Philippe Lacadée

 

“A psicanálise muda, [...] é um fato”,[1] e convém, desde já, dar lugar ao que o último ensino de Lacan propõe, isto é, um novo nome para o inconsciente. Em seu escrito Joyce, o sintoma,[2] Lacan apresenta o neologismo “falasser”, profetizando que ele irá substituir a palavra freudiana “inconsciente”. Jacques-Alain Miller propõe tomá-la como “índice do que muda na psicanálise no século XXI, quando ela deve levar em conta outra ordem simbólica e outro real, diferentes daqueles sobre os quais ela se estabelecera”.[3] Ele observa também que, com o conceito de sinthoma, traduz-se um deslocamento do conceito de sintoma, do inconsciente ao falasser: “[…] o sintoma como formação do inconsciente estruturado como uma linguagem é uma metáfora, um efeito de sentido induzido pela substituição de um significante por outro”.

Em contrapartida, “o sinthoma de um falasser é um acontecimento de corpo, uma emergência de gozo”.[4] J.-A. Miller faz, então, emergir o vocábulo “escabeau”, tomado emprestado de Joyce, o sintoma, com o qual Lacan abre um novo caminho para a sublimação proposta por Freud, e que permite, como indica Hervé Castanet com seus dois livros, La sublimation e S.K. Beau,[5] sair da deriva da “psicanálise aplicada” para a cultura.

H. Castanet desenvolve “uma clínica pragmática em que o uso singular e a intervenção particular primam sobre a formatação universalisante”.[6] Os textos desses dois ensaios colocam a trabalho o conceito de sublimação, segundo o último ensino de Lacan, apreendido pela equação que propõe J.-A. Miller: sublimação = escabeau.[7] H. Castanet homenageia, com talento, o trabalho dos artistas que fazem valer “um saber – geralmente vindo deles mesmos – que implica a psicanálise”.[8] Esta última está confrontada com a questão: “ficando o enigma de seu lado”.[9] Encontram-se, nesses dois livros de Castanet, cuja leitura recomendo vivamente, textos literários, manifestos de vanguarda, quadros tomados ao pé da letra, que permitem ao autor propor uma tese sólida: “A psicanálise implicada obriga a uma rigorosa política das consequências – ou seja, os artifícios dos semblantes e as construções de simulacros não podem evitar um real a trabalho”.[10] Castanet observa que esse real é causa, e ele precisa: “Palavras, imagens, conceitos são tratamentos desse real […]. O saber do artista toca, precisamente, esse real da causa”.[11]

Uma frase conhecida de Lacan, datada de 1965, nos serve de cautela prática, precisa Castanet:

[...] se lembrar, com Freud, que em sua matéria o artista sempre o precede e, portanto, ele não tem que bancar o psicólogo quando o artista lhe desbrava o caminho. Foi precisamente isso que eu reconheci no arrebatamento de Lol V. Stein, onde Marguerite Duras revela saber sem mim aquilo que ensino.[12]

Nesse mesmo texto, Lacan acrescenta uma baliza: recuperar o objeto por sua arte, tal é o trabalho do artista – sua sublimação. É nisso que a obra tem poder de ensinamento e que, no lugar do objeto a, ela encontra a sua agudeza “[...] visto que esse objeto, ela (M. Duras) já o recuperou através de sua arte”.[13]

Em A ética da psicanálise Lacan[14] havia fornecido uma teoria completa da sublimação, que esta afirmação resume: “e a fórmula mais geral que lhes dou da sublimação é esta – ela eleva um objeto […] à dignidade da Coisa”.[15] J.-A. Miller indica que essa Coisa que traduz o das Ding freudiano, “essa realidade muda […] ou seja, a realidade que comanda, que ordena”.[16] A sublimação é uma elevação, uma “operação ascensional”[17] – uma Aufhebung.

Em 1975 Lacan inventa a palavra “S.K.beau”[18] (escabelo) para qualificar a estética de James Joyce.[19] “S.K.belo” é novamente empregado aqui, diz H. Castanet,

[...] com sua surpreendente tipografia, para desnudar esse real com o qual o artista se confronta e que as possíveis sublimações velam: no coração do belo (do verdadeiro, do bom, do perfeito, do sublime...), há sempre este S.K. enigmático, fora do sentido.[20]

O escabelo psicanalítico é

[...] aquilo sobre o qual o falasser se ergue, sobe para se fazer belo. É o seu pedestal que lhe permite se elevar-se, ele mesmo, à dignidade da Coisa. […] O escabelo é um conceito transversal. Traduz de forma imagética a sublimação freudiana, mas em seu cruzamento com o narcisismo. [...] O escabelo é a sublimação, mas na medida em que ela se funda sobre o eu não penso inicial do falasser. O que é esse eu não penso? É a negação do inconsciente pela qual o falasser se crê mestre de seu ser. E com seu escabelo, ele acrescenta a isso o fato de se crer um belo mestre. O que chamamos de cultura não é nada além da reserva dos escabelos na qual se buscar com o que esticar o colarinho e bancar o glorioso.[21]

