O valor da vida
Sigmund Freud
Entrevista concedida por Sigmund Freud ao jornalista americano George Sylvester Viereck, em 1926, publicada no livro de Viereck, Glimpses of the Great (1930), e no Journal of Psychology - Psychoanalysis and the Future (New York: National Psychological Association For Psychoanalysis), em 1957. No Brasil, a entrevista foi publicada originalmente no livro A arte da entrevista: uma antologia de 1823 aos nossos dias, organizado por Fábio Altman (Scritta, 1995). A tradução que DERIVAS ANALÍTICAS apresenta aqui é de Musso Greco e traz uma versão parcial do texto. A entrevista completa pode ser acessada em: <http://corpofreudiano.com.br/w/wp-content/uploads/2020/10/entrevista_Freud__ING.pdf>.
George Sylvester Viereck
[“Setenta anos de idade ensinaram-me a aceitar a vida com alegre humildade.” Esta frase é de Sigmund Freud, o grande explorador austríaco do lado oculto da alma. Assim como o trágico herói grego Édipo, cujo nome está tão intimamente ligado aos princípios fundamentais da Psicanálise, Freud confrontou a Esfinge sem receio. Como Édipo, decifrou o enigma. Pelo menos, nenhum mortal chegou tão perto dos segredos do comportamento humano como Freud. Freud é para a psicologia o que Galileu foi para a astronomia. É o Cristóvão Colombo do Inconsciente. Freud abriu novas perspectivas, explora novas profundezas e alterou todas as relações na vida, decifrando o sentido oculto das regras do Inconsciente. Conversamos na casa de Freud em Semmering, uma montanha nos Alpes Austríacos, onde os vienenses elegantes adoram se reunir. A última vez em que vi o pai da Psicanálise, ele estava na sua casa simples na capital austríaca. Os poucos anos que separavam a minha última visita dessa de agora multiplicaram as rugas na sua testa e aumentaram a sua palidez de sábio. O seu rosto estava abatido, sofrido. A mente estava ativa, o espírito firme, a cortesia impecável como sempre, mas um leve problema de fala preocupou-me ‒ parece que uma doença maligna no maxilar superior necessitara de uma operação; desde então, Freud usa um aparelho mecânico para facilitar a fala. Na verdade, não há diferença entre o uso desse aparelho ou o de óculos. No entanto, o aparelho deixa Freud mais constrangido do que os visitantes. Depois de conversarmos algum tempo com ele, o aparelho quase que se torna imperceptível. Nos dias em que Freud está bem, nem se percebe a presença dele. Mas para Freud, o equipamento é causa de constante irritação. Freud se recusa a admitir que o destino lhe reserva algo especial.]
Sigmund Freud
Detesto essa mandíbula mecânica. A luta com esse mecanismo me faz desperdiçar uma energia preciosa. Mas ainda prefiro ter uma mandíbula mecânica do que não ter nenhuma, prefiro a sobrevivência à extinção. Talvez, ao tornarem a vida impossível conforme envelhecemos, os deuses estejam mostrando compaixão. Afinal, a morte nos parece menos intolerante do que as múltiplas cargas que suportamos. Por que deveria esperar um tratamento especial? A velhice chega para todos. Por que deveria eu esperar algum tipo de privilégio? A velhice, com suas agruras, chega para todos. Atinge uma pessoa aqui, outra ali. Seus golpes sempre alcançam um ponto vital. A vitória final pertence ao “Verme Conquistador”, de Edgar Allan Poe:
Apagam-se, apagam-se as luzes - todas!
E sobre cada forma trêmula
Cai a cortina, um pano mortuário
Com um ímpeto de tempestade
E os anjos, pálidos e lânguidos,
Erguendo-se, desvelando-se, afirmam
Que a peça é a tragédia "Homem"
E o seu herói, o Verme Conquistador.
Eu não me rebelo contra a ordem universal. Afinal, vivi mais de setenta anos. Tive o bastante para comer. Apreciei muitas coisas ‒ a companhia de minha mulher, dos meus filhos, o pôr-do-sol. Observei as plantas crescerem na primavera. De vez em quando, recebi um aperto de mão de um amigo. Vez ou outra, encontrei um ser humano que quase me compreendeu. Que mais posso querer?
