EDITORIAL - 12
A pulsão e seus aparelhos
Nesta publicação, como ocorre em outras derivas, nos deixamos conduzir pelos acontecimentos.
Neste número, privilegiamos discutir novas vicissitudes e novos efeitos que estão na pauta da atualidade: a internet e a Psicanálise; a pandemia, a tecnologia e as incidências sobre o corpo; a presença e o virtual.
Em várias ocasiões, no seminário Os Quatro conceitos fundamentais e no escrito Televisão, Lacan propõe traduzir o Trieb freudiano por deriva, para esclarecer assim, sua característica, oposta àquela proposta na tradução deste conceito por instinto. Instinto, entendido como um programa biológico que visa um objeto específico que o satisfaz.
No Seminário XX, mais ainda, ele diz:
Enfim, por enquanto, temos os Três ensaios sobre a sexualidade, aos quais lhes rogo que se reportem, porque terei novamente de usá-los sobre o que chamo de deriva para traduzir Trieb, a deriva do gozo.[1]
A pulsão se caracteriza por estar à deriva! Por estar remetida à contingência dos encontros, sempre faltosos, ordenados pela linguagem. Deriva quer dizer que estamos sempre orientados para encontrar o equívoco, em função das incontáveis maneiras de ser satisfeita parcialmente. No encontro entre os corpos e a linguagem, o gozo obtido nunca é o esperado. Não é isso!
Em que medida a pulsão e seus equívocos poderiam se articular aos usos e efeitos da internet? Seria a internet, por exemplo, uma extensão do que Lacan propunha, que “A realidade é abordada com os aparelhos de gozo”[2]?
Para desenvolver uma discussão entre esses termos, recorremos a Marshall McLuhan, teórico da comunicação, quem nos anos 1960/70 introduziu uma reflexão crítica sobre os efeitos das tecnologias em nossas vidas, famoso por cunhar o aforisma O meio é a mensagem[3] e haver antecipado a internet trinta anos antes de sua invenção. Para esse autor, a mensagem de cada meio não é seu conteúdo, o sentido comunicado, mas, ao contrário, a soma total de todas as mudanças que ele produz no mundo, transformando o ambiente. Por exemplo: a mensagem dos automóveis é toda a infraestrutura criada para mantê-los. Essa visão se opõe àquela do General David Sarnoff, que declarou: “Estamos sempre inclinados a transformar o instrumental técnico em bode expiatório dos pecados praticados por aqueles que os manejam. Os produtos da ciência moderna, em si mesmos, não são bons nem maus: é o modo com que são empregados que determina o seu valor.” Fica claro que essa afirmação ignora a natureza dos meios como ativos agentes de efeitos. Temos aqui a voz do sonambulismo de nossos dias.
Ao contrário da opinião do militar, é preciso considerar que, primeiro, a tecnologia serve como extensão de nossos órgãos, mas, sem que percebamos, nossos aparelhos transformam nosso ambiente e somos nós que nos tornamos seus servos. O pensador das mídias acaba por adotar uma “teoria da doença” que explicaria a invenção das tecnologias como uma resposta contra as pressões que excederiam o equilíbrio orgânico, através de um entorpecimento da função sobrecarregada e um estímulo para a invenção de um remédio – phármakon?
Talvez seja então possível dizer, a partir de McLuhan com Lacan, que o prolongamento tecnológico de nossos órgãos reorganiza nossas pulsões, e, se o faz, é porque tecnologias são extensões e respostas da deriva mesma das pulsões.
Para alimentar essa discussão, neste número convidamos vários colegas, aos quais de antemão agradecemos, para pensarmos juntos os efeitos atuais da internet no social e nos corpos.
Éric Laurent gentilmente nos permitiu publicar a formidável e abrangente entrevista concedida à revista La Cause du Désir número 97 – Internet com Lacan, cujo título é justamente “Gozar da internet”. Na entrevista, veremos trabalhar essa acoplagem da pulsão nos novos aparelhos. Laurent mostra como a internet transforma radicalmente o modo como cada um se liga ao mundo, como um novo órgão que se acrescenta ao corpo. Veremos que, como uma matriz fractal, a entrevista de Éric Laurent repercute em praticamente todas as outras contribuições aqui presentes.
