Pierre Naveau
Vou falar do traumatismo, do que considero ser o verdadeiro traumatismo. É o tipo de traumatismo que me interessa e ao qual sou mais sensível. Ao me referir ao equívoco introduzido por Lacan entre traumatismo e troumatisme[2], vou falar do buraco [trou], na medida em que, como afirmou Jacques-Alain Miller em seu curso[3], existe uma diferença entre buraco e falta. Parece-me que há aí uma variação de ênfase. No início de seu ensino, Lacan falou da falta; depois, ao final, ele enfatizou o que ele mesmo chamou de buraco.
Vou abordar essa questão pelo viés da interpretação, referindo-me ao que Miller pôde dizer sobre esse tema em 1997[4] e em 2009, [5]por ocasião de duas intervenções que não estavam previstas na sequência de seu curso. Abrindo parênteses, eu diria que o ponto comum dessas duas intervenções é uma alusão aos filmes de Marcel Carné. Em sua intervenção de 1997, a alusão é ao filme Drôle de drame[6]e à famosa réplica (num diálogo entre Michel Simon e Louis Jouvet): “Você disse bizarro, bizarro” [Vous avez dit bizarre, bizarre]. Em sua intervenção de 2009, a alusão é a Hôtel du Nord[7] e a essa réplica igualmente famosa (num diálogo entre Arletty e Louis Jouvet): “Atmosfera, atmosfera, e eu tenho cara de atmosfera?” [Atmosphère, atmosphère, est-ce que j’ai une gueule d’atmosphère?]. Fecho os parênteses.
No que concerne a minha preocupação, preocupação subjetiva em relação ao traumatismo, evocarei o tratamento de uma paciente que traz a questão do que é um traumatismo para um sujeito. Trata-se de uma mulher que tem entre 35 e 40 anos e que eu atendera, havia algum tempo, por dois ou três anos. Na época, ela não estava satisfeita com seu trabalho de recepcionista. Ela ganhava pouco, e seu marido não deixava de frisar isso, censura que retornava frequentemente nas brigas do casal. Ela interrompeu o tratamento no momento em que me disse – e eu havia apoiado sua iniciativa – que, para sua grande surpresa, havia sido aprovada em dois concursos, um deles é o CAPES[8], e o outro, um concurso da prefeitura de Paris, ambos do mesmo nível, o que foi muito importante para ela. Podemos dizer que houve aí um efeito terapêutico, validado pelo sucesso nos concursos.
Ela retomou o tratamento há pouco tempo dizendo-me que está num impasse conjugal e familiar. Não sabe mais como lidar com seus filhos nem com o marido. Seus filhos apresentam sintomas que a inquietam, e eu sublinhei que, de fato, havia ali sintomas que podiam ser considerados relativamente graves e dos quais era preciso cuidar. Ela não sabia mais como fazer com seu marido. Para aqueles que têm em mãos o fascículo intitulado Scilicet, editado por ocasião dos congressos da AMP, evoquei esse caso no Scilicet publicado em 2008[9].
Ela se apresenta como se estivesse constantemente à beira de um ataque de nervos – “ataque de nervos” é, para mim, um dos nomes poéticos da passagem ao ato.
“O que fazer?” não é a mesma questão que: “o que eu quero?” Ela fala de “bloqueio”. As expressões que lhe ocorrem são: “estou acuada”, “estou bloqueada”, “estou num impasse”, “não vejo saída”.
Trata-se de alguém que, como sua aprovação nos concursos mostrou, não é uma pessoa qualquer. É alguém que, quando se exprime, se coloca inteiramente no que está dizendo, e que fala muito bem, fala muito claramente. Sou muito sensível a isso. Por essa razão, fiquei muito surpreso por ela fazer questão absoluta de dizer o quanto lhe é difícil falar.
