• Home
  • As gotas com as quais o pensamento escreve

 

As gotas com as quais o pensamento escreve[i]

Cleyton Andrade

 

Estamos em guerra. É difícil precisar, exatamente, quando começou e resumir o contexto que a provocou. Muito menos até quando vai durar. Uma chacina ocorrida no Rio de Janeiro, no dia 24 de maio de 2022, deixou um número de mortos ainda incerto. Estima-se em vinte e seis. Até o momento que escrevo, cinco pessoas ainda permanecem internadas. Há o óbito de uma adolescente, e a morte de Gabrielle Ferreira da Cunha, atingida por bala perdida, não está incluída entre o número de vítimas. A bala que matou Gabrielle foi perdida, mas as balas perdidas no Brasil têm endereço certo: ela era uma mulher negra. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2021, dentre as vítimas de homicídio, 75,8% são pessoas negras. Entre aquelas que são mortas por policiais, 78,9% são negras.

Na mesma semana, no Nordeste, Genivaldo de Jesus Santos, um homem negro – é preciso dizer... –, morreu numa abordagem policial por “insuficiência aguda secundária à asfixia”, quando foi preso numa viatura bombardeada com gás lacrimogêneo.

Em uma conversa recente, Keilah Gerber chamou minha atenção para um poema de Primo Levi que abre o livro É isto um homem? (1988), que teve nova publicação em Mil sóis, uma coletânea de poemas do mesmo autor.

                                    Vocês que vivem seguros
                                    em suas cálidas casas,
                                    vocês que, voltando à noite,
                                    encontram comida quente e rostos amigos,
                                    pensem bem se isto é um homem
                                    que trabalha no meio do barro,
                                    que não conhece paz,
                                    que luta por um pedaço de pão,
                                    que morre por um sim ou por um não.
                                    Pensem bem se isto é uma mulher,
                                    sem cabelos e sem nome,
                                    sem mais força para lembrar,
                                    vazios os olhos, frio o ventre

 

Nessa mesma semana, a última de maio − não a última desta guerra −, Edson Luiz Sousa posta nas suas redes sociais que, após a asfixia de Genivaldo, foi reler exatamente aquele poema e se perguntou: “É isto um país?”. As câmaras de gás dos campos de extermínio encontram uma assustadora versão.

Um dos textos de Freud de que mais gosto é o “Considerações contemporâneas sobre a guerra e a morte”, de 1915. Nele, encontramos elementos para discutir temas que serão retomados em trabalhos posteriores de relevância reconhecida. Para citar apenas três, menciono de imediato “O infamiliar” (1919), “Além do Princípio de Prazer” (1920) e “Psicologia das massas e análise do Eu” (1922). É com o texto de 1915 que tentarei destacar um ou dois pontos em que Freud me fornece elementos para tornar pensável essa guerra a que me refiro. Uma guerra na qual é difícil tornar visíveis seus marcadores fundamentais, essencialmente por ser, aqui no Brasil, algo como a representação da morte no inconsciente. “A própria morte é irrepresentável”, diante dela não somos mais que espectadores.

Tal como no inconsciente, estamos convencidos de nossa imortalidade, somos um país que faz de seu racismo negro algo irrepresentável. Alguns poderão dizer, por exemplo, que Genivaldo Jesus, a vítima da câmara de gás de um dos nossos campos de extermínio, não é negro. Assim como alguns poderiam afirmar que eu não sou negro. Embora eu nunca tenha sido confundido com um branco. Tal como o racismo é negado entre nós, o colorismo também o é. Fazer da pele preta o critério de heteroidentificação inequívoco é gesto semelhante ao de conferir ao mestiço ou pardo a “zona cinzenta” entre uma aposta conciliatória do início do século XX, por meio de Gilberto Freyre, e o uso que se fez dessa tentativa para negar o racismo. Gilberto Freyre tentava traçar um projeto de país que passasse por uma conciliação entre elites rurais e urbanas, numa representação positiva de um encontro histórico que se pretendia enobrecedor – a mistura das raças como virtude do brasileiro. Para além do que pretendia, e num sintoma evidente do racismo à brasileira, a irrepresentabilidade fez dessa utopia da democracia racial, dessa anábase literária com vistas a fundar o povo brasileiro, o S2 necessário para manter inapreensível e impensado o S1 da intolerância. Todo exercício de recusa desse S1 do racismo negro no Brasil sustenta de um modo ou de outro, intencionalmente ou não, essa guerra da qual nunca saímos. Um quadro de guerra onde não há balas perdidas nem gás de cozinha.

