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 Revista Derivas Analíticas - Nº 19 - Agosto de 2023. ISSN:2526-2637

 

A paranoia é uma "doença do outro" [1],[2]

Psicanalista
Membro da École de la Cause Freudienne/ ECF
New Lacanian School /NLS e Associação Mundial de Psicanálise/AMP
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Há uma bela expressão de Lacan que concerne ao “círculo [...] limpo pela queima da mata das pulsões”, ou, traduzido literalmente, o “círculo queimado na mata das pulsões” (LACAN, 1960/1998, p. 673),[3] o que indica o lugar do Outro onde o gozo certamente existiu e do qual o fogo é a metáfora. Mas, agora, esse lugar está queimado e o gozo ausente. Ele falará mais tarde, no Seminário 16, do “terreno do qual se limpou o gozo” (LACAN, 1968-69/2008, p. 220). Para o paranoico, esse estádio não tomou lugar. Para ele, o lugar do Outro permanece contaminado de gozo. A perseguição é, portanto, uma maneira de lidar com o gozo no lugar do Outro. Essa é também uma das formas de entender o Unglauben freudiano: o psicótico não acredita na ausência de gozo no lugar do Outro. Essa é a maior indicação clínica, que tem muitas consequências no manejo da transferência, na direção do tratamento, ou, simplesmente, em qualquer prática com sujeitos psicóticos.

Essa perseguição como um tratamento do gozo confina o sujeito ao estádio do espelho, reproduzindo a tensão agressiva inerente a ele, o que Lacan indica no seu texto “O estádio do espelho como formador da função do eu” e “A agressividade em psicanálise”, nos Escritos (LACAN, 1949/1998 e 1948/1998). Isso é o que torna essa defesa um meio custoso de tratar o gozo, porque o princípio de realidade não pode ser constituído corretamente. Com tal sujeito, é importante ter cuidado com o eixo imaginário a-a’. Em geral, quando nós observamos um agravamento, uma amplificação (surenchère), é porque permanecemos nesse eixo com o sujeito. É preferível estar na posição de um Outro barrado, descompletado.

Lacan diz: “o que nos permitirá uma definição mais precisa da paranoia como identificando o gozo no lugar do Outro como tal” (LACAN, 2003, p. 221). J.-A. Miller (2020), no seu texto “Paranoia, primary relation to the Other”, escreve isso como se segue: aA (pequeno a elevado à potência do A maiúsculo). É o pequeno outro, de natureza imaginária, que é ampliado ao poder do grande Outro. Está em continuidade com ele, não há um salto metafórico, o que caracteriza a passagem ao simbólico.

Mas o delírio é também um aparato, um mecanismo, que permite que se construa um mundo ou, em outras palavras, que se lide com o real e o gozo, numa tentativa de tornar a vida vivível.

Perseguição e olhar

Lacan irá mostrar como, na paranoia, a perseguição põe o foco no olhar que testemunha o gozo do Outro. A versão psicótica paranoica não sistematizada do olhar é a do “sempre vista” – o “sempre olhada” – da paciente esquizofrênica cujo desenho é reproduzido no Seminário 10 (LACAN, 1962-63/2005):

"lo sono sempre vista"
Desenho de lsabella

(caso clínico de Jean Bobon, Liege)

Em outras palavras, o olhar está em todo lugar. A versão paranoica do delírio localiza o olhar mais precisamente, ao ponto de designar um único perseguidor, como no caso de Aimée.

O gozo está no lugar do Outro na forma do olhar. A perseguição via olhar é um frequente fato clínico. Muitas vezes, escutamos nos jornais sobre passagens ao ato desencadeadas por um olhar. Culturalmente, encontramos a questão do “mau-olhado”, ou o exemplo da inveja, citado por Santo Agostinho em seu famoso exemplo do olhar invejoso e a palidez da criança observando a outra no seio da mãe (LACAN, 1964/1985). É interessante notar que as irmãs Papin arrancavam os olhos de suas vítimas, quando ainda estavam vivas. No texto “Motifs du crime paranoiaque: le crime des soeurs Papin”, Lacan (1933/2020) destaca o fato de que isso é tomar literalmente a expressão francesa “je lui arracherais les yeux” (“eu poderia arrancar seus olhos”), o que significa o ódio que se sente por alguém. 

Como articulamos isso à constituição do aparelho psíquico?

Para Freud, o aparelho psíquico alcança maturidade no estabelecimento do ideal do eu, em outras palavras, uma autoridade parental simbolizada da qual o sujeito se apropria e a qual adapta. Essa é a segunda tópica de Freud, que Lacan tomará a seu modo, sob a forma do esquema óptico, que é, de certa maneira, uma tópica lacaniana construída a partir do estádio do espelho. Aqui, a imagem, numa função ortopédica, é constituída por uma imagem tridimensional, aquela da imagem real do vaso invertido, que serve como envelope. Mas, como no estádio do espelho, o que está em jogo é a questão da presença do olhar. No estádio do espelho, a validação da experiência pelo adulto que está próximo da criança institui uma dimensão simbólica. No esquema óptico está a capacidade de instituir, através da simbolização, um olhar sobre si mesmo (un regard sur soi). A constituição do ponto de vista sobre si mesmo é um importante ponto de referência clínica. Isso é o que na língua inglesa se chama “insight”. Mas trata-se de uma instância simbólica.

No Seminário 11, Lacan (1964/1985) desenvolve ainda mais a questão do olhar como objeto a, alojado no campo do Outro. Se o objeto a está alojado no campo do Outro é porque corresponde a uma perda que teve lugar e, nesse sentido, estamos no campo da neurose. O exemplo paradigmático disso é a pequena anedota que Lacan nos conta sobre quando ele vai para o mar com um pescador e um homem chamado Joãozinho, cujo comentário aponta para seu gozo narcísico: “Tá vendo aquela lata? Tá vendo? Pois ela não tá te vendo não!” (LACAN, 1964/1985, p. 94).[4] Tal comentário feito ao jovem Lacan, que não o achou tão engraçado, revela que era ele a mancha no quadro. A perseguição do “sempre vista” é, portanto, transformada no prazer narcísico de ser o objeto do olhar: “somos seres olhados no espetáculo do mundo” (LACAN, 1964/1985, p. 76).

Observe, de passagem, que essa simbolização faz com que a perseguição desapareça, transformando-a em uma consciência moral, que também pode tomar uma forma persecutória. Por outro lado, na solução pela via paterna, o ideal paterno – que é um exemplo de um Outro apaziguado, de um “terreno no qual se limpou o gozo” (LACAN, 1968-69/2008, p. 220) – pode aparecer como um olhar benevolente. É o pai que diz “Sim”. É desse pai que Lacan fará o princípio da identificação simbólica, retomando a identificação freudiana do “einzigen Zug” (o “traço unário”) da Massenpsychologie, tornando-o o traço unário.

A sonorização do olhar

Se a perseguição é uma questão do olhar, por que há, então, psicóticos clinicamente perseguidos por vozes, como Lasègue já havia notado? Bem, Lacan aponta que a questão do olhar não deve ser concebida como visão. O olhar do homem cego é uma ilustração disso: ele não tem visão, mas ele ainda tem o olhar. Lacan também dá outro exemplo, o do voyeur olhando de seu lugar escondido, quando um ruído lhe diz que está sendo pego em flagrante. Esse ruído causa a emergência do olhar. Trata-se, portanto, de um olhar com um suporte sonoro. Lacan, no Seminário R.S.I., na sessão de 8 de abril de 1975, dirá que a paranoia é a sonorização do olhar.[5] A alucinação do significante “porca” também pode ser concebida como o retorno do olhar para o sujeito, ou, de modo mais amplo, o “o que as pessoas vão pensar” da jovem mulher no “Rascunho H”, de Freud.