Com efeito, é sempre impressionante quando alguém diz, em análise, que falar com um analista é insuportável. Mas como ela expressa seu sentimento de se sentir esmagada, levo isso a sério. Trata-se de alguém que sofre do seguinte: ela não consegue sustentar sua fala. Tomar as coisas por esse viés é esclarecedor, pois Miller pôde assinalar em seu curso, após ter editado o Seminário 16[10], que é preciso começar a ler esse seminário a partir de um capítulo dedicado à perversão, onde Lacan renova sua abordagem do sadismo e do masoquismo. Nesse capítulo, Lacan declara estar em desacordo com Freud; ele diz que, a seu ver, o objeto em questão no sadismo e no masoquismo não é, de início, o objeto anal, mas a voz. O que quero dizer é que, ao falar disso, Lacan chama a atenção sobre um ponto muito preciso: quando falamos, há algo a se levar em conta; trata-se de saber se queremos nos fazer ouvir. É nesse sentido que se deve assumir a voz. E ele evoca a esse respeito situações em que um sujeito, esmagado, evita assumir o que está dizendo.
Certa noite, diz ela, havia uma conversa animada, passional. “Eu não pude fazer de outra forma a não ser escutar uns e outros falarem. Eu tinha coisas a dizer”, precisou. Mas, como disse Homero, para que a palavra ultrapasse a arcada dentária, um esforço é necessário. Há um momento em que para tomar a palavra em público há que se fazer um esforço. Teríamos coisas a dizer e não as dizemos. Isso é muito pesado para ela. Evidentemente, isso coloca em causa o fato de que falta um ponto de apoio, e Lacan evoca essa questão quando fala do sintoma singular de astasia-abasia. Resta a impressão de que o sujeito não encontra esse ponto de apoio para dizer o que ele tem a dizer. Falar é, para ela, uma prova, e é isso que parece incompreensível. Isso a deixa extremamente agitada. Tem-se a impressão de que arrancam dela o seu ser. É preciso que ela arranque as palavras de seu corpo. Deparamo-nos, então, com a última abordagem do traumatismo feita por Lacan, quando ele afirma que falar a própria língua é traumático. Ele chama isso: “o traumatismo da língua”. Não dissimulei meu espanto quando ela me relatou que, diante da demanda de seu filho para que ela lhe contasse uma história, ela só pudesse acolher o pedido após dizer ao filho que ela só poderia ler para ele uma história curta. O filho está de tal forma a par de sua angústia que, algumas vezes, ele traz para ela um livro com apenas duas frases, ou mesmo, algumas vezes, um livro que não conta história alguma. Acrescenta que, quando lê uma história, tem a impressão de vomitar. Ela diz “despejar isso” sobre seu filho.
Mas eis que há um buraco em sua história justamente a respeito da língua. Essa paciente nasceu num país do leste europeu que, na época, era separado da Europa pelo muro de Berlim. Ela viveu por cinco ou seis anos numa cidade de um desses países do Leste. Ela se lembra das brigas violentas de seus pais. Recorda confusamente que eles chegaram a se bater. Era difícil atravessar o muro naquela época. Foi preciso que sua mãe utilizasse um estratagema para sair daquela cidade e retornar à França com a filha, que tinha então seis anos. O pai ficou. Quando as duas chegaram ao aeroporto, a mãe lhe disse: “Não dê uma palavra! Nós somos francesas!” Ora, naquela época ela não falava francês, mas a língua do país de onde vinha. Sua mãe lhe indicou, assim, a possibilidade de uma traição: “Se você falar, você vai me trair!”. Elas só puderam atravessar a fronteira, se posso dizer assim, ao preço do silêncio da paciente.
