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logoder Revista Derivas Analíticas - Nº 22 - Março de 2025. ISSN:2526-2637

 

Sobre música

Sandra Arruda Grostein,
Psicanalista
Analista Membro da Escola (AME),
membro da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP)
e Associação Mundial de Psicanálise (AMP)
E-mail:

“Like love, there can never be too much good
music. The number of people who use it as a
fuel to recharge their appetite for life is beyond
counting.” (MURAKAMI; OZAWA, 2016)

“Minhas tardes com Seiji Ozawa” foi o título escolhido por Haruki Murakami para apresentar seu livro sobre música. No entanto, como ele esclarece na introdução, os editores preferiram outro: “ Somente Música”.

Este livro é resultado de alguns encontros realizados principalmente no escritório de Murakami, em Tóquio, ou eventualmente onde quer que os dois artistas puderam se encontrar. A primeira conversa se deu em 16 de novembro de 2010, em Tóquio, e a última em julho de 2011, numa viagem de trem de Genebra a Paris, cidade em que maestro iria se apresentar regendo a Seiji Ozawa International Academy Switzerland. No total, são seis encontros, que, à primeira vista, poderiam parecer entrevistas em torno das considerações do maestro sobre música. No entanto, já na introdução do livro, fica claro que o rumo das conversas se distanciou, e muito, dessa primeira impressão que o leitor era levado a ter.

Seja na informalidade das conversas entre esses dois grandes artistas japoneses, seja no aprofundamento dos aspectos técnicos e teóricos da música e literatura, a paixão pela música os une nessa série de encontros marcados pelas nuances da relação entre a música e a literatura, na própria arte de fazer e interpretar ambas. Entretanto, não se pode dizer que há uma intersecção entre música e literatura e, sim, alguns pontos de confluência.

Murakami, com sua desenvoltura com as palavras, discute como a música influencia sua escrita, desde a estrutura rítmica de suas frases até a ambientação de cenas específicas. Descreve a escrita como uma forma de composição, em que cada palavra e cada frase deve se encaixar harmoniosamente, assim como notas em uma melodia. Diz que não buscou um ensino técnico de escrita e que seu aprendizado se deu através de sua escuta de música, pois considera o ritmo como o elemento fundamental da escrita. Em suas palavras: “Ninguém vai ler o que você escreve se não tiver ritmo!” (MURAKAMI; OZAWA, 2016, p. 98). E o ritmo vem justamente da combinação de palavras, das frases, dos parágrafos, de como ordenar os pares fortes ou suaves, leves ou pesados, equilibrados ou desequilibrados, isto é, como combinar tons diferentes (MURAKAMI; OZAWA, 2016, p. 99).

De seu lado, Ozawa fala sobre narrativa e como certas peças podem contar histórias sem palavras. Ele compara reger uma orquestra com dirigir uma peça de teatro, pois o maestro deve entender a intenção do compositor e transmitir essa visão ao público. No entanto, dá alguns exemplos da dificuldade em conseguir realizar a tarefa. Ozawa cita uma situação específica quando, na leitura da partitura da Ópera Wozzeck, de Alban Berg, ao conseguir traduzir os sons para o piano, pensou ter captado “a intenção do compositor”; entretanto, foi quando a levou para a orquestra que ele se deu conta dos equívocos. Começou a se perguntar onde estava tropeçando, já que não se tratava de dificuldade nem com o ritmo, nem com a harmonia, e o tempo então entrou aí como o vilão. Podia entender intelectualmente a proposta do compositor, mas não conseguia transmiti-la. Isto é, há casos em que o fluxo harmônico de uma composição não pode ser compreendido, a menos que seja colocado na prática a partir dos sons orquestrais. Pode-se tentar produzir o som ao piano, mas dez dedos não são suficientes, e é preciso escutar o som vindo dos diferentes instrumentos.

A experiência da leitura deste livro vem agradavelmente acompanhada da escuta de diferentes obras e de diferentes interpretações das mesmas peças, profundamente discutidas pelos autores, notadamente as diversas interpretações do Concerto nº 3, de Beethoven, tanto em relação aos solistas, quanto aos regentes. Particularmente, chama a atenção o longo comentário sobre a famosa apresentação desse concerto executado por Glenn Gould sob a regência de Leonard Bernstein, em 1960. Tal apresentação põe em questão o lugar da interpretação da partitura: ao explicitar uma diferença de leitura do solista e da regência, o maestro então escolhe acompanhar o desejo do pianista em respeito às suas aptidões artísticas. Comparam-na à regência de Karajan, na qual o solista não teve a mesma liberdade de expressão.

Muitos outros temas são abordados com maior ou menor profundidade, seja desde a perspectiva profissional do maestro, seja desde a perspectiva amadora do escritor, que declara que as tardes com Seiji Ozawa foram uma rara oportunidade para ele, um artesão solitário, escutar boa música em boa companhia e testemunhar uma obra de arte comunitária em formação, ao participar de diferentes ensaios com os jovens músicos dirigidos por um grande maestro.

O conjunto desses encontros é concluído com um último título: “não há uma única maneira de se ensinar, o importante é inventar a medida em que se avança no ensino” (MURAKAMI; OZAWA, 2016, p. 285). O encontro desses dois artistas excepcionais permite ao leitor explorar temas sobre música, os cuidados com a escuta, a importância do tempo, a escrita, a linguagem, o silêncio, o vazio, as pausas e a música como combustível que recarrega o apetite pela vida – o desejo e, a partir da vasta experiência de cada um, pode-se acompanhar um diálogo informativo e inspirador para que quem tem a psicanálise como referