EDITORIAL
Mergulhos no Dark Continent
Virgínia Carvalho
Psicanalista
Membro da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP)
e Associação Mundial de Psicanálise (AMP)
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Na imensidão da Tate Modern, galeria de arte situada em Londres, na “amável, livre e magnânima Inglaterra”,[1] encontrei-me com a beleza do trabalho de Aïda Muluneh, colorindo as paredes de A world in common (“Um mundo em comum”), exposição de fotografia africana contemporânea. Nessa exposição, as obras de arte, tal qual “um olhar negro para trás”, faziam cair “a máscara de nossos mundos”, como Colin Wright, nosso colega jamaicano, membro da London Society of The New Lacanian School, pôde nomear: um “Black look (back)”. Agradecemos ao Tate Modern pela gentileza em nos ceder a imagem da exposição, incluída no texto de Colin.
Ao lado de várias dessas obras, Water life series 2018 exibia quatro fotografias cuja força poética me levou a conhecer melhor os trabalhos de Aïda. Suas imagens, ao mesmo tempo, incluem uma importante crítica social (permitindo à artista “advogar através da arte”) e veiculam uma dimensão fantasística, que parecem propiciar certo contorno ao que é insuportável de suportar. Assim, a imagem vista acima, por exemplo, chama-se Star shine, moon glow (“Brilho das estrelas, luz da lua”), e Sorrows we Bear é o nome de outra imagem, o que pode ser traduzido por: “A dor que carregamos”, ou “As tristezas que suportamos”. Nesse projeto, em que evoca a situação das mulheres trabalhando por horas para buscar água na Etiópia, em circunstâncias sempre muito precárias, ela nos convida a ler essa insistência terrível não apenas através de suas lentes, mas também nos versos de Maya Angelou, extraídos de um poema intitulado Woman work (“Trabalho da mulher”): “Star shine, moon glow. You´re all that I can call my own” – “Brilho das estrelas, luz da lua, vocês são tudo o que posso chamar de meu”. Recomendamos bastante um passeio cuidadoso e desapressado pelo site de Aïda, https://www.aidamuluneh.com/, a quem muito agradecemos por ter gentilmente nos cedido algumas imagens para compormos o número 20 desta Derivas Analíticas.
Nascida em 1974 em Addis Ababa, na Etiópia, Aïda graduou-se em cinema na Howard University, em Washington D.C. Sua fotografia percorreu o mundo e ganhou diversos prêmios, podendo ser encontrada em importantes museus. Ela foi a primeira mulher preta a ser co-curadora no Prêmio Nobel da Paz, em 2019. Também já participou do júri de importantes competições de fotografia e deu palestras em festivais relevantes dessa área. Como educadora e embaixadora Canon, fundou o Addis Foto Fest, primeiro Festival de Fotografia no leste africano, que acontece desde 2010.
Seu trabalho, comprometido com o “ativismo visual”, permite dar lugar ao olhar africano na fotografia internacional. Aïda acredita que, na fotografia, não é o fotógrafo que escolhe a foto, mas, sim, que ele é escolhido por ela, o que nos remete à formulação de Lacan, no Seminário 11, página 95, de que quem olha está no quadro, já que é no fundo do olho que vê que um quadro se pinta.
Na matéria do The Guardian de 25/06/22, intitulada “The artist shining a light on water poverty in Ethiopia”(“A artista que faz brilhar uma luz sobre a falta de água na Etiópia”), Aïda relata: “Nosso continente tem muitas camadas, mas temos estado à mercê da mídia internacional que não mostra a complexidade de nossos desafios. Minha abordagem tem sido a de contar uma história sob a minha perspectiva, não baseada nos clichês frequentemente cobertos por fotógrafos estrangeiros”.[2] Aïda nos faz um convite dizendo que, se queremos conhecer a África, temos que ir até lá.
