Revista Derivas Analíticas - Nº 20 - Março de 2024. ISSN:2526-2637
Meninos e meninas não são (ainda) homens e mulheres[1]
Sérgio Laia
Psicanalista
Analista Membro da Escola (AME)
pela Escola Brasileira de Psicanálise (EBP)
e Associação Mundial de Psicanálise (AMP)
Diretor Geral da EBP-MG
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Um poema me pareceu oportuno para introduzir o tema que pretendo abordar aqui. O tema, concernente ao que Lacan (1972-73/1985) nomeou como “sexuação”, tem a ver com a diferença com a qual os adolescentes vão ser especialmente confrontados (não sem dificuldades que lhes são bem específicas) nessa passagem que toma seus corpos entre a infância e a chamada “vida adulta”. Referindo-se, por sua vez, ao que se afasta e, ainda assim, impregna o olhar, um poema de Ana Martins Marques (2009, p. 64), intitulado Iceberg, diz:
Nossa infância separou-se de nós
Como um iceberg
nós a olhamos afastar-se lentamente
o brilho cego do gelo contra o sol
e tudo o que dizem que há por baixo
É conhecida a metáfora, atribuída a Freud, de que a consciência é apenas a ponta de um iceberg , e, o inconsciente, a enorme parte dessa montanha de gelo que permanece submersa. Porém, não encontramos efetivamente a assinatura de Freud nessa metáfora e, de fato, ela só aparece no capítulo 8 do primeiro volume da biografia que lhe dedicou Jones (1963). Nesse capítulo, é Fechner (e não Freud) que é apresentado como quem “relacionou a mente a um iceberg que está nove décimos sob a água e cujo curso é determinado não apenas pelo vento que incide sobre a superfície, mas também pelas correntes das profundezas” (JONES, 1963); especificamente sobre Freud, nesse contexto, é assinalado apenas o quanto muitas ideias de Fechner lhe serviram de referência.
Parece caber, portanto, aos mal-entendidos propagados ao longo da história e, possivelmente, ao lugar importante da biografia escrita por Jones na difusão da psicanálise, essa atribuição, a Freud, da metáfora do iceberg. Ainda assim, essa atribuição, mesmo que posso agora qualificá-la de falsa, possivelmente encontra uma justificativa para a insistência de sua propagação por evocar algo da dimensão do trauma e do inesperado. Afinal, se a psicanálise passou a se fazer presente no mundo especialmente a partir das duas primeiras décadas do século XX, foi em 1912 que o mundo se chocou com a ainda hoje mais trágica colisão de um navio com um iceberg e que resultou no naufrágio do Titanic. Nesse contexto, a metáfora do iceberg, mesmo inicialmente apresentada quatro décadas depois por Jones (1963), não deixa de ecoar como uma espécie de alerta (sobretudo aos que insistiam em desconhecer a descoberta analítica do inconsciente), e, também, como um convite a que se pudesse interessar pelo que não se dá propriamente a ver, mas está lá e pode dar lugar a equívocos que, como no caso do Titanic, podem “provocar”, como se diz correntemente, “traumas” e “tragédias”.
Mas, no poema de Marques (2009), não há desinteresse pelo iceberg que se afasta. Ao contrário, talvez por ter sido escrito nos nossos dias, há um fascínio pela dimensão ofuscante da transparência (“o brilho cego do gelo contra o sol”) e, ainda, uma espécie de suspeita quanto ao que é dito pelo Outro (“e tudo que dizem que há por baixo”). Esse fascínio pela transparência e essa suspeição quanto ao que é falado pelo Outro chegam a ser constatados como inquietantes em nossas aplicações da psicanálise à terapêutica neste mundo onde a suposição de saber vacila, a palavra nem sempre consegue dar mostras de seu poder frente à inexistência do Outro e tudo parece visível graças ao modo como a transparência ganha corpo no mundo.