Fabián Fajnwaks também autorizou a reprodução de seu texto “Não haverá algoritmo para digitalizar o analista”, publicado na mesma edição de La Cause du Désir. Ele busca situar o lugar da internet em relação a nossos conceitos: é um espelho, uma figura do Outro, um semblante ou um objeto a? Ali ele nos mostra que, diferentemente dos algoritmos da inteligência artificial, os algoritmos isolados singularmente em uma análise encontram um lugar reduzido à dimensão do semblante em relação ao gozo do analisante.
Graciela Brodsky, cuja contribuição aparece na rubrica aquele texto, contribui com seu texto “Short Story”. Nessa rubrica, onde se publicam textos “clássicos”, optamos por oferecer esse escrito que discute o tempo da sessão como um contraponto à noção de Setting analítico. Sabemos que na história da psicanálise o dispositivo analítico foi confundido com formas rígidas do Standard. Lacan, como nos mostra Graciela, nos fornece meios para respondermos com ajustes sem, entretanto, ceder a medidas exteriores, que comprometeriam o dispositivo ao submeter implacavelmente paciente e analista a condições desfavoráveis ao trabalho com o inconsciente. Discussão que se reabre quando nosso dispositivo sofre um impacto pela dificuldade dos atendimentos presenciais.
Jésus Santiago nos brindou com o artigo “Efeito phármakon: a injunção do gozo no mal”. Jésus retoma o termo Phármakon: remédio e veneno, desenvolvendo um percurso ao longo da história do termo, a partir do qual podemos fazer uma aproximação do efeito droga, tóxico, ligado aos usos da internet. Esperamos dele um segundo artigo para nosso próximo número, onde essa articulação vai ganhar mais precisão e esclarecimentos.
Eduardo de Jesus nos traz uma rica e viva reflexão por meio da qual atualiza o pensamento de McLuhan com o artigo “Meios e mensagens no domínio do capitalismo contemporâneo”, onde faz um upgrade da famosa tese desse autor e demonstra que o meio deixa de ser atualmente só uma mensagem, mas se torna uma habilidosa forma de controle. Bastam, para verificar essa tese, os robôs e fake news nos cenários político e sociais em que vivemos.
Emanuel Vianna nos apresenta inputs a partir de sua experiência. São considerações sobre algoritmos e a inteligência artificial. Esses inputs nos mostram, a partir da prática cotidiana do autor, um bom número de exemplos do poder de domínio e segregação embutidos na estrutura de funcionamento da IA, além de pontuações deste momento atual.
Fernando Casula nos traz o artigo “Sexualidade contemporânea: o corpo na era digital”. Ele toma como plano de comentário o filme Her, do diretor Spike Jonze, onde Joaquin Phoenix interpreta Theodore, homem solitário que se apaixona pela voz de um sistema operacional, Samantha, intuitivo e sensível, voz emprestada de ninguém menos que Scarlett Johansson. Casula escreve um artigo sobre essa relação e suas impossibilidades, servindo-se como orientador teórico da expressão cunhada por Laurent: “erotômano da máquina”.
A artista Ana Luísa Santos nos concedeu uma entrevista: “Conexões arriscadas”. Ana nos leva como artista a vermos certos aspectos das nossas relações atuais de um outro ponto de vista, perspectiva que emerge de sua experiência como artista que privilegia as performances e os encontros.
Por fim, Teodoro Rennó Assunção nos trouxe seus “poemetos infamintos”. Vocês verão as mutações significantes, o enxame de letras cheias de humor, chacoalhando os sentidos, que atingem em cheio, no concreto do poema, nosso momento.
Agradeço também à artista Julia Baumfeld, que generosamente nos cedeu seu trabalho Não delimito bem os limites. Ele ilustra esta Derivas com um tom tecnológico, mas vintage, trazendo, com certo humor e nostalgia, essa relação cheia de consequências e com limites porosos entre os seres falantes e as tecnologias.
Esperamos que façam uma boa leitura.
Sérgio de Mattos
Notas
[1] LACAN, Jacques. O seminário, livro 20: Mais, ainda. (1972-1973) Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008. p. 120.
[2] Ibidem, p. 61.
[3] McLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação como extensões do homem: understandig mídia. São Paulo: Cultrix, 1969.