Conclusão

O delírio de perseguição coloca, assim, o julgamento no lado de fora, quando não é simbolizado na forma de um ideal do eu. Desde que não nos esqueçamos da dimensão pulsional do supereu, nós podemos considerar esse um problema topológico. Onde me falta a culpa, é o outro que me injuria ou me joga contra a parede. Além disso, Lacan (1968-69/2008) aponta, baseado em um texto de Isakower, que o núcleo do supereu é construído a partir de um corpo estrangeiro – a voz, em uma maneira análoga ao que ocorre na dáfnia, que é um tipo de camarão que integra grãos de areia em seu órgão de equilíbrio. Eles pegam um elemento real de fora. 

Por não ter simbolizado um ponto de vista sobre si mesmo, o olhar retorna no real como perseguição.

Tradução do inglês: Virgínia Carvalho
Revisão da Tradução: Vinícius Lima


Referências 

LACAN, J. R.S.I. In: Ornicar?, n. 5, 1975-76. 

LACAN, J. O Seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985. (Trabalho original proferido em 1964).

LACAN, J. A agressividade em psicanálise. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar E., 1998. (Trabalho original publicado em 1948).

LACAN, J. O estádio do espelho como formador da função do eu. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. (Trabalho original publicado em 1949).

LACAN, J. Observações sobre o relatório de Daniel Lagache. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. (Texto original publicado em 1960).

LACAN, J. Apresentação das Memórias de um doente de nervos. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. (Texto original publicado em 1966).

LACAN, J. O Seminário, livro 10: A angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005. (Trabalho original proferido em 1962-63).

LACAN, J. O Seminário, livro 16:  De um Outro ao outro. Rio de Janeiro: Zahar Ed., 2008. (Trabalho original proferido em 1968-69).

LACAN, J. Motifs du crime paranoiaque: le crime des soeurs Papin. The Lacanian Review, n. 10, 2020. (Trabalho original publicado em 1933).

MILLER, J.-A. Lições sobre a apresentação de doentes. In: Matemas I. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1996.

MILLER, J.-A. Paranoia, primary relation to the Other. The Lacanian Review, n. 10, p. 57-93, 2020.

 

[1] Cf.: MILLER, 1996, p. 149. 

[2] Este texto constitui um excerto do Seminário “Persecutory Delusions”, proferido pelo autor em dezembro de 2022, no London Workshop of the Freudian Field. A Equipe Editorial de Derivas Analíticas agradece ao autor e ao Comitê do referido Workshop pela amável autorização dessa publicação. 

[3] “Diríamos que essa ausência do sujeito, que no Isso não organizado produz-se em algum lugar, é a defesa a que podemos chamar natural, por mais marcado pelo artifício que seja esse círculo queimado na mata das pulsões, por ela oferecer às outras instâncias o lugar em que acampar para organizar os seus. Esse lugar é justamente aquele a que toda coisa é chamada para ser lavada da falha, que ele possibilita por ser o lugar de uma ausência: é que nem toda coisa pode existir. Por essa matriz simplíssima da primeira contradição, ser ou não ser, não basta constatar que o juízo de existência funda a realidade, mas é preciso articular que ele só pode fazê-lo ao resgatá-la do suporte instável em que a recebe de um juízo da atribuição que já se afirmou” (LACAN, 1960/1998, p. 673).

[4] “Tá vendo aquela lata? Tá vendo? Pois ela não tá te vendo não! Ele achava muito engraçado este episódio; eu achava menos. Procurei saber por que eu o achava menos engraçado. É muito instrutivo. Primeiro, se tem sentido Joãozinho me dizer que a lata não me via, é porque, num certo sentido, de fato mesmo, ela me olhava. Ela me olha, quer dizer, ela tem algo a ver comigo, no nível do ponto luminoso onde está tudo que me olha, e aqui não se trata de nenhuma metáfora” (LACAN, 1964/1985, p. 94).

[5] No original: “Non pas que penser qu'on a trouvé le dernier mot, ce serait à proprement parler de la paranoïa. La paranoïa c'est pas ça, la paranoia c'est un engluement Imaginaire. C'est la voix qui sonorise, le regard qui devient prévalent, c'est une affaire de congélation d'un désir” (LACAN, 1975-76, p.42).

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