Nos versos de Marques (2009), olha-se a ponta brilhante do iceberg afastar-se, considera-se até, segundo se diz, que ainda “há por baixo” um “tudo” que com ela se afasta, mas, ao mesmo tempo, o distanciamento afeta ainda aquele que olha o iceberg distanciar-se. De algum modo, quem o olha chega a ficar tão ofuscado quanto a transparência gelada que dele se separa porque, desde o primeiro verso, se diz que a separação que aí se realiza é de “nossa infância”.
Diferente do jovem e desconcertado Lacan, quando um também jovem filho de pescador o provocou apontando-lhe como a latinha de sardinha que olhavam brilhar ao sol em pleno mar da Bretanha não o olhava, Marques (2009), talvez tanto quanto o Lacan (1964/1985, p. 94; 1964/1973, p. 88-89) que nos confidencia esse fragmento de sua juventude, dá mostras de que – mesmo sem olhar para nós – aquilo do qual nos separamos e que toma alguma distância de nós ainda nos afeta, nos fascina, nos dá calafrios, nos gela a espinha, é parte “nossa” e tão estranha a nós quanto o que chamamos de “nossos” corpos. Nesse contexto, considerando o que, à distância e separado de nós, nos olha, observa, fascina e inquieta, eu escuto o poema de Marques (2009) dialogar com outro, escrito algumas décadas antes por Bishop (1946/1990, p. 22). Também tomada pelo iceberg (ainda que qualificado, no título desse outro poema, como “imaginário”), essa poeta norte-americana me permite recortar (e traduzir livremente) os seguintes versos:
Melhor ter o iceberg que o navio, embora isto significasse o fim da viagem [...]
Oh, campo flutuante, solene,
percebes um iceberg repousar
contigo, e que, ao despertar, pastarás em tuas neves?
[...] com seu peso, o iceberg desafia
um cenário cambiante, e para, e encara.
Icebergs incumbem à alma
(ambos se autocriando de elementos pouco visíveis)
vê-los assim: encarnados, claro, eretos, indivisíveis.[2]
Mesclando, então, os dois poemas, diria que o iceberg-infância que se afasta não deixa de olhar, atrair, desafiar, encarnando, para quem o vê partir, o que é pouco visível, mas insiste. Por que lhe tende a ser dada a “preferência” frente ao navio que, cambiante, também parte ou à viagem que poderia prosseguir? O que é ofuscado pela clareza desse bloco ereto de gelo?
À concepção do aparelho-psíquico-iceberg falsamente atribuída a Freud, mas que implica o encontro traumático com o que é inusitado, olha e produz equívocos, esses dois poemas me permitem conferir, portanto, uma dimensão corporal que é particularmente importante para este texto. Por isso, eles me pareceram uma boa introdução para, valendo-me também do que tenho recebido em minha clínica, discutir os impasses da sexuação hoje e, sobretudo, em sua apresentação na experiência analítica.
Nem homens, nem mulheres
A tábua da sexuação, concluída e apresentada por Lacan (1972-73/1975, p. 73; 1972-73/1985, p. 105),[3] autoriza-nos a determinar, sobretudo em suas duas primeiras linhas, que, para um conjunto fechado, sempre haverá uma exceção. No lado esquerdo, masculino, segunda linha, o conjunto fechado de “os castrados” (para todo x Φx, ou seja, a função fálica que veicula a castração é aplicada a todos) supõe uma exceção que, na primeira linha, o antecede: existe um x que não está submetido à castração, ao qual não se aplica a função fálica: . Por sua vez, no lado direito, feminino, primeira linha, a negação existencial de um x ao qual se aplica a negação da função fálica () e, portanto, a negação da castração para qualquer x, acaba sendo outro modo de afirmar o conjunto fechado de “os castrados” porque propõe – por essa negação existencial de um x que não seja submetido à Φx – que todos são castrados e, assim, reafirma, pela negação, a existência da castração.