O Estado em guerra permite-se qualquer injustiça, qualquer ato de violência, servindo-se de artimanhas e mentiras contra o inimigo. Eu poderia muito bem dizer que me refiro a Michel Foucault, Judith Butler ou Giorgio Agamben ao dizer isso. Como, por exemplo, na noção de Estado de Exceção em Agamben. Mas é Freud. O Estado opera seu poder na implementação efetiva daquilo que ao sujeito é negado. Demanda renúncia sem renunciar, exige sacrifício enquanto extrai gozo do excedente. Mas os sacrifícios não são distribuídos com equidade. Aliás, equanimidade não é traço do excesso. Quando a carta roubada está sobre a mesa, com destinatário e regras violentas, ela pode ser ilegível, embora não se furte aos olhos.

No referido texto de 1915, há um cenário montado por Freud que pode ser precariamente resumido mais ou menos assim: enquanto tomávamos as diferenças substanciais entre homens e entre povos, era razoável imaginar que as diferenças entre eles se sobressaíssem, resultando em conflitos. Diferenças entre europeus e o resto do mundo, entre brancos e negros, asiáticos, ameríndios, entre civilizados e bárbaros, entre civilizados e primitivos. Podemos resumir nos dois últimos binômios o antagonismo em questão: civilizados e bárbaros/primitivos. Contudo, o argumento de Freud vai sofrendo deslocamentos de pelo menos duas ordens – dos povos para os indivíduos (e daí para a vida anímica) e das diferenças para as semelhanças difíceis de operar. Freud destaca que a aposta de superioridade resultou numa falsa desilusão, uma vez que não se caiu de tão alto, posto que não se estava tão alto quanto se imaginava. Mais que desilusão com uma queda, tratava-se da galinha iludida que era um falcão. A Cultura, o processo civilizatório, não decantam a brutalidade e o barbarismo do homem falcão. Não se pode abater o mal que há em cada um. O civilizado não se livra de ser ele também um bárbaro.

Não que o ser falante seja naturalmente bom ou mal. Não preciso argumentar entre nós que Freud se refere à pulsão como fundamento tanto do ser quanto dos impasses éticos que se colocarão. As pulsões não são boas nem más. É o contexto histórico e cultural que oferecerá a gramática das pulsões. É a linguagem, o discurso, que permitirá uma dada configuração ou outra dos modos de apaziguamento. É somente em relação ao Outro, à realidade, à coletividade, que é possível operar efetivamente com a pulsão, inibindo ou estimulando vias, ofertando ou vetando objetos.

Para quem se interroga pelo motivo de falar de raça depois da Shoah, ou que só existem raças de discurso como se houvesse uma desinflação do significante em Lacan, eu diria que é justamente pela Shoah que se tornou historicamente ético falar de raça. Em 1950, a UNESCO, a pedido da ONU, adotou como resolução a proposta de pesquisas a respeito de questões raciais. Em 1966, na sede da UNESCO, houve nova reunião da qual participaram filósofos, cientistas sociais, antropólogos, dentre os quais Lévi-Strauss. Antes que Lacan fizesse uma relação entre raça e discurso, Lévi-Strauss rompeu o laço insano entre raça e biologia para afirmar o enlace sólido com a História. Raça e história: prelúdio de raça e discurso.

No caso do Brasil, um país que nega seu racismo, dizer e pensar raça é um dever ético. Afinal, são configurações discursivas que tecem gramáticas pulsionais e estão concernidas pela lógica do gozo. Será uma posição ética se for levado em conta o problema de recuar ou não frente a esse irrepresentável, a isso que resiste ao pensamento, embora transborde nos índices de desigualdade, de mortes, de corpos sob ataques.