Eis o movimento entre 1960 e 1975. “A Coisa é apresentada como uma esfera fechada, fechada sobre ela mesma, puro silêncio – a esfera celeste e Deus não estão longe. O escabelo, por sua vez, é muito mais modesto – erguemo-nos sobre ele, mas não muito alto! Ele é, de preferência, “bricolado” e procede do torto, e não do reto e do redondo”,[22] precisa H. Castanet. Isso não é uma metáfora, mas uma diferença quanto à estrutura: “[...] o real do reto é o torto [...], o torto prevalece sobre o reto […], o reto é apenas uma espécie de torto”.[23] O escabelo é o real da esfera, afirma Lacan: “Digo isto para fazer uma para mim, e justamente por fazer assim decair a esfera, até aqui impossível de destronar, em sua supremacia de escada, de escabelo. Razão por que demonstro que o S.K.belo vem primeiro, porque preside a produção da esfera”.[24] Os corpos dos sujeitos falantes estão comprometidos com isso, diz H. Castanet, o que precisará J.-A. Miller em seu texto O inconsciente e o corpo falante. “O S.K. belo é aquilo que é condicionado no homem pelo fato de que ele vive do ser (= esvazia o ser) enquanto tem... seu corpo: só o tem, aliás, a partir disso”.[25]

J.-A. Miller propõe um paralelo entre o sinthoma e o escabelo. “O que fomenta o escabelo? O falasser sob sua face de gozo da fala. Esse gozo da fala origina os grandes ideais do Bem, do Verdadeiro e do Belo. O sinthoma, em compensação, como sintoma do falasser, está ligado a seu corpo. O sintoma surge da marca escavada pela fala quando ela toma a aparência do dizer e faz acontecimento de corpo. O escabelo está do lado do gozo da fala que inclui o sentido. Em contrapartida, o gozo próprio ao sinthoma exclui o sentido”.[26]

Se Lacan se apaixonou por James Joyce e especialmente por sua obra Finnegans Wake, nos diz J.-A. Miller,

[...] foi devido à façanha – ou à farsa – que representa por fazer convergir sintoma e escabelo. Em termos exatos, Joyce fez do próprio sintoma como fora do sentido, ininteligível, o escabelo de sua arte. Ele criou uma literatura cujo gozo é tão opaco quanto o do sintoma, nem por isso deixando de ser um objeto de arte elevado sobre escabelo à dignidade da Coisa.[27]

Nossa rubrica Escabeau deseja convidar os leitores da revista Ironik a se fazerem os passadores do escabelo dos criadores. Alguns artistas são “fabricantes de escabelo destinados a fazer arte com o sintoma, com o gozo opaco do sintoma. E teríamos bastante dificuldade em ponderar sobre o que é o escabelo-sintoma no que concerne à clínica”.[28] Podemos nos perguntar se a música, a pintura, as belas-artes tiveram seu Joyce. Quanto ao que chamamos de belas-artes, o iniciador foi talvez um certo Marcel Duchamp. H. Castanet demonstra como cada artista, face ao seu encontro com o real nomeado por Lacan S.K.Belo, “[...] desata e reata a imagem ou a palavra ou o conceito para fazer tratamento. Esse tratamento é sublimação”.[29] Com o sinthoma, ou seja, a forma de “bricoler” singularmente com o incurável do real, cada um desses criadores quer subir no escabelo da obra. Fazer de seu sintoma um escabelo para revelar o gozo opaco do sintoma. Como um autor lida com seu sintoma para fazer dele sua obra de arte? E para dizer isso em termos freudianos, o escabelo é evidentemente um fato de sublimação. A partir disso, o leitor ou o espectador se satisfaz e decide fazê-lo passar aos outros.

Os escabelos estão aí para fazer a beleza, porque a beleza é a última defesa contra o real. Mas, uma vez que os escabelos são derrubados, queimados, resta ainda ao falasser analisado demonstrar seu saber fazer com o real, saber fazer com ele um objeto de arte, seu saber dizer, saber bem dizê-lo.[30]

Tradução: Fabiana Campos Baptista

Revisão da tradução: Yolanda Vilela

Philippe Lacadée é psicanalista, membro da École de la Cause freudienne (ECF) e da Associação Mundial de Psicanálise (AMP). Entre suas obras destacamos:

  • Le malentendu de l’enfant: des enseignements psychanalytiques de la clinique avec les enfants. Paris: Payot-Lausanne - Nadir, 2003.
  • L’éveil et l’exil: enseignements psychanalytiques de la plus délicate des transitions: l’adolescence. Paris: Cécile Defaut, 2007;
  • Le malentendu de l’enfant. Que nous disent les enfants et les adolescents aujourd’hui ? Nouvelle édition revue et augmentée. Paris: Michèle, 2010.
  • Robert Walser, le promeneur ironique. Enseignements psychanalytiques de l’écriture d’un roman du réel. Paris: Cécile Defaut, 2010.