Porém, do lado feminino, o que vai efetivamente se apresentar como inusitada é outra negação, localizada na segunda linha e que, incidindo-se diretamente sobre o quantificador universal (o “para todo”), introduz algo completamente inaudito até então na lógica: trata-se do “não para todo x” (), ou seja, da incidência da negação sobre o próprio quantificador universal e que torna essa negação diferente tanto da negação universal (não existe nenhum x que não seja castrado), quanto da negação particular (existe apenas um x que não é castrado).
Referindo-se a uma conferência pronunciada por Pierre-Gilles Guéguen sobre a tábua da sexuação, Wülfing (2013) apresenta-nos com muita clareza esse inusitado, esse inaudito, ou, se quisermos evocar o título de um escrito de Lacan (1973/2001; 1973/2003), esse “aturdito” que aparece do lado feminino da tábua da sexuação: na mulher, “alguma parte (nela) diz mesmo ‘não’ à função fálica”, à castração e essa parte é “seu gozo feminino” que a faz “singular... apreensível apenas uma a uma”, enigmática para si, para outras e para os outros. Assim, continua Wülfing (2013), quando dizemos que “nenhuma mulher é como outra”, referimo-nos “a seu gozo único” e não ao que dela “diz ‘sim’ à função fálica”, à castração. Nesse contexto, sobretudo quando os homens proclamam que “as mulheres são todas iguais”, eles tomam por referência, a meu ver, o que são as mulheres na fantasia masculina e que, nessa vertente fantasiosa, diriam “sim” à castração que é, senão delas, certamente a dos homens. Afinal, a proclamação “as mulheres são todas iguais” comporta, silenciosamente, um temor bem masculino que as equaliza: “elas querem nossa castração”.
Wülfing (2013), valendo-se também de um esclarecimento feito por Charraud (1998),[4] destaca que o “não-todo” concernente a cada mulher faz com que ela se recuse a “reconhecer a exceção em qualquer outra” e, por isso, as mulheres não formariam um conjunto fechado de não-todas. Nesse viés, “um todo só é então possível quando um ponto de exceção é reconhecido por todos, e isso nunca acontece” Wülfing (2013). Daí, o aforismo A mulher não existe (Lacan, 1972-73/1975).
Esse aforismo lacaniano da inexistência da mulher muitas vezes é contrabalançado, inclusive por psicanalistas, à declaração de que “as mulheres existem”. Tendo a tomar essa declaração como uma espécie de ressalva que, de fato, pode ser um modo (neurótico) de tratar o temor da castração: provoca-se a fúria (sobretudo das mulheres) dizendo que A mulher não existe, mas, logo em seguida, declara-se a existência das mulheres. O problema é que essa declaração pode escamotear, a meu ver, a impossibilidade de se ter um conjunto fechado de não-todas. Wülfing (2013), por sua vez, convida-nos a enfrentar de outro modo o que pode provocar o aforismo lacaniano da inexistência da mulher e seu corolário sobre a impossibilidade de um conjunto fechado de não-todas: não podemos falar da totalidade da mulher, nem é absolutamente certo que possamos fazê-lo para uma a uma em particular – “nós só podemos falar sobre o gozo feminino como o que é diferente para cada uma”, inclusive para uma em relação a ela mesma e não apenas para uma como diferente em relação à outra. Ainda assim, continua Wülfing (2013), falar do gozo feminino implica também uma impossibilidade porque ele se define como “o que não pode ser dito”. Logo, o desafio que se coloca é: como abordar e falar do que não pode ser dito.
