O valor do saber*
Marcela Antelo**
A ética em Lacan não se escreve com maiúsculas, senhoras que encarnam a vaidade dos ideais. Entre as minúsculas vicissitudes da ética da psicanálise, a relação tumultuosa dos seres falantes com o saber encontra um lugar de privilégio.
Na clínica psicanalítica, a relação com o saber é crucial do início ao fim da experiência. Quando o sujeito adverte o princípio desde o qual seu dizer toma sentido e o objeto onde seu corpo extrai gozo, a suposição de saber, no seu duplo sentido – suposição de que alguém sabe e suposição de que há um saber –, encontra o destino dos ídolos, o barro. A visada ética da clínica em relação ao saber consiste em como transmitir para outros esse saber evanescente e para si, o que se obteve na experiência. “Do analisado ao ensinável”[1].
A libido filosófica envolveu a ética com seus pseudópodes desde os tempos dos mestres da verdade, dos profetas, dos reis de justiça, figuras de um Outro que sabe o que há que saber, os sábios. A suposição de saber era eficaz, determinava ordálias, precipitava guerras; definitivamente, gloriosos tempos em que o saber dirigia a vida dos homens[2]. A voz do saber já se articulava oralmente.
Rodeado de mistérios, surge o amor à sabedoria, a filosofia, o amor ao saber pelo saber e seus aficionados que até hoje queremos encontrar na Grécia antiga. Giorgio Colli nos conta que Platão olha com nostalgia o tempo em que existiam os verdadeiros sábios. “O amor à sabedoria não é a sabedoria.”[3] Este novo amor, surgido no agito da praça pública, fundador do agonismo, revelou, graças a Michel Foucault, sua verdadeira cara. O artifício/arte-ofício do saber se fazia necessário para conduzir-se eticamente na existência, cultivo da Sophrosine para harmonizar o desejo e o gozo, limitar a hybris, as bodas impossíveis de Apolo com Dioniso. A escola desse novo Eros necessitava formar em erótica, em dietética e em economia, um saber para domesticar o abuso dos prazeres, temperança do gozo.
A gratuidade do saber, sua fruição aquém dos oportunismos, das utilidades, será retomada por Spinoza para quem a satisfação no saber recebe o nome de beatitude. Para a psicanálise, o saber não orienta nem nossas papilas, dizia Lacan. Michel Serres demonstrou que a origem da palavra Sapiens se refere a degustar com a boca e a língua. Mas, apesar de acompanharmos Spinoza quanto ao sabor da satisfação proporcionada, a psicanálise o abandona ao afirmar que o saber é meio de gozo, gozo do corpo; não é gratuito e desinteressado, pelo contrário, é patologicamente comprometido, no sentido kantiano.
O trabalho da palavra que a ética da psicanálise propõe, o bem dizer, cerca um saber esburacado que, contrariamente ao conhecimento, não se capitaliza, não acumula, não pontua, somente custa. Do saber o ser goza, e sabemos que, se o ser é insuportavelmente leve, o gozo é demasiadamente pesado, pois se goza daquilo mesmo que mata a vida. Eros procura e procura se reconhecer no escuro e acha Thanatos. Encontrar um saber que não se sabe tem um preço. “O saber vale exatamente o que custa”[4], diz Lacan, é custoso. Numa aula sobre o saber e a verdade, no seu seminário Encore, Lacan inventa um neologismo para explicar o beau-coût (junção de beaucoup: muito e beau-coût: custoso), alto custo do saber, “Porque a gente tem que arriscar a pele, porque resulta difícil, quê? - menos adquiri-lo do que gozá-lo”[5]. Cada vez que o saber se exerce, volta a produzir sua conquista, diz Lacan, enquanto que o poder que o saber dá permanece sempre voltado para o seu gozo. “A fundação de um saber é que o gozo do seu exercício é o mesmo que o de sua aquisição.” O saber só tem valor de uso, “nem se importa, nem se exporta”; “a dificuldade do seu exercício é aquilo mesmo que realça a da sua aquisição”[6]. Em singela observação, Tomás Abraham enumera os males físicos da profissão do filosofar e, coisa curiosa, há aqui verdadeira dobradiça entre filosofia e psicanálise. “Uma pinça, problema no disco, cartilagem entre a sexta e a sétima cervical, coluna invertida, artrites nos dedos.[7]” Custo e gozo do saber do ciclista sem bicicleta que é o leitor, poltrona do analista, secretário desalinhado do alienado.