Foi difícil, em seguida, entrar nessa outra língua, que é o francês. Aí está o ponto vivo do traumatismo. Muitos anos mais tarde, após a queda do muro de Berlim, ela retornou ao seu país de origem e reviu o pai. O desentendimento entre sua mãe e seu pai era radical, e uma forte hostilidade ainda existia entre eles. O pai lhe disse, em francês, com um sotaque extremamente forte: “Você, você é francesa!”. Ela relaciona esse desprezo, que ouviu nesse “você é francesa!” com o fato de que soubera que seu pai havia desejado ter um filho. Durante os seis anos que viveu com seus pais numa atmosfera de violência, o pai tinha o hábito, referindo-se a sua filha, de dizer “ele”, porque, para ele, sua filha deveria ter sido um menino. Ele não levava em conta que, quisesse ele ou não, ela era uma menina. Quando fala de seu pai, o retrato que ela traça é o de um homem duro e brutal. Ora, ela tem um marido, um artista renomado, que é também um homem brutal. Recentemente ela perguntou ao marido: “Você não acha insuportável viver sempre nesse estresse?” Ele lhe respondeu que o estresse fortifica um homem. Ela não o suporta mais, no entanto ele a acostumou com isto: ele é um homem áspero, que é grosseiro com ela. Ora, a meu ver, o verdadeiro traumatismo é esse da língua, o fato de se falar ofensivamente com alguém.
Essa paciente é, portanto, uma mulher que vive numa atmosfera de brutalidade, de dureza, de grosseria. Porém, fiz com que ela notasse que para um homem é natural saber que não se fala da mesma forma com um homem ou com uma mulher. Existe aí algo de irredutível, se nos referirmos à ética da psicanálise. Para essa paciente, a brutalidade do marido, que se manifesta no fato de gritar e ser grosseiro com ela, converge com a atitude do pai quando ela era criança, pois ele falava dela no masculino. O pai e o marido, diz ela, a tratam como se ela fosse um homem, um cara. Em suas reações, ela se comporta, consequentemente, como um homem. Isso significa que, para ela, é muito difícil se permitir ser abordada como mulher. Ela se defende bancando o homem que tem medo, se podemos dizer assim. Uma mulher só pode se deixar abordar como mulher se ela for abordada como tal, diz Lacan. É o homem que aborda a mulher. Esse é um grande debate na psicanálise, que Lacan relançou no Seminário 4[11], após ter lido um artigo de Alexandre Kojève, um comentário muito contundente, inesperado e surpreendente dos dois romances de Françoise Sagan[12], Bonjour, tristesse e Un certain sourire. Há uma definição ética do traumatismo que implica profundamente a questão da relação com o Outro, com o Outro sexo, a questão da diferença entre o homem e a mulher. É o que existe de mais delicado nisso que é para cada um o uso da língua. O que é decisivo é a maneira como cada um fala.
No momento em que ela chegou à França, quando criança, nada lhe foi dito. Ela mesma estava, por assim dizer, na ação; ela mesma nada pôde dizer. O que se destaca, quando falamos de um buraco [trou], é o fato de que uma frase tenha sido dita ou não. Existem vários tempos lógicos que constituem um traumatismo, tal é a tese de Freud. Inicialmente, o traumatismo é algo que produz uma fixação, uma cristalização. Sua mãe a forçou a se calar, e ela não sabe mais o que fazer com esse silêncio forçado que a estorva. É-lhe proibido falar. Quando fala, ela tem sempre a impressão de ter que fazer um esforço. Sem saber, ela está às voltas com uma espécie de interdição. Seu verdadeiro sintoma é um sintoma corporal. Ao falar, ela tem dificuldades em sustentar sua fala com seu corpo. Essa é a impressão que ela tem.
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Miller se perguntou em várias ocasiões o que é a interpretação do psicanalista. Ora, toda vez que se interrogou sobre esse tema, ele evocou o traumatismo da língua. Em 2009 ele interveio por ocasião do Congresso da NLS[13], em Paris, a respeito da diferença entre a interpretação freudiana e a interpretação lacaniana. Nesse sentido, ele se perguntou se havia regras da interpretação, fazendo eco ao que Lacan evoca em A direção do tratamento[14]. Essas regras, Lacan nunca as formulou. Miller observou que é bem provável que, ao evocar a possibilidade da existência de tais regras, Lacan estivesse pensando em Descartes e suas Règles pour la direction de l’esprit[15]. Por que Lacan se pergunta se poderíamos chegar a isolar essas supostas regras da interpretação? Porque, visivelmente, a interpretação é algo que não se ensina. Não se pode imitar o próprio analista, não se pode, a partir de suas interpretações, deduzir um método. Em O aturdito[16], por uma espécie de halo semântico, Lacan opõe a interpretação do analista à demanda do analisante. Ele especifica a demanda do analisante como possuidora de modalidades próprias, ao passo que a interpretação do analista tem como modo aquele da palavra apofântica, algo que tem certa relação com o verdadeiro e o falso. Ele evoca, a esse respeito, a gramática, a lógica e a homofonia.