Como podemos advogar teórica e clinicamente a plasticidade da pulsão, toda uma gramática dos afetos e, ao mesmo tempo, ignorar ou fingir que não vemos que à nossa volta os acentos, pontos de exclamação, interrogação, hiatos e inúmeras páginas rasgadas ou em branco incidem nos mesmos lugares? Freud tenta responder a isso:

A morte já não se deixa mais renegar [verleugnen]; temos de acreditar nela. Os seres humanos realmente morrem, e não mais um a um, mas muitos, às vezes dezenas de milhares num só dia. Não se trata mais de nenhum acaso. Certamente ainda parece casual se uma bala atinge um ou outro; mas esse outro pode facilmente ser atingido por uma segunda bala, e o acúmulo irá pôr fim à impressão de acaso.

 

A meu ver, o problema do racismo ainda é mais grave. Ele atinge os corpos antes mesmo das balas; por isso mesmo, é mais difícil ao pensamento. Trarei de modo ainda mais breve. Fica o convite para revisitar o texto: 1) há uma aptidão da Cultura para viabilizar a reconfiguração da pulsão; 2) isso se dá por meio de influências e condições da vida; 3) tais condições podem favorecer retrocessos permanentes ou transitórios nos modos humanos de satisfação da pulsão; 4) a guerra é um exemplo desse contexto em que a vida pode forçar modos de satisfação que não são valorizados pelo Outro social; 5) nenhum argumento lógico pode se sobrepor a interesses afetivos; com isso, 6) uma cegueira lógica é resultado de uma excitação afetiva; e por fim, 7) toda coerção interna já foi uma coerção externa. É fácil notar que eu precisaria de tempo para desenvolver todos esses itens trazidos por Freud. Se chegou até, talvez ainda tenha mais alguma disposição para amarrar esses pontos.

Em uma sociedade racista, ou, como já nos habituamos a dizer, no “racismo estrutural”, as configurações racistas traçam a cartografia dos movimentos dos indivíduos e instituições. Tal gramática dos afetos em torno de uma segregação indispõe indivíduos brancos em relação aos negros, bem como o negro em relação à própria etnia. Nesse contexto, ser negro pode ser insuportável ou simplesmente irrepresentável para um sujeito dessa etnia. Uma pessoa preta pode não saber sua cor e raça. Uma pessoa parda pode não se ver negra. O discurso do mestre não atua só de fora para dentro. Por isso, não se é negro ao nascer; é preciso tornar-se negro, e isso a partir de si e de alguns outros. Nesse sentido, o Outro está implicado tanto na impossibilidade de ser negro, pela branquitude e outras violências, quanto na possibilidade de tornar-se negro numa construção que se faz junto a uma coletividade. Um bom exemplo disso são os movimentos sociais negros, que são um elemento essencial nesse ato.

Enquanto a desigualdade for naturalizada, ou reduzida a argumentos marxistas ou classistas, teremos que conviver com pessoas negras tendo que se valer da plasticidade da pulsão, muitas vezes de modo extremamente desumano. Virar as costas para esse tipo de problema é o mesmo que dormir enquanto Primo Levi dá seu testemunho. Ignorar que nosso discurso pode ser parte do discurso do mestre – que, juntamente com o discurso do capitalista, ou (se me permitem um deslizamento para discursos colonialistas) extremistas, fascistas, racistas, sendo por isso coautor dessas condições de vida, ou de não-vida –, pode ser a marca de que já não sabemos nem podemos mais ler um poema.

                                    Vocês que vivem seguros
                                    em suas cálidas casas,
                                    vocês que, voltando à noite,
                                    encontram comida quente e rostos amigos,
                                    pensem bem se isto é um homem.


[i] O título se vale do uso de palavras de Agamben, logo ao início do livro Bartleby, ou da contingência, publicado pela editora Autêntica em 2015. Na página 12, ele diz: “A tinta, a gota das trevas com a qual o pensamento escreve, é o próprio pensamento”.

Imprimir E-mail