No mundo contemporâneo – e é sobretudo esta a tese de Wülfing (2013) que me interessa destacar – a impossibilidade não vai se referir apenas à existência d’A mulher, ela passa a incidir sobre a existência das mulheres e, por isso, o título do texto dessa psicanalista inglesa da Associação Mundial de Psicanálise é: “Nenhuma mulher no século XXI” (“No women in the 21st century”). Essa espécie de expansão da inexistência no que concerne às mulheres tem relação direta com o lugar que o significante falo (Φ) passa a ter na civilização contemporânea: “alguma coisa mudou no século XXI” na medida em que o falo (Φ), esse “termo usado pelo outro sexo, nomeadamente pelos homens, para designar tudo não funciona na sociedade, no sexo e neles mesmos, fazendo das mulheres o sintoma deles, não está realizando agora essa função muito bem” porque “há cada vez menos pessoas preocupadas com a diferença sexual” (WÜLFING, 2013, s/p). Essa despreocupação com a diferença sexual, mesmo quando ela não aparece tão clara devido à nossa atual defesa da diversidade sexual, faz com que também os homens sejam tomados pela inexistência: esse conjunto de castrados, referenciado ao falo (Φ), organizado a partir de uma exceção, é abalado pela desvalorização contemporânea desse significante e, por isso, Wülfing (2013, s/p) declara que o sexo masculino “também está desvanecendo (is also on its way out)” e, nesse viés, “homens algum no século XXI”.
Vivemos um desprezo com relação ao falo (Φ) porque ele é continuamente identificado como um instrumento de poder e de dominação que, se não está completamente destituído, deve sê-lo para que a diversidade sexual se efetive entre nós para além de toda segregação da diferença. O problema é que, muitas vezes, a diferença sexual hoje é assimilada rapidamente à heteronormatividade a ser combatida e a diversidade sexual, embora não seja este o propósito das lutas e políticas que a proclamam, acaba diluindo o que efetivamente faz a diferença, e, nesse contexto, também a própria diversidade.
Retornando à tábua da sexuação, mas me atendo agora ao que se encontra logo abaixo das proposições lógicas lacanianas, ou seja, aos termos da parte inferior, permito-me dizer que, no início deste nosso século, a perda da potência do falo como significante que demarcaria a diferença entre os sexos também compromete os encontros (e desencontros) entre os sexos e as diferenças dos gozos.
Assim, do lado feminino, o duplo vetor presente na tábua da sexuação tenderia a se reduzir, hoje, a um único vetor, aquele que, partindo da inexistência d’A mulher assinalada por uma barra sobre a letra maiúscula do artigo feminino definido () aponta para o significante do Outro barrado (), ou seja, para o que demarca algo quanto a essa inexistência. Daí, a solidão que assola os que se encontram do lado feminino da tábua da sexuação e que, hoje em dia, ganha contornos ainda mais intensos. Afinal, a inexistência d’A mulher () deixaria de ser vetorizada pelo que, do lado masculino, é o falo (Φ) e, nesse viés, teria que se haver apenas com o que, do lado feminino, é também um significante da inexistência () ou à redução ao objeto (a) com o qual o sujeito ($) que aparece do lado masculino procura resolver, sempre em vão, sua divisão, sua castração. Daí, também, essa deriva incessante (e não menos solitária) que perturba (não sem, às vezes, um tom de desafio à “heteronormatividade” ou ao “machismo”) a vida sexual de muitas jovens que buscam, em função do que as abala nas “baladas”, algum tipo de orientação na experiência analítica.
Para aqueles que se encontram do lado masculino da tábua da sexuação, o vetor continua sendo aquele que vai do sujeito dividido, castrado ($), ao objeto (a) com que se tende reduzir o que concerniria, especialmente para os homens, ao que lhes é apresentado como Outro sexo. Porém, do lado masculino, devido à perda da potência do falo como significante (Φ), quem ali se encontra passaria a ser cada vez mais assolado pelo que, segundo Lacan (1975, p. 268), acontece com o toxicômano, ou seja, pelo rompimento do “casamento” entre o corpo e o falo. Para quem se encontra no lado masculino da tábua da sexuação, prolifera-se, então, hoje, e não apenas no âmbito do que se diagnostica como “toxicomania”, uma adesão tóxica generalizada com relação aos gadgets e a tudo que favorece uma espécie de autoerotismo virtual. Intensifica-se, também, o que tem sido chamado de “cultura do estrupo”, ou o que toma outras formas dessa redução – tão característica do “machismo” – do falo (Φ) ao órgão sexual masculino. No avesso dessas formas escancaradas de gozar sem se haver com a diferença radical do Outro sexo, não deixa de ser comum também encontrarmos, na clínica analítica, uma forte inibição de alguns rapazes frente ao que se apresentaria como “masculino”.