O que Miller enfatizou em 2009 foi a diferença entre a interpretação freudiana e a interpretação lacaniana. Referindo-se a Televisão[17] , ele diz que a interpretação freudiana é essencialmente uma tradução, aludindo ao que afirma Freud a respeito dos sonhos, dos lapsos e dos atos falhos e até mesmo dos sintomas como mensagens cifradas. Miller se pergunta se o analista deve decifrar as formações do inconsciente, ao que ele responde resolutamente que sim. Mas o limite da interpretação freudiana é o fato de Freud se deter no que ele mesmo chamou de sentido sexual. O que fica aí destacado é que a interpretação lacaniana vai além da relação sexual e deve visar a não relação sexual. Isso se traduz, na língua do analisante, por meio desse ponto extremo, que é o impossível de dizer. A interpretação não pode ser da ordem do bate-papo, ela tem uma modalidade particular, ela visa o que, para o sujeito, é um impossível de dizer.
Miller termina sua intervenção, em 2009, distinguindo sete regras da interpretação. Ele realiza, assim, o projeto de Lacan em A direção do tratamento[18]. Sem entrar nos detalhes, o que retive é que a interpretação cria o inconsciente. Há algo de criador na interpretação, mas ela não deve fazer obstáculo ao impossível de dizer, uma vez que se deve ir em direção a isso. É sempre necessário que o sentido vá no sentido do gozo. Acrescentarei também que, na intervenção de Miller, o que chamou minha atenção foi o título. Antes de ouvi-lo, eu havia pensado que ele trataria da relação entre trauma e sintoma, pois eu havia sido capturado pelo título que ele dera à sua fala: A palavra que fere [Le mot qui blesse
Quando nos interrogamos sobre o que é a interpretação e a diferença entre a interpretação freudiana e a lacaniana, o que é, então, evocado é o fato de que a verdadeira dimensão do traumatismo é essa da palavra, da palavra que fere.
Ao longo dessa mesma intervenção de 2009, Miller destacou que as palavras “inconsciente” e “interpretação” não convinham a Lacan: a palavra “interpretação”, porque vem da paranoia, e a palavra “inconsciente”, porque Lacan prefere a ela o termo falasser [parlêtre]. Quando Miller diz que a interpretação é o que cria o inconsciente, ele indica que é importante que se instale, na análise, o que ele chama: “uma atmosfera interpretativa”.
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Em 1997 Miller fez uma conferência no interior da França, em Descartes[19], sobre a interpretação. Ele havia inicialmente dado como título para sua conferência: Freud, a interpretação – que trocou em seguida pelo título: Você disse bizarro [Vous avez dit bizarre]. Ele evoca, assim, de modo radical, o traumatismo tal como, a meu ver, ele deve ser considerado. Enquanto o termo “regra” lhe serviu de fio condutor em sua intervenção de 2009, em 1997 foi o termo “bizarro” que lhe serviu de orientação. A psicanálise é algo de bizarro. O analista é alguém bizarro. O inconsciente é algo bizarro. Aliás, “bizarro” é uma palavra bizarra.