George Sylvester Viereck
O senhor teve a fama. O seu trabalho influencia a literatura pelo mundo inteiro. O homem olha para si e para a vida com olhos diferentes por sua causa. E há pouco tempo, quando o senhor fez setenta anos, o mundo uniu-se para homenageá-lo ‒ com exceção da sua própria universidade!
Sigmund Freud
Se a Universidade de Viena tivesse me reconhecido, eles teriam apenas me causado embaraço. Não há razão para eles me aceitarem ou à minha doutrina só porque estou com setenta anos. Não dou nenhuma importância ilógica aos números. A fama só chega quando já estamos mortos, e, para ser franco, o que acontece depois da morte não me interessa. Não aspiro à glória póstuma. A minha modéstia não é nenhuma virtude.
George Sylvester Viereck
Não significa nada o fato de que o seu nome vai viver?
Sigmund Freud
Absolutamente nada, mesmo que ele viva, o que não é certo. Estou bem mais preocupado com o destino de meus filhos. Espero que a vida deles não venha a ser difícil. Não posso ajudá-los muito. A guerra praticamente liquidou com minhas posses, com o que havia poupado durante a vida. Entretanto, felizmente, a idade não pesa tanto para mim. Eu ainda sou capaz de seguir em frente! Meu trabalho ainda me dá muito prazer.
George Sylvester Viereck
[Estávamos subindo e descendo uma pequena trilha no jardim da casa. Freud, com suas mãos sensíveis, acariciou ternamente um arbusto que florescia.]
Sigmund Freud
Estou muito mais interessado nestas flores do que no que possa me acontecer depois de morto.
George Sylvester Viereck
Então o senhor é, afinal de contas, um profundo pessimista?
Sigmund Freud
Não, não sou. Não permito que nenhuma reflexão filosófica estrague a minha fruição das coisas simples da vida.
George Sylvester Viereck
O senhor acredita na persistência da personalidade após a morte, de alguma forma que seja?
Sigmund Freud
Não penso nisso. Tudo que vive perece. Por que eu deveria sobreviver?
George Sylvester Viereck
Gostaria de retornar em alguma forma, de ser resgatado do pó? Em outras palavras, o senhor não tem desejo de imortalidade?
Sigmund Freud
Para ser franco, não. Quem identifica as razões egoístas que se escondem sob o comportamento humano não tem a menor vontade de voltar. A vida, movendo-se em círculos, ainda seria a mesma. Além disso, mesmo que o eterno retorno de todas as coisas, como disse Nietzsche, nos vestisse com nossos invólucros carnais, que utilidade isso poderia ter sem a memória? Não haveria ligação entre o passado e o futuro. No que me diz respeito, estou muito satisfeito em saber que o eterno absurdo de viver terminará um dia. A nossa vida resume-se a uma série de obrigações, uma luta sem fim entre o ego e o seu ambiente. O desejo de um prolongamento excessivo da vida parece-me absurdo.
George Sylvester Viereck
O senhor não aprova as tentativas do seu colega Steinach [Eugen Steinach, fisiologista austríaco, pioneiro na Endocrinologia, que conduzia pesquisas e experimentos hormonais na área do rejuvenescimento] de prolongar o ciclo da existência humana?
Sigmund Freud
Steinach não faz nenhuma tentativa para prolongar a vida. Ele simplesmente combate a velhice. Ao aumentar a reserva de forças que temos dentro de nós, ele ajuda os tecidos do corpo a resistir à doença. A operação de Steinach algumas vezes detém os acidentes biológicos, como o câncer, nos seus estágios iniciais. Isso torna a vida mais tolerável. Mas não faz valer a pena viver. Não há razão para que queiramos viver mais. Mas temos todas as razões para querer viver com o mínimo de desconforto possível. Sou razoavelmente feliz, porque sou grato pela ausência de dor e pelos pequenos prazeres da vida, pelos meus filhos e por minhas flores!