Sérgio Laia nos ajudou a nomear o encontro com o trabalho de Aïda a partir de uma expressão controversa, mas nem por isso abandonada: a de que a feminilidade é um dark continent. Freud utilizou essa expressão em “A questão da análise leiga. Conversas com uma pessoa imparcial”, em 1926. Na página 240, do volume lançado pela Editora Autêntica em 2017, sobre os Fundamentos da Clínica Psicanalítica, nas Obras Incompletas de Sigmund Freud, encontramos a indicação feita por ele de que a vida sexual da mulher adulta seria um dark continent para a Psicologia. Gilson Iannini, editor da coleção, propõe uma nota na página 312, esclarecendo que tal expressão, que pode ser traduzida como “continente escuro” (ou “negro”, ou “obscuro”), faz alusão à expressão popularizada pelo best-seller da literatura colonial Through the Dark Continent, publicado pelo explorador Henri Morton Stanley em 1878, em Londres. Ele lembra que muito já se escreveu sobre essa metáfora de Freud. Alguns críticos a consideram o vestígio de um “discurso falo-eurocentrista”, enquanto outros, defensores, acreditam que a metáfora traz a ideia de uma alteridade radical reduplicada, ao mesmo tempo que aponta para os limites do próprio discurso psicanalítico.
Em “Testemunhos esporádicos do não-todo”, publicado nesta edição da Derivas Analíticas, Heloísa Bedê aponta duas maneiras lógicas de considerar tal expressão. Ela indica que “um continente, por definição, só se apresenta aos olhos uma vez desenhado pelo horizonte assintótico do mar”. Nesse sentido, convida-nos a “tomar o continente no que há nele de vivo e de não delimitável, uma vez que é bordejado apenas na dimensão fugaz de seu encontro com as águas do oceano”. Essa ideia é consonante com o que Clotilde Leguil havia apontado em seu editorial para o número 52 da revista Ornicar?, publicado em 2018 sob o título “Dark Continent”, ao se questionar sobre a atualidade da expressão freudiana nessa nossa época do tudo saber: conclui que, se essa metáfora não é obsoleta, é porque não se trata apenas de uma questão de fracasso do conhecimento psicanalítico diante do continente da feminilidade, mas do encontro com um território diferente. Esse território é o que a obra de Aïda me parece interpretar: uma “obscura claridade”, para usar as palavras de Leguil, cujo brilho e opacidade se apresentam ao nosso olhar. Mas também à nossa escuta, conforme nos indica, também neste número da Derivas, Raquel Guimarães, em “A obscura claridade de Fatoumata Diawara”, discorrendo sobre a música “hipnotizante” dessa artista malinesa, cujo belo videoclipe, do qual apresentamos alguns trechos aqui, foi dirigido por Aïda Muluneh. “Nterini”, nome da música em Bambara, pode ser traduzido por “algo a dizer”.
Em “Meninos e meninas não são (ainda) homens e mulheres”, outro texto desta edição, Sérgio Laia faz, a meu ver, uma leitura desse “algo a dizer”, indicando que, se o gozo feminino se define como “o que não pode ser dito”, é preciso não recuarmos diante disso. Assim, “o desafio que se coloca é: como abordar e falar do que não pode ser dito”. Consideramos que “A mulher não existe” porque “não podemos falar da totalidade da mulher, nem é absolutamente certo que possamos fazê-lo para uma a uma em particular – ‘nós só podemos falar sobre o gozo feminino como o que é diferente para cada uma’, inclusive para uma em relação a ela mesma e não apenas para uma como diferente em relação a outra”.
Cada texto desta edição é um convite para lermos essa mensagem, sem recuarmos diante do impossível de dizer. Porque “a linguagem não confina a alma das mulheres [...]: gira em torno delas, tocando-as”, como nos mostra Walter Benjamin, lido na colaboração de Maria Josefina Fuentes, que, por sua vez, o relaciona ao modo como Lacan avançou em suas “passagens” pela sexualidade feminina. Em “Passagens femininas em Walter Benjamin”, ela indica que “no aprendizado de uma língua estrangeira, o essencial não é aquela que se aprende, mas o abandono daquela tida como própria – o que exige a desapropriação das identidades culturais para alojar o estrangeiro que habita o familiar em cada língua”. O trabalho de Aïda, que encontrei no “estrangeiro” da Inglaterra, me pareceu uma abertura a uma nova língua, um convite para uma travessia.
Maria Cristina Giraldo, colega da Nueva Escuela Lacaniana, nos conta, em “O enigma da sombra”, sua travessia em relação ao rechaço do feminino e ao duplo racismo que ela experimentou na pele: como mulher e como negra. Essa aproximação também dialoga com o trabalho de Bárbara Afonso, “Considerações sobre a necropolítica e o feminino” porque, segundo a autora, tanto o campo do feminino e como o da nomeação negro comportam uma alteridade, um vazio, não-todo. Essas elaborações nos remetem à orientação lacaniana trabalhada por Miller de que as raças se constituem pelo modo como são transmitidos os lugares simbólicos no discurso, ponto que Jacques Allain Miller trabalha em seu texto “Racismo e extimidade”, publicado em 2016, no número 4 de Derivas Analíticas.
Marina Recalde, colega da Escuela de la Orientacíon Lacaniana, compartilha conosco sua experiência de análise, indicando seu atravessamento dos binários brancos-negros, mulheres-homens, ricos pobres... nós-eles, “atravessamento necessário para encontrar outro modo de habitar o mundo”. Em “Sobre coletivos e singularidades”, ela parte da ideia de Aquiles Mbembe de que “quando o poder brutaliza o corpo, a resistência assume uma forma visceral”, buscando responder, em seu texto, à seguinte pergunta: “em que uma análise levada ao final pode permitir a alguém contornar essa tensão entre o coletivo e o singular?”.
Em “O assombro da literatura enfrentado em ‘A mais recôndita memória dos homens’”, Ludmilla Feres Faria nos trouxe sua leitura de um livro do escritor senegalês Mohamed Mbougar Sarr, vencedor do prêmio Goncourt em 2021. Ela nos mostra como, para ele, a escrita foi se colocando como uma solução para lidar com o impacto de certa marca indelével e traumática, “do encontro da palavra com os corpos, que torna impossível unificar os sujeitos numa mesma classe: ‘todos colonizados’”.
Daniela Viola encontra esse impossível de unificar nos tapetes e nuvens de poeira do artista sul-africano Igshaan Adams, na Bienal de São Paulo, intitulada justamente como Coreografias do Impossível. Valendo-se de que “a nuvem, essa suspensão fugaz de partículas, é uma imagem da contingência”, ela nos faz retornar ao sobrevoo de Lacan pelas planícies da Sibéria e sua teorização sobre a letra, no texto “Lituraterra”, escrito em 1971, para chegar à figura do turbilhão ou “redemunho”, termo que lhe evoca o sertão de Guimarães Rosa. O texto “Sobre nuvens e redemunhos: notas de uma visita a Coreografias do impossível” é ilustrado com lindas e impressionantes imagens cedidas pela Fundação Bienal de São Paulo/ Levi Fanan, a quem também agradecemos.
Vinícius Moreira Lima entrevistou, especialmente para este número, Igor Simões, curador da exposição Direito à forma, que acontece no Inhotim. O deslocamento do título dessa exposição para “Direito ao informe”, realizado em seu texto, permite-nos valorizar a proposta dessa curadoria de não essencializar a ideia de um “pretenso lugar de negro”. Vale passear pelas belíssimas imagens da exposição incluídas nesse texto, que gentilmente foram cedidas pelo Inhotim, a quem agradecemos. “Eu sou atlântica”, frase de Beatriz Nascimento que aparece como epígrafe dessa exposição, evoca-nos o perdido (a célebre Atlântida) e antecipa-nos que o oceano Atlântico carrega tanto as marcas da diáspora, quanto “o mais além, pelo movimento, pelos fluxos, que apontam na direção do não-identitário, dimensão em jogo na criação artística e, particularmente, na abstração formal”.
O oceano, o mar, a água... Nosso convite é de que esta edição possa ser lida como um passeio ao estrangeiro e ao desconhecido, não numa busca de construção de fronteiras, mas como a abertura para um mergulho fecundo e singular sobre a water life que o feminino comporta na sua dimensão mesma de dark continent.
Obrigada a todos que contribuíram para esse número.
[1] Essas expressões são atribuídas a Sigmund Freud, na entrada do Freud Museum, numa placa explicativa sobre “Por que Freud veio para Londres?”. No original, está escrito: “Why did Simgund Freud come to London?” […] Freud was the most famous in the community of Jewish refugees who escaped the Nazis and settled in this part of London. He was grateful to ´lovely, free, magnanimous England’ but endeded his life far from home, and fearful for the fate of friends and Family left behind”.
[2] No original: “Our continent has many layers,” she says. “However, we have been at the mercy of the international media that does not show the complexities of our challenges. My approach has been to tell a story from my perspective, not based on cliches often covered by foreign photographers.” Cf.: https://www.theguardian.com/artanddesign/ gallery/2022/jun/25/the-artist-shining-a- light-on-water-poverty-in-ethiopia-in-pictures.
Equipe Editorial
Virgínia Carvalho (Coordenação)
Daniela Viola
Ludmilla Féres
Miguel Antunes
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Vinícius Lima
Revisão: Sílvia P. Barbosa
Edição de vídeo: Bruno Senna
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