A perda da potência do falo (Φ) como significante do gozo implica, nos dias de hoje, o que eu situaria, com Wülfing (2013), como uma espécie de proliferação da inexistência: não existe o Outro, nem A mulher, mas tampouco existiriam as mulheres e os homens. O que existiria, então, nesse deserto da inexistência que se expande? O gozo, sem dúvida, continua existindo, mas ele tende a se proliferar, sempre de modo excessivo e com quase nenhuma invenção, nas relações com infinitos objetos disponibilizados pelo mercado, acessíveis por um simples toque na tela do computador ou do celular, transposto nessa escrita interminável que toma a forma das “mensagens de texto”.[5] Tal como o “gozo chamado feminino”, em sua infinitização não-localizada, o gozo se espalha “como fogo desvairado (wildfire)” (WÜLFING, 2013, s/p) consumindo os corpos.
Assim, “cada vez menos” estamos “embaraçados pela falta de gozo” em nossas vidas” (WÜLFING, 2013, s/p), mas essa presença expandida e infinita do gozo invade o furo que atravessa a sexualidade humana. Há esse furo porque tal sexualidade não segue um programa natural ou pré-estabelecido, nem existe um parâmetro capaz de determinar qualquer proporção nas relações entre os sexos. No lado feminino da tábua da sexuação, ele se apresenta como a inexistência d’A mulher () e é demarcado pelo significante da inexistência do Outro ( ou, por outro viés, pelo objeto a como o que escapa à simbolização do gozo pela linguagem. No lado masculino da tábua da sexuação, tal furo não deixa de ter algum lugar na divisão que atravessa o sujeito ($), mas ele é muito mais precisamente detectável no falo (Φ) porque este tanto é destinado a “dar corpo ao gozo” (LACAN, 1960/1966, p. 822; 1960/1998, p. 836) e se apresenta como marca viva, não mortificada, do “gozo impossível de negativizar” (MILLER, 2011, p. 233-303), quanto designa uma “falácia” (LACAN, 1975-76/2007, p. 101-114) que, conforme veremos mais adiante, testemunha o real da inexistência de qualquer proporção entre os sexos.
Segundo Wülfing (2013), esse furo que, em suas diferentes formas, procurei localizar nos dois diferentes lados da tábua da sexuação, nos leva a interpretar e inventar modos de aproximar-nos ou evitar o Outro sexo, mas sempre nos fazendo confrontar com os impasses que permeiam os corpos sexuados. Por conseguinte, se a presença expandida e infinita do gozo no mundo contemporâneo insiste em suturá-lo, essa capacidade de interpretação e de invenção poderá se ver fortemente comprometida, tal como encontramos nas inibições e nas exibições que afetam as diversas formas de se viver a sexualidade hoje.
Essa proliferação infinita do gozo e sua insistência em suturar o furo que, em suas diferentes dimensões, afeta ambos os lados da tábua da sexuação faz com que, de acordo com Wülfing (2013), frente à inexistência d’A mulher, das mulheres e dos homens, bem como em resposta à perda da potência do falo como significante, passem a existir apenas meninas e meninos, ou seja, o que não é ainda sexuado como mulher ou como homem. Afinal, a civilização atual, mesmo se ainda é atravessada por ondas de conservadorismo, consolida cada vez mais uma liberação sexual que – por almejar desfazer-se do modo como as palavras tomam os corpos, por não conceber a diferença sexual como diferença entre modos de gozar e reduzi- la à diferença genital ou à performance dos diversos modos de se viver o sexo – é muito mais uma “forma de getting rid of sex” (WÜLFING, 2013, s/p), de “nos livrar do sexo” porque tende a diluir o que faz furo nas diversas experiências dos corpos sexuados.