George Sylvester Viereck
Bernard Shaw [escritor irlandês, Prêmio Nobel de Literatura em 1925] diz que vivemos muito pouco. Ele acha que, se quiser, o homem pode prolongar o tempo da vida humana se a força de vontade superar as forças da evolução. A humanidade, segundo ele, pode recuperar a longevidade dos patriarcas.
Sigmund Freud
É possível que a morte em si não seja uma necessidade biológica. Talvez morramos porque desejamos morrer. Mesmo que o amor e o ódio pela mesma pessoa habitem nosso peito ao mesmo tempo, a vida é uma mistura do desejo de se manter com o desejo pelo próprio aniquilamento. Da mesma forma que um elástico tende a voltar ao seu formato original, toda matéria viva, consciente ou inconscientemente, anseia pela inércia completa e absoluta da existência inorgânica. Os desejos de morrer e de viver habitam lado a lado, dentro de nós. A Morte é a companheira do Amor. Juntos eles regem o mundo. Essa é a mensagem do meu livro, Além do Princípio do Prazer. No início, a Psicanálise achava que o Amor era o sentimento mais importante. Hoje, sabemos que a Morte é igualmente importante. Biologicamente, todo ser vivo, não importa quão intensamente a vida queime dentro dele, anseia pelo Nirvana, pela cessação da "febre chamada viver", anseia pelo seio de Abraão. O desejo pode ser disfarçado por várias circunlocuções. Não obstante, o objetivo derradeiro da vida é a sua própria extinção!
George Sylvester Viereck
Essa é a filosofia da autodestruição. Ela justifica o automassacre. E levaria à conclusão lógica do "suicídio mundial", previsto por Eduard von Hartmann [filósofo alemão metafísico, considerado um "pessimista schopenhaueriano"].
Sigmund Freud
A humanidade não escolhe o suicídio, porque a lei do seu ser desaprova o caminho direto para sua consecução. A vida deve completar seu ciclo de existência. Em qualquer ser humano normal, o desejo de viver é forte o bastante para contrabalançar o desejo de morrer, embora, no final, o desejo de morrer prove ser mais forte. Nós podemos aceitar a sugestão fantasiosa de que a morte nos chega por nossa própria vontade. É possível que conseguíssemos derrotar a morte, não fosse pelo aliado que ela tem dentro de nós. Nesse sentido [aqui, Freud dá um sorriso], talvez possa ser justificado dizer que toda a morte é suicídio disfarçado.
[...]
George Sylvester Viereck
Até mesmo o senhor, professor, acha a existência muito complexa. E talvez, me parece, o senhor seja em parte responsável pelas complicações da civilização moderna. Antes de o senhor inventar a Psicanálise, ninguém sabia que a personalidade era dominada por uma hoste beligerante de complexos muito questionáveis. A Psicanálise fez da vida um complicado quebra-cabeça.
Sigmund Freud
De modo algum! A Psicanálise simplifica a vida. Nós atingimos uma nova síntese depois da análise. A Psicanálise reordena um emaranhado de pulsões dispersas e tenta bobiná-las na meada à qual pertencem. Ou, usando outra metáfora, ela é o fio que conduz o homem para fora do labirinto do seu próprio Inconsciente.
George Sylvester Viereck
Ao menos na superfície, porém, a vida humana parece que nunca foi tão complexa. E a cada dia alguma nova ideia proposta pelo senhor ou por seus discípulos torna o problema da conduta humana mais intrigante e mais contraditório...
Sigmund Freud
A Psicanálise, pelo menos, nunca fecha a porta a uma nova verdade.
George Sylvester Viereck
Alguns dos seus alunos, mais ortodoxos do que o senhor, apegam-se a qualquer declaração que venha do senhor...
Sigmund Freud
A vida muda. A Psicanálise também. Estamos sós no início de uma nova ciência.
George Sylvester Viereck
Tenho a impressão de que a estrutura científica que o senhor construiu é altamente elaborada. Seus fundamentos ‒ a teoria do deslocamento, da sexualidade infantil, do simbolismo dos sonhos etc. ‒ parecem permanentes.