Nessa conferência que aconteceu doze anos antes, de que falou Miller? Do traumatismo da língua, e se tratava de falar da interpretação. Existe aí, portanto, em seu modo de falar da interpretação, uma insistência quanto ao traumatismo. Ele invoca a junção que há entre a interpretação psicanalítica e o traumatismo considerado a partir da língua, na medida em que a língua é feita de equívocos. Miller deu um exemplo disso. Ao pronunciar suas primeiras palavras, sua neta falava de si mesma dizendo: “Tato”. Os pais se perguntavam de onde vinha esse “Tato”. Naturalmente, se pensa imediatamente em “gâteau” (bolo, doce). Mas não é nada disso! Os pais, muito orgulhosos de sua filha, tinham o hábito de dizer aos outros membros da família ou aos convidados: “Ela fez isso sozinha” [Elle fait ça toute seule]. Portanto, o pai e a mãe consideravam que “Tato” vinha de “sozinha” [toute seule], com esse toque de orgulho ao dizer que ela se virava – sozinha.
Trata-se, portanto, de “tratar, cuidar”, em uma análise, do traumatismo da língua. É importante, desse ponto de vista, que a regra da associação livre convide ao que Lacan chama no seminário Mais, ainda[20] de gozo do bla-blá-blá. O sujeito é, com efeito, convidado a dizer o que lhe vem à cabeça, a dizer qualquer coisa. Se desejarmos dar um tom teórico à coisa, o que o analista deve conseguir fazer é permitir que, na língua que o sujeito fala, se abra o intervalo entre significante e significado. Ele deve incessantemente propiciar esse movimento de abertura, isto é, que o sujeito tenha o sentimento de que o analista não entende nada, de que, para o analista, o analisante está falando chinês. Quer se trate da interpretação-pontuação, da interpretação sem sentido, quer se trate da interpretação que joga com o equívoco, a interpretação se articula no intervalo, assim aberto, entre o significante e o significado. É realmente necessário que o sujeito esteja nessa atmosfera que cria uma distância entre o significante e a significação. Ao final de sua exposição, Miller introduz um quarto complexo – após o complexo de desmame, o complexo de intrusão e o complexo de Édipo –, que ele chamou o complexo de tudo dizer. Vivemos atualmente num mundo em que o sujeito é levado a um tudo dizer. Há um empuxo ao dizer tudo e, consequentemente, o sujeito fica muito mais exposto a ser ferido pela língua.
No cerne da intervenção de Miller, de 1997, há uma passagem que indica que a interpretação gira em torno do buraco, do traumatismo. O sujeito que vem para a análise sofre essencialmente de coisas que lhe foram ditas. Para mim, essa é a tese lacaniana sobre o traumatismo, e é exatamente o caso da minha paciente. Ela está ferida em razão de certos enunciados. Miller utiliza uma metáfora bélica ao dizer que o sujeito foi profundamente ferido por enunciados que eram espécies de mísseis destruidores. Uma psicanálise consiste, no final das contas, em encontrar os enunciados que feriram o sujeito e ajudá-lo a se livrar disso. A interpretação psicanalítica consiste em “enviar antimísseis a fim de pulverizar esses enunciados dos quais sofre o sujeito”. A ferida é, portanto, uma questão de língua.
Um texto proposto para as próximas Journées de Rennes fornece um belo exemplo disso. Trata-se da intervenção de uma jovem colega psicanalista. Quando menina, ela se encontrava, certo dia, no quarto dos pais com sua mãe. A mãe estava costurando, e o sol entrava no quarto – isso aconteceu, aliás, num país distante. Ao ver os raios de luz onde a poeira se agitava, a criança perguntou à mãe: “O que acontecerá se eu conseguir pegar um grão de poeira?” Ela esperava ouvir da boca de sua mãe alguma coisa como: “Você se transformará numa princesa, seu namorado virá te dizer que você é a mais bela e te levará ao baile, etc.”. Ora, sua mãe lhe respondeu bruscamente: “Você se transformará nesse grão de poeira”. Pois bem, temos aí, nessa fala infeliz da mãe, uma palavra que fere. A colega conta que, naquele dia, um grande buraco se abriu diante dela. Ela falou disso com seu analista. Em suma, a questão se coloca: “qual deveria ser o antimíssil a ser utilizado para reajustar as coisas?” O analista lhe disse ao final de uma sessão: “Não, você não sairá de sua análise como uma poeira!”. Ela entendeu a mensagem. Há, com efeito, somente isto: maneiras de dizer. O que se trata em uma análise, em função do traumatismo, são as maneiras de dizer.