Outro é o destino do conhecimento. Este se comercia, se comarxia – como diz Lacan em outro neologismo que junta Marx e a mercancia –, se transmite, se capitaliza, se devalua, prolifera e indexa. A bibliometria é a última flor da exploração do conhecimento como valor de câmbio. Antônio Teixeira pode falar do novo valor do saber e sua relação com a mais valia, mais-gozia, como costumamos brincar.
Na experiência de análise há saberes que se apresentam articulados em discurso, como o comprova a infalível narrativa da novela familiar, e saberes que se apresentam em ato, forma privilegiada de aparição do circuito pulsional. Se na primeira dimensão nos interessam sua sintaxe e figuras de linguagem, na segunda o que nos orienta é uma gramática de posição. No célebre Niederkommen da jovem homossexual, caso fracasso de Freud, rodando nas vias do trem, já que as vias da simbolização lhe estão bloqueadas, ela é como objeto caído que oferece seu corpo em sacrifício ao olhar da dama de má fama, objeto de adoração, e do olhar reprovador do pai, encarnações do Outro que a deixam cair.
O único operador de saber com o que contamos na análise é a transferência, operador de leitura de posição. Inscrever um saber aí onde se estava na ignorância. O SsS é correlativo à paixão pela ignorância, que, como Miller[8] ensinou há anos, não significa a paixão de não saber nada e sim o saber como conjunto vazio que possa alojar uma invenção de saber no seu lugar. O íon da ignorância como marco do saber possível. “Aceitar sofrer de um não há” de ressonâncias socráticas.
O saber inconsciente trabalha para o gozo[9]: não trabalha em prol do saber, mas sim em prol do gozo. Como dizíamos, não é o saber desinteressado do ideal da ciência que avança acéfala rumo ao pior, é um saber causado pelo furo no saber sobre o real da relação sexual. Contrariamente às plantas, que sabem se orientar em direção ao oxigênio, os seres falantes não possuem a cifra para encontrar seu partenaire, não podem ser lidos no livro da natureza, nem em caracteres matemáticos nem de nenhum outro tipo[10]. Um saber que falta, uma falta de que nada se quer saber, ignorância do que não há. Num livro recentemente aparecido[11] em Buenos Aires, um colega assimila o falo como aparelho ao qual se recorre para estabelecer uma relação que acaba obstaculizada pelo recurso ao mesmo aparelho, com o cone de silêncio que o Super Agente 86 (Smart) usa para se incomunicar com seu chefe. Ele possui o objeto, não para de usá-lo, mas não tem um saber que lhe permita fazer algo com aquilo.
Em O despertar da primavera, peça teatral de Franz Wedekind do início do século passado, referência para Lacan, a pergunta pelo impossível do encontro com o sexo é feita pelo personagem Maurício de uma boa maneira: “De que me serve o dicionário se não me esclarece os problemas imediatos da vida?”. Despertar na primavera da iniciação conduz da mãe interditada, castração do gozo todo fálico que em seu seio se obtinha, ao dicionário, onde folhear e folhear traz um saber que não fala. Do dicionário à mulher, o saber se encarna no corpo do Outro sexo ao qual se lhe supõe um gozo a recuperar. Quando a suplência que ela poderia vir a encarnar fracassa, a suposição pode ir agora à enciclopédia ou ao deus Google, como acontece no momento atual.
Da ignorância também se goza, nos ensina a imprensa política de cada dia. Ignorância que possui estatuto diferente ao íon que mencionamos, ignorância do que há, do que se sabe mas não quer se saber. Paixão pela ignorância que pode empurrar, ao conhecimento.
