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Anotações sobre a diferença absoluta e a diferença relativa

Romildo do Rêgo Barros

 

A condição absoluta

O adjetivo “absoluto” foi usado por Lacan em várias oportunidades. Nos casos das perversões, o fetiche é o objeto que falta à mãe e, por isso mesmo, torna-se para o sujeito, segundo Lacan, em “Observação sobre o relatório de Daniel Lagache: ‘Psicanálise e estrutura da personalidade’”, de 1960, uma condição absoluta. Nesse texto, ele especifica tratar-se da “condição absoluta do desejo”, enquanto que no Seminário 11: Os quatros conceitos fundamentais da psicanálise, de 1964, Lacan encerra com a conhecida frase: “o desejo do analista não é um desejo puro, é o desejo de obter a diferença absoluta”.

A expressão “desejo puro” já mereceu vários comentários: eu citaria o livro de Bernard Baas, Le Désir pur. Parcours philosophiques dans les parages de J. Lacan, de 1992, que faz uma correspondência entre desejo puro e desejo de morte. Na frase de Lacan, a diferença absoluta está em oposição ao desejo puro. O analista, na sua prática, pode chegar à diferença absoluta com seu paciente sob a condição de que renuncie ao desejo puro. Então, é mais do que uma oposição. Um dos enganos possíveis do analista é certo ativismo que pretenda levar ao desejo puro, o que equivale a uma espécie de fanatismo.

Jacques-Alain Miller, em “A Teoria de Turim”, de 2000, usa uma frase que diz respeito ao desejo puro, e na verdade é uma paráfrase da afirmação do Seminário 11: “Este desejo, o desejo do analista, não é, no entanto, um desejo puro, é o desejo de separar o sujeito dos significantes mestres que o coletivizam”.

Na própria ideia do desejo, na estratégia do desejo, existe sempre, confessadamente ou não, alguma separação que funciona como condição para a diferença absoluta. O trabalho clínico ou político com o desejo, portanto, tem como terreno uma estratégia de separação.

A conquista da diferença absoluta não é um processo de purificação, apesar de ter um caráter de redução. Pelo contrário, é aquilo que pode surgir como consequência, se posso falar assim, de um desejo impuro. É com sua impureza que o sujeito se torna psicanalista, e não com a sua pureza. O desejo impuro de cada sujeito é aquilo que liga o sujeito ao seu objeto singular de gozo, assim como o liga aos outros.

Na “Nota italiana”, de 1973, Lacan associa o analista ao dejeto, ao que ele chama de “rebotalho”, ou seja, o resto de alguma operação. É necessário um trabalho para produzir um rebotalho. O analista é o contrário da Gata Borralheira, que vai do começo até o final deixando de ser o rebotalho. O analista, pelo contrário, começa muitas vezes como um grande homem, um intelectual, um artista, um neurótico da melhor estirpe, e vai, aos pouquinhos, se tornando um rebotalho. É, portanto, com o seu desejo impuro que se tornará analista, e não com sua verve maravilhosa, suas sublimações etc.

No seu artigo que chamou “A salvação pelos dejetos”, de 2010, Jacques-Alain Miller faz o seguinte comentário, que vai, mais ou menos, no mesmo sentido: “É preciso dizer que a debilidade assim definida é muito geralmente a dos psicanalistas, eles próprios. O que os salva – o que os salva mesmo assim – é ter tido êxito em fazer de sua posição de dejeto o princípio de um novo discurso.”

É meio acaciano, mas podemos definir a diferença absoluta como aquela diferença que não é relativa. A diferença sexual entre homem e mulher, por exemplo, é uma diferença relativa, porque depende de uma comparação. Vocês pensam, por exemplo, que eu sou um homem, mas se vocês pensam que eu sou um homem é porque pensam saber o que é uma mulher, e ser uma mulher não coincide talvez com minha aparência. E então, vocês deduzem, binariamente: “já que ele não é mulher, é homem”. É uma diferença relativa por meio da qual Freud, sobretudo em 1923, em “Organização genital infantil”, introduziu na psicanálise algo comparável à moeda, que para Marx funcionava como um equivalente universal. Então, a psicanálise inventou alguma coisa que pode parecer um contrassenso: postulou que homens e mulheres são diferentes exatamente porque nenhum dos dois tem o falo. Há um vazio fálico tanto nos homens quanto nas mulheres: logo, eles são diferentes. Qualquer lógico chamaria este silogismo de absurdo, mas para Freud ele se sustenta. Freud deixou uma brecha, que Lacan, no Seminário 20, Mais, ainda, de 1972-1973, vai radicalizar em relação à mulher: nenhum dos dois tem o falo e nenhum dos sexos é A mulher. Continua parecendo um contrassenso, mas na clínica psicanalítica é uma experiência concreta. Tanto o homem quanto a mulher estão em exterioridade em relação ao que seria A mulher, que não existe.