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Resposta a uma questão
Concordo, a ferida se transmite de geração em geração. Será que poderíamos metaforizar isso? Será que poderíamos falar em marcas, cicatrizes, uma vez que, visivelmente, naquele momento, se metaforiza com o corpo?
Creio que o nome da ferida, para Lacan, é esse do impossível de dizer. É o que mostra Freud desde 1895. O sintoma do sujeito histérico, em particular, mostra que ele se encontrou, um dia, numa situação em que foi confrontado com um impossível de dizer. Em Estudos sobre histeria Freud[21] fala de uma paciente que é governanta dos filhos de um homem viúvo e que acreditara, até então, que tal homem estivesse apaixonado por ela. Ela se dá conta, graças a Freud, que o que ela quis esquecer foi que, um dia, esse homem fora grosseiro com ela, que ele a ferira. Ela não esperava, de forma alguma, que ele falasse assim com ela. Imediatamente, Freud se perguntou: o que fazer nesses casos? O que o sujeito poderia ter feito? Se ela tivesse começado a chorar, será que o sintoma poderia não ter surgido? E se ela o tivesse esbofeteado? Desde 1895, sejamos claros, quando se é grosseiro, merece-se uma bofetada. Se não fizermos isso, seremos covardes ou, para dizer como Freud, seremos pusilânimes. Não há razão alguma para aceitar que nos dirijam a palavra com grosserias. Certamente, isso é relativo. Se respondêssemos a todos os golpes, correríamos o risco de viver num pugilato contínuo. É por isso que Freud, no que diz respeito ao traumatismo, se perguntou sobre a questão da reação. Como reage o sujeito em relação ao que lhe acontece, em relação ao encontro com o real?
Respostas a outras questões
[…] Quando falamos asperamente com alguém, o sujeito, não podendo mais suportar, pode querer se ejetar da cena. Os analistas lacanianos falam muito do tato. Como somos surdos, não ouvimos os significantes. Porém, quando fazemos uma análise, começamos a ouvir e ficamos muito sensíveis ao significante. No início de uma análise temos amigos; depois, não temos mais os mesmos amigos, pois passamos a ter uma sensibilidade ao ferimento. A divisão subjetiva nos torna frágeis. Ficamos traumatizados. Desse ponto de vista, uma análise não nos torna insensíveis. Ao contrário, nos tornamos hipersensíveis ao que é dito. Isso pode ser insuportável para alguns, é uma questão de estilo. A partir de certo momento, o sujeito pode decidir não mais falar. Uma condição da palavra que fere é o amor. Há uma transferência que fica decepcionada pelas palavras e maneiras de falar.
[…] Penso que o sintoma central é o mutismo – é o que diz Lacan no Seminário 11.[22] De uma maneira ou de outra sofremos de mutismo. Embora fale muito bem, o que minha paciente me demanda – o que evoquei no início desta intervenção – é que eu lhe dê a palavra, mas uma palavra que ela possa sustentar.
[…] O mutismo não é afasia. O ponto de apoio que falta ao sujeito diz respeito ao Nome-do-Pai. Há uma frouxidão do Nome-do-Pai, uma frouxidão do simbólico. Algo ficou mal-amarrado, há um nó que se desfaz.
Tradução: Cristina Vidigal
Revisão da tradução: Yolanda Vilela
NOTAS
* Este texto foi publicado originalmente na coletânea Scripta Documents. Traumatisme et symptôme dans l’enfance. Comment les aborder? ACF – CAPA e traduzido com a amável autorização de Pierre Naveau.
2 - Jogo de palavras forjado por Lacan onde estão associadas as expressões: traumatismo [traumatisme] e buraco ou furo [trou]. Esse termo traz a dimensão do trauma como um buraco no real.