A linguagem como ficção científica[12], como pode ler Miller no último seminário de Lacan, o saber como elucubração, o delírio de cada um, a verdade mentirosa[13]. O último Lacan substitui à euforia determinista do saber linguageiro, um saber fazer[14] com a língua para cada um, pragmatismo lacaniano de grau superior que nos empurra a dar valor ao artífice, às coisas que sabem como se comportar. Ler Richard Sennet e seu Artífice. Só falamos quando não sabemos como nos comportarmos. O conhecimento ocupa o lugar do impossível de saber e faz as delícias da latência. O que late na latência?
Na clínica de todos os dias fazemos o inventário das fascinações infantis, que se, por um lado, preparam a estrada do amor ao saber, por outro limitam o gozo impondo-lhe condições. Condições eróticas construídas com verdades mentirosas. O Um que goza pode registrar o respeito por quem sabia de cor o nome de todos os deuses do Olimpo, cuspir num instante todas as capitais da Europa ou cantarolar todas as letras do álbum branco dos Beatles. Cada um persiste em gozar da sua lista que a bom custo adquiriu. Somente o íon da ignorância permite inventar novos sabores.
*IV Congresso Internacional de Filosofia da Psicanálise, Salvador, 7 a 11 de novembro de 2011. Apresentado na mesa-redonda “Clínica Psicanalítica: aspectos éticos” onde também estiveram presentes a doutora e psicanalista, Elsa Oliveira Dias (São Paulo, Brasil), o doutorando em filosofia da Unicamp e mediador, Eder Soares Santos (Paraná, Brasil), e o doutor em psicanálise, Antônio Teixeira (Minas Gerais, Brasil).
** Marcela Antelo é AME da EBP, Mestre em Filosofia pela Universidade Nacional de Mar del Plata e Doutora em Comunicação pela Universidade Pompeu Fabra de Barcelona.
Notas:
[1] MILLER, Jacques-Alain. Los signos del goce. Buenos Aires: Paidós, 1998. p. 226.
[2] DETIENNE, Marcel. Os mestres de verdade na Grécia antiga. Rio de Janeiro: Zahar, 1988.
[3] COLLI, Giorgio. O nascimento da filosofia. Tradução de Federico Carotti. Campinas: Unicamp, 1996. “Por outro lado, é muito incerta a extensão temporal dessa época da sabedoria: nela está compreendida a chamada idade pré-socrática, ou seja, os séculos V e VI a.C., mas a origem mais distante nos escapa.” “Sábio é quem lança a luz na obscuridade, desfaz os nós, manifesta o desconhecido, determina o incerto.” Lacan disse: “Había en los griegos un “saber hacer con”, y en ese hueco que dejaron fue donde se alojó el psicoanálisis, de tal manera que “si siguieran existiendo aquellos maestros griegos no prosperaría el psicoanálisis.”
[4] LACAN, Jacques. O saber e a verdade. In: O seminário, livro 20: Mais, ainda. Aula de 20 de março de 1973, p. 117.
[5] Idem, p. 117.
[6] Idem, p. 117.
[7] Disponível em http://www.tomasabraham.com.ar/costumbres/dolor.htm.
[8] MILLER, Jacques-Alain. Los signos del goce. Buenos Aires: Paidós, 1998. p. 221.
[9] MILLER, Jacques-Alain. El banquete de los analistas. Buenos Aires: Paidós, 2000. p.76.
[10] Não podemos ignorar que no Banquete, de Xenofonte, Sócrates se definia como agente de Mastropeia: atividade que consiste em relacionar um homem com uma mulher.
[11] BARROS, Marcelo. La condición femenina. Buenos Aires : Grama, 2011.
[12] MILLER, Jacques-Alain. Cours du 16 mai 2007, p. 5.
[13] OTONI, Fernanda. Gps, off road sobre a transferência: amor e saber e algo a mais, aguda articulação sobre o caráter de semblante do saber e sua função na transferência, no Seminário preparatório Jornadas EBP-Minas Gerais, Belo Horizonte, outubro de 2011.
[14] MILLER, Cours du 16 mai 2007, «À l’euphorie déterministe du savoir — la structure de langage, au sens de Lacan, c’est un savoir disjoint de tout Je sais, c’est un savoir formel, si on veut —, substituer donc à la primauté du savoir, le savoir-faire», p. 6.