Em um mundo onde a liberação sexual torna-se cada vez mais paradoxalmente a forma de se liberar do que há de real nos corpos sexuados, verifico que muitas vezes a experiência analítica poderá ser uma ocasião de se efetivar, especialmente no que concerne aos jovens, o que Miller (2016, p. 22-23) destacou de um escrito de Lacan (1958/1998a), ou seja, uma “imiscuição” da sexuação no que concerne às diferenças dos modos de gozo dos corpos sexuados.
Legado lacaniano para o século XXI
Na primeira lição do Seminário 23, Lacan (1975-76/2007, p. 16), apresenta o falo como “a conjunção” entre “esse parasita” – termo com que designa o que chama, bem popularmente, de “o pedacinho de pau em questão” e “a função da fala”. Essa concepção do falo como um parasita, embora sem a utilização literal desse termo, já se fazia de algum modo presente quando, muitos anos antes, lendo o caso clínico freudiano do “pequeno Hans”, Lacan (1956-57/1995, p. 231) ressalta o momento em que, para esse menino, o “pênis lhe começa a tornar-se alguma coisa completamente real”, “começa a mexer” e a criança, perturbada com o que acontece em seu corpo, “começa a se masturbar”. Assim, o parasitismo do falo tem a ver, por um lado, com essa exigência de gozo que assalta o corpo. Mas, por outro lado, quando, na primeira lição do Seminário 23, o órgão que mexe devido ao que se impõe como gozo ao corpo, é também explicitamente associado à fala, parece-me importante lembrar que, mais adiante, na sexta lição desse mesmo Seminário, Lacan (1975-76/2007, p. 92) designa a fala justamente como “um parasita... uma excrecência... a forma de câncer pela qual o ser humano é afligido”. Por conseguinte, a conjugação do órgão genital masculino com a fala, eleva o parasitismo do falo a uma dupla potência.
A meu ver, mesmo no nosso mundo, onde há uma crescente desvalorização do falo, sua dimensão parasitária não deixa de ser incidir, inclusive de modo insidioso, na sexuação dos corpos, tal como procurei demonstrar aqui. A psicanálise de orientação lacaniana – por se interessar pelas junções e disjunções entre fala e corpo – nos oferece vias privilegiadas para responder a esse parasitismo que persiste mesmo na própria desvalorização contemporânea do falo porque esta não se faz nem sem os corpos, nem sem a fala.
Se o mundo atual descredita o falo, considero importante ressalvar que, para a psicanálise de orientação lacaniana, não se trata de propriamente lhe aportar necessariamente algum crédito e de tornarmo-nos, como analistas, uma espécie de garantia para a vigência do falo hoje. Trata-se de tomar literal e realmente a sério a falácia que, nem sempre da melhor maneira, esse descrédito contemporâneo do falo lhe atribui. Afinal, se tal descrédito proclama que o falo é uma falácia que esconderia a diversidade da sexualidade restringindo-a à “heteronormatividade”, trata-se de enfrentar, nessa proclamação, o que ela tem de falacioso, na medida em que tende a reduzir o falo (e sempre de modo polarizado) ou ao órgão genital ou a um símbolo, sem levar em conta a conjunção entre corpo e fala desse “parasita” que é o falo.
A sétima lição do Seminário 23 é duplamente oportuna para verificarmos o que está realmente em jogo na falácia do falo. Em primeiro lugar, valendo-se inclusive de ressonâncias homofônicas e da produção de uma espécie de oximoro, Lacan (1975-76/2007, p. 107, 109 e 114) vai situar o falo no âmbito de “uma falácia” relacionada ao real, à aparência e à evidência. Em francês, como pude depreender em uma das aulas de Laurent (2014-2015) no seminário Parler lalangue du corps[6] e, em seguida, constatar em uma consulta ao prestigioso dicionário Le grand Robert de la langue française, o substantivo utilizado por Lacan – fallace (“falácia”) – é um elemento estranho: o que encontramos de fato, datadas etimologicamente de 1460 e 1552 são, respectivamente, suas formas adjetivas e adverbiais – “falacioso” (fallacieux), “falaciosa” (fallacieuse), “falaciosamente” (fallacieusement). Tanto essas formas, quanto o substantivo fallace utilizado por Lacan (1975-76/2007, p. 107 e 108), na medida em que apontam para o que é enganoso, ilusório, falseador, mentiroso, podem até fazer ressonância com o descrédito conferido hoje ao falo, mas – tomando um segundo aspecto bem diferente dessa desvalorização contemporânea – Lacan (1975-76/2007, p. 107 e 114) apresenta a falácia como “o que testemunha o real” e o falo como “único real que verifica o que quer que seja... na medida em que ele é o suporte da função significante”.
Retomando as considerações aqui apresentadas sobre a tábua da sexuação, eu diria que, quando a falácia do falo é sustentada apenas no âmbito de sua desvalorização como “símbolo de poder” que “heteronormatiza” a diversidade dos corpos sexuados, essa diversidade tenderá a congelar esses corpos em uma espécie de infância eterna transformando-os em sex toys (“brinquedos sexuais”) como um modo de evitar-lhes toda confrontação com o furo da inexistência da relação sexual, com os enigmas que a experiência diversificada do gozo e o apelo à fala fazem insurgir nos corpos. Porém, se a falácia do falo é abordada como o que dá testemunho do real, ela nos permitirá escutar e fazer escutar, nesse “alarido”, nessa “tagarelice”, nesse “blábláblá” da “sexuação” contemporânea ou, ao contrário, também de acordo com as situações clínicas que analisamos, nessa forte inibição que toma hoje os corpos, nessa espécie de anseio e, por que não dizer, de angústia relacionada ao modo como hoje a generalização dos sex toys procura, ainda que em vão, eludir o furo ou, para usar o termo de Lacan, as “falácias” que acontecem não apenas quando os corpos se desencontram, mas sobretudo quando eles, a partir da adolescência, são impelidos a se encontrar.
Na oitava lição do Seminário 23, Lacan (1975-76/2007) vai desdobrar, como já indica Miller nos subtítulos, “a função fálica, entre fantasia e fonação”, dando-nos ainda novos elementos para abordar o parasitismo do falo em sua conjugação de uma parte do corpo tomada pelo gozo com a não menos dimensão gozante da fala, ou seja, na conjugação do que a fantasia recorta nos corpos e do que ressoa foneticamente no que se fala. Sem dúvida, haveria ainda muito a desenvolver sobre essas formulações de Lacan sobre o falo e a sexuação, bem como de fazer-lhes a arqueologia, por exemplo, no Seminário 4, no escrito sobre a significação do falo, na localização deste último como uma das formas do objeto a no Seminário 10 e na relação fala-ereção-falo no Seminário 19.[7] Por ora, vou me ater ao seguinte: essas formulações, juntamente com aquelas trabalhadas aqui e extraídas do Seminário 20 e 23, fazem parte do que Lacan nos legou para enfrentarmos, com a experiência analítica, os impasses da sexuação no século XXI. Em um mundo tomado pela desvalorização do falo, trata-se de bancar, cada vez mais, que ele não é puramente o parasita, “o pedacinho de pau”, mas a conjunção disso que se destaca do corpo, toma corpo nesse outro parasita que é a fala e testemunha, como falácia, o real que pulsa nos corpos sexuados. A diferença sexual, então, poderá ser abordada, na experiência analítica, graças a esses novos modos de usar o que, desde o discurso de Roma, Lacan (1953/1966) chamava de “os poderes da fala”.