3 - Os cursos de Jacques-Alain Miller – A orientação lacaniana –, iniciados no começo da década de 1980, são realizados no contexto do Département de Psychanalyse da Université de Paris VIII.
4 - O parceiro-sintoma [Le Partenaire-Symptôme]. Curso de orientação lacaniana, de J.-A. Miller. Ano letivo 1996-1997.
5 - Coisas de fineza em psicanálise [Choses de finesse en psychanalyse]. Curso de orientação lacaniana, de J.-A Miller. Ano letivo 2008-2009.
7 - Drôle de Drame: Filme realizado por Marcel Carné em 1937, com adaptação e diálogos de Jacques Prévert. Além de Louis Jouvet, o filme conta com grandes nomes do cinema francês, tais como Michel Simon e Jean-Louis Barrault. A cena referida por Pierre Naveau, conforme citado por J.-A. Miller, pode ser visualizada através do link: <https://www.youtube.com/watch?v=Ku-ChVdBwDs>.
8 - Hôtel du nord: Filme realizado por Marcel Carné em 1938. O roteiro, assinado por Jean Aurenche e Henri Jeanson, é adaptado do romance de Eugène Dabit, Hôtel du nord, publicado em 1929. Além de Arletty e Louis Jouvet, o filme conta com a participação de Jean Pierre Aumont e Bernard Blier. A cena evocada por Pierre Naveau, segundo J.-A Miller, pode ser visualizada através do link: <https://www.youtube.com/watch?v=TPiWfNwqwFM>.
9 - Certificat d’Aptitude au Professorat de l’Enseignement du Second Degré (CAPES). Esse diploma profissional fornecido pelo ministério francês da Éducation Nationale permite que os professores ensinem nos collèges e nos lycées, equivalentes do nosso ensino médio e ensino fundamental. Em alguns casos, o CAPES dá acesso ao ensino universitário.
10 - Scilicet – Os objetos na experiência psicanalítica. Associação Mundial de Psicanálise (AMP). Rio de Janeiro: Contra Capa, 2008. O verbete ao qual se refere Pierre Naveau é: Mentira. O masoquista e a voz, que se encontra na página 204 desse volume.
11 - LACAN, [1968-1969] 2008.
12 - LACAN, (1956-1957) 1995.
13 - Françoise Sagan (1935-2004): Escritora francesa, autora notadamente de Bonjour, tristesse (1954), Un certain sourire (1956), Dans un mois, dans un an (1957), Aimez-vous Brahms… (1959), La femme fardée (1981).
14 - New Lacanian School (NLS). Primeira escola de língua inglesa da Associação Mundial de Psicanálise (AMP). Fundada em 2003, está presente nos EUA e em alguns países europeus.
LACAN, [1958] 1998.
15 - Obra inacabada do filósofo racionalista francês René Descartes (1596-1650).
16 - LACAN, (1972) 2003.
17 - LACAN, (1970). 2003.
18 - LACAN, (1958) 1998.
19 - Pequena cidade situada no centro da França, cujo nome homenageia o filósofo René Descartes, nascido ali.
LACAN, (1972-1973) 1985.
20 - FREUD, (1893-1895) 1969.
21 - LACAN, (1964) 1979.
22 - LACAN, (1964) 1979.
REFERÊNCIAS
FREUD, S. Estudos sobre a histeria (1893-1895). Direção-geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996. (Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, 2).
LACAN, J. A direção do tratamento e os princípios de seu poder (1958). In: ______. Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. p. 591-652.
LACAN, J. O aturdito (1972). In: ______. Outros escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. p. 448-497.
LACAN, J. O seminário, livro 4: a relação de objeto (1956-1957). Rio de Janeiro: Zahar, 1995.
LACAN, J. O seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Zahar, 1979.
LACAN, J. O seminário, livro 16: de um Outro ao outro (1968-1969). Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
LACAN, J. O seminário, livro 20: mais, ainda (1972-1973). Rio de Janeiro: Zahar, 1985.
LACAN, J. Televisão (1970). In: ______. Outros escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. p. 508-543.