Então, a diferença absoluta que se trata de alcançar em uma análise é o terreno daquilo que é incomparável, e que excede as diferenças relativas. Em outros termos, não basta, para estabelecer a diferença absoluta, saber ser – ou mesmo assumir-se – homem ou mulher, ou qualquer outra polaridade. Não basta definir o lugar ou uma escolha no terreno das diferenças relativas. Lacan situa o objetivo estratégico da psicanálise na produção da diferença absoluta, e não no aprimoramento das diferenças relativas. A diferença absoluta não é a evolução da aceitação das diferenças relativas. Existe um corte, um abismo entre as duas. Ora, isto tem como consequência que fica excluída qualquer ideia de uma completude entre os sexos.

Freud, em “O mal-estar na civilização”, de 1930, diz que no encontro entre os sexos existe alguma coisa que resiste à complementaridade. E é esse desarranjo fundamental que nos constitui. Ele afirma que há algo da própria função do sexo que nos nega satisfação. O que Freud está dizendo é que, supondo-se o melhor encontro sexual, ou seja, aquele em que a fantasia se veria quase satisfeita, existe alguma coisa da própria função sexual que nos recusa a satisfação completa. Lacan sintetizou isto dizendo “não há relação sexual”, o que equivale a dizer que não há proporção sexual.

Temos, portanto, primeiramente, a diferença absoluta como objetivo estratégico da análise; segundo, temos a diferença absoluta como aquilo que não é a reunião de todas as diferenças relativas. A diferença absoluta supõe um corte com a diferença relativa, ou seja, se forem somadas todas as diferenças relativas do mundo, ainda assim não se definirá o que é a diferença absoluta, porque a diferença absoluta se dá como uma ruptura com qualquer somatório. 

Uma questão de dignidade

Creio que temos aqui certa correspondência com o conceito kantiano de dignidade, que podemos encontrar em Fundamentação da metafísica dos costumes. Kant usa uma oposição para definir o que é a dignidade. Mais do que uma oposição, Kant propõe uma exclusão mútua: no reino dos fins, escreveu ele, tudo tem ou bem um preço ou bem uma dignidade. O que tem preço pode ter outra coisa em seu lugar, como equivalente; mas o que se eleva acima de todo preço, não permitindo, por conseguinte, qualquer equivalente, tem uma dignidade.

A dignidade não tem preço, porque não faz parte da cadeia metonímica por meio da qual os objetos se sucedem como equivalentes eróticos. Não está submetida à comparação, sob a égide de um equivalente universal das trocas, como Marx diz da moeda. Ou como Freud, e sobretudo Lacan, dizem do falo.

Se dizemos hoje em dia que tudo virou mercadoria, isto equivale a dizer que qualquer coisa vale moeda. Não tudo, mas qualquer coisa, qualquer coisa pode ser representada por uma quantidade monetária, inclusive aquilo que antes representava o que não tinha preço. Existe, portanto, nos nossos dias uma crise na extensão do conceito de dignidade. É uma crise de civilização. Não é diretamente política, e nem psicanalítica – é uma crise de civilização.

A dignidade em Kant pode ser entendida como algo que interrompe o movimento em que os objetos fariam uma série contínua e sem limite. Sem limite não quer dizer ainda a diferença absoluta. Sem limite quer dizer uma série dentro da lógica da diferença relativa, cujo fim não se vê. É a ideia do relativismo, bem dos nossos tempos, onde tudo vale qualquer coisa, alheia à lógica da psicanálise, uma vez que a psicanálise encontra o limite na sucessão dos significantes: seja no plano do Imaginário – há alguma coisa que de repente se configura, e com isto se separa da série –; seja do Real, como Lacan explica, por exemplo, a irrupção da angústia.

Isto sim é um ponto de interrupção na produção das diferenças relativas e uma abertura para a diferença absoluta.

 

Texto originalmente publicado em Trivium: Estudos Interdisciplinares, Rio de Janeiro, ano XIII, número especial, p. 83-87, mar. 2021. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2176-4891202100 0100013

 

 

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