Nesse viés, deixar a infância afastar-se como um iceberg não é o resultado de um amadurecimento, como pretenderam muitos pós- freudianos e, hoje ainda, como proclamam muitos profissionais psi-. Fascinar-se por essa transparência gelada e congelar-se nela tem se tornado comum hoje em dia, mas tampouco é uma saída porque os corpos experimentam a infância inexoravelmente afastar-se à medida que o tempo passa e interfere nos modos de gozo de cada um. “Imaginário”, como qualifica Bishop (1946/1990), separado de nós, como nos faz ver Marques (2009), ou ainda, conforme encontramos também em muitos casos que analisamos, como objeto de um “apego” mortífero, esse iceberg-infância poderá, com a experiência analítica, deslocar-se para o que Lacan (1971/2009, p. 109-110 e 113- 114) chamou de “litoral”, onde – pela conjunção falaciosa entre corpo e fala – saber e gozo poderão ser experimentados como elementos diferentes e que, ainda assim, se tocam, se afetam, sobretudo quando nos dispomos a fazer falar e escutar o parasitismo que afeta os corpos vivos.
Referências
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CHARRAUD, N. Cantor avec Lacan (I). La cause freudienne, n. 39. Paris: École de la Cause freudienne, p. 117-125, 1998.
JONES, E. The life and work of Sigmund Freud. Vol. 1. New York: Basic Books, 1963.
LACAN, J. Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. In: Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1966, p. 238-324. (Trabalho original proferido em 1953).
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LACAN, J. Subversion du sujet et dialectique du désir dans l’inconscient freudien. In: Écrits. Paris : Seuil, 1966, p.793- 827. (Trabalho original proferido em 1960).
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Notas
[1] Texto originalmente difundido no Boletim Eletrônico Followme, n. 13, 2016, destinado à preparação do XXI Encontro Brasileiro do Campo Freudiano.
[2] Como o livro de Bishop é uma edição bilíngue, podemos ler esses versos em outra versão (realizada por Horácio Costa) e no original: We’d rather have the iceberg than the ship, although it meant the end of the travel. [...]
O solemn, floating field,
are you aware an iceberg takes repose
with you, and when it wakes may pasture on your snows? (…) Its weight the iceberg dares
upon a shifting stage and stands and stares
[...]
Icebergs behoove the soul
(both being self-made from elements least visible)
to see them so: fleshed, fair, erected indivisible.
[3] Podemos considerar que a elaboração da tábua da sexuação se inicia com o Seminário 18 (LACAN, 1971/2009), atravessa o Seminário 19 (LACAN, 1971-72/2012) e se conclui no Seminário 20 (LACAN, 1972-73/1985)
[4] Em seu texto, Wülfing (2013) cita a tradução, para o inglês, do texto de Charraud (1998) sobre Cantor e Lacan, mas apresenta a revista francesa do artigo original com um número errado. Nas Referências deste artigo citei o número correto.
[5] Uma instigante análise dessa escrita interminável a que se consagram particularmente os jovens hoje foi realizada por Souto (2016).
[6] É possível escutar as aulas deste seminário de Laurent (2014-2015) através da Radio Lacan (disponível em: http://www.radiolacan.com/es/topic/583). Também destaco que este curso foi retomado posteriormente sob a forma de livro, mas a referência à estranheza, na língua francesa, referente ao substantivo fallace (falácia) não volta a aparecer nessa publicação escrita (Laurent, 2016).
[7] Ver, nas Referências: Lacan (1956-57/1995, 1958/1998b, 1962-63/2005 e 1971-72/2012).