certeza em lugar da suposição, a inversão de posição entre analista e paciente.[51] Ela indica que, quanto à lalíngua – que é condensação de gozo para neuróticos e psicóticos – é muito difícil mostrar a diferença e que se deve buscar essa diferença entre as duas transferências – a referência é novamente a decomposição da linguagem entre lalíngua e laço social – do lado do laço social (que se fabrica na transferência no caso da psicose) e do sulcamento de lalíngua.
Uma questão sobre as consequências para a direção do tratamento é levantada: que faz o psicanalista com lalíngua do psicótico? Destacam-se os significantes modéstia, humildade e docilidade à invenção do psicótico, levando-se em consideração que se trata de enfermidade da mentalidade ou enfermidade do Outro. Lalíngua é uma ferramenta; o objetivo é tratar o gozo.
A propósito da posição do analista, trata-se de restituir ao sujeito psicótico a lógica de sua invenção, o que pode evitar as passagens ao ato e permitir inicialmente um laço social com o analista, podendo ir mesmo além, com uma comunidade mais ampla.
Uma questão sobre o final do tratamento com o psicótico orienta a palavra final de Laurent, que retoma os eixos da discussão sobre a transferência e seus impasses, entre os quais o risco de passagem ao ato, que não é uma dimensão alheia à nomeação, que é também uma maneira de sujeitar o sentido que escapa. Ele diz que “o problema de um final de análise com um sujeito psicótico consiste em separar o que é obtido da elucubração de saber e a sua significação de verdade”.[52] Trata-se de apoiar no que constitui o sinthoma para o sujeito, do lado da elaboração de saber, desabonado da verdade do inconsciente. Trata-se de sustentar o sujeito na construção de seu saber sem levar a uma passagem ao ato, ligada a uma fixação do sentido.
Conclui-se, não sem vislumbrar uma continuação. Ao que parece esta pesquisa deve prosseguir... Eis-nos aí!
Márcia Mezêncio, psicanalista, membro da EPB e da AMP. Mestre em psicologia pela UFMG.
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* Este texto retoma a intervenção feita na EBP-MG, em 2012, por ocasião dos seminários realizados em torno do lançamento da versão brasileira do livro A psicose ordinária. A convenção de Antibes (Editora Scriptum e EBP).
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Referências
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