Sigmund Freud
No entanto, torno a dizer, nós só estamos no começo. Não sou mais que um principiante. Tive êxito no que se refere a desenterrar monumentos submersos no substrato da mente. Mas onde eu descobri alguns templos, outros poderão descobrir um continente.
George Sylvester Viereck
O senhor continua pondo muita ênfase no sexo?
Sigmund Freud
Eu respondo com as palavras do grande poeta Walt Whitman: "Mas tudo faltaria, se faltasse o sexo". Entretanto, como já disse, hoje em dia, eu dou a mesma importância ao que está "além" do prazer ‒ a morte, a negação da vida.
Esse desejo explica por que alguns homens amam a dor – como um passo para o aniquilamento! Explica por que todos os homens buscam o descanso, por que os poetas agradecem ‒ "Onde quer que os deuses estejam, / Não há vida que viva para sempre / Os homens mortos nunca se levantam / E mesmo o rio mais cansado / Segue confiante na direção do mar”.
George Sylvester Viereck
Shaw, como o senhor, não deseja viver para sempre, mas, diferente do senhor, ele acha o sexo desinteressante.
Sigmund Freud
[Sorrindo] Shaw não entende o sexo. Ele não faz a mais remota ideia do que seja o amor. Não existe nenhum caso real nas suas peças. Ele transforma o caso de amor de César ‒ talvez a maior paixão da história ‒ numa piada. Deliberadamente, para não dizer maliciosamente, ele desveste Cleópatra de qualquer grandeza e a rebaixa à condição de uma insignificante melindrosa [no original, flapper, termo típico dos anos 1920, usado para se referir ao novo estilo de vida das mulheres jovens: petulante, impetuoso e transgressivo]. A razão para a estranha atitude de Shaw em relação ao amor e para a sua negação do móvel primordial de todas as ações humanas, o que tira das suas peças o atrativo universal, apesar da sua grande inteligência, é inerente à sua psicologia. Num dos seus prefácios, Shaw enfatiza o aspecto ascético de seu temperamento. Posso ter cometido muitos erros, mas estou completamente seguro de que não me equivoquei ao considerar a predominância da pulsão sexual. Por ser tão forte, ela se choca sempre com as convenções e salvaguardas da civilização. A humanidade, como mecanismo de autodefesa, procura negar sua suprema importância. Analise qualquer emoção humana, não importa o quão distante pareça estar da esfera sexual, e seguramente descobrirá, em algum lugar, o impulso primordial ao qual a própria vida deve a sua perpetuação.
[...]
George Sylvester Viereck
[Apesar de sua integridade intransigente, Freud é a alma da urbanidade. Ele ouve pacientemente cada sugestão, procurando não intimidar o entrevistador. Raro é o visitante que deixa a sua presença sem algum presente, algum sinal de hospitalidade! Havia escurecido. Era tempo de eu tomar o trem de volta à cidade que uma vez abrigara o esplendor imperial dos Habsburgs. Acompanhado da esposa e da filha, Freud desceu os degraus que levam do seu refúgio na montanha à rua para me ver partir. Ele me pareceu cansado e triste ao dar o seu adeus.]
Sigmund Freud
Não me faça parecer um pessimista. Eu não desprezo o mundo. Mostrar desprezo pelo mundo é só uma forma a mais de adulá-lo, para ganhar audiência e aplauso. Não, eu não sou pessimista, não enquanto tiver meus filhos, minha mulher e minhas flores. As flores [sorrindo], felizmente, não têm nem psiquismo nem complexidades. Eu amo minhas flores. E não me sinto infeliz. Ao menos, ao menos não mais infeliz que os outros.
George Sylvester Viereck
[O apito do meu trem soou na noite. O automóvel me conduziu rapidamente para a estação. Aos poucos, o vulto ligeiramente curvado e a cabeça grisalha de Sigmund Freud desapareceram ao longe. Como Édipo, Freud olhou muito profundamente nos olhos da Esfinge. O monstro propõe seu enigma a todos os viajantes. O andarilho que não sabe a resposta, ela cruelmente agarra e o lança contra as rochas. No entanto, ela pode ser mais gentil com aqueles a quem destrói do que com aqueles que adivinham seu segredo.]