Derivas analíticas agradece a Philippe Lacadée pela amável cessão dos direitos de tradução e publicação deste texto. S.K. beau foi publicado originalmente em Ironik! – revista digital UFORCA (Cf. <http://www.lacan-universite.fr/category/ironik-n1>).

Notas

[1] MILLER, 2015.

[2] LACAN, 2003, p. 560.

[3] MILLER, 2015, p. 26.

[4] MILLER, 2015, p. 26.

[5] CASTANET, 2014 e 2011.

[6] CASTANET, 2014, p. 5.

[7] LACAN, (1975-1976) 2007, p. 208.

[8] CASTANET, 2014, p.13.

[9] LACAN, (1971) 2003, p. 17.

[10] CASTANET, 2014, p. 6.

[11] CASTANET, 2014, p. 6.

[12] LACAN, (1965) 2003, p. 200.

[13] LACAN, (1965) 2003, p. 72.

[14] LACAN, (1959-1960) 1988.

[15] LACAN, (1959-1960) 1988, p. 140-141.

[16] LACAN, (1959-1960) 1988, p. 72.

[17] LACAN, (1975-1976) 2007, p. 208.

[18] LACAN, 2003, p. 561.

[19] AUBERT, 1973. J. Aubert consagrou a obra a essa estética para qual Joyce queria redigir um grande tratado. Ela deveria ter sido publicada em 1917. Joyce a abandonará.

[20] CASTANET, 2014, p. 7.

[21] MILLER, 2015, p. 28.

[22] CASTANET, 2014, p. 7.

[23] CASTANET, 2014, p. 7. Castanet cita Miller. em Nota passo a passo (por J.-A. Miller), que observa o que disse Lacan ([1975-1976] 2007 p. 209) “Como conceber uma reta que, eventualmente, se entorta? Esse é evidentemente o problema que levanta minha questão do real”, p. 137.

[24] LACAN, 2003, p. 561.

[25] LACAN, 2003, p. 561.

[26] MILLER, 2015, p. 28.

[27] MILLER, 2015, p. 28.

[28] MILLER, 2015, p. 28.

[29] CASTANET, 2014, p. 8.

[30] MILLER, 2015, p. 29.

Referências

AUBERT, J. Ulysse. Introduction à l’esthétique de James Joyce. In: ______. Études anglaises. Paris: Didier-Érudition, n. 46, 1973.

CASTANET, H. Avant-propos. In: ______. La sublimation. L’artiste et la psychanalyse. Paris: Anthropos, 2014.

CASTANET, H. La sublimation. L’artiste et la psychanalyse. Paris: Anthropos, 2014.

CASTANET, H. S.K. beau. Paris: Éditions de la Différence, 2011.

LACAN, J. Homenagem a Marguerite Duras pelo arrebatamento de Lol V. Stein (1965). In: ______. Outros escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. p. 198-205. (Campo Freudiano no Brasil).

LACAN, J. Joyce, o sintoma. In: ______. Outros escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. p. 560-566. (Campo Freudiano no Brasil).

LACAN, J. Lituraterra (1971). In: ______. Outros escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. p. 15-25. (Campo Freudiano no Brasil).

LACAN, J. Nota passo a passo (por Jacques-Alain Miller). In: ______. O seminário, livro 23: o sinthoma (1975-1976). Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Tradução de Sérgio Laia. Rio de Janeiro: Zahar, 2007. p. 199-246. (Campo Freudiano no Brasil).

LACAN, J. O seminário, livro 7: a ética da psicanálise (1959-1960). Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Tradução de Antonio Quinet. Rio de Janeiro: Zahar, 1988. (Campo Freudiano no Brasil).

MILLER J.-A. O inconsciente e o corpo falante. Apresentação do tema do X Congresso da AMP, no Rio, em 2015. In: Scilicet. O corpo falante - sobre o inconsciente no século XXI. Rio de Janeiro: EBP, 2015.

MILLER, J.-A. O inconsciente e o corpo falante. Scilicet O corpo falante - sobre o inconsciente no século XXI, São Paulo: EBP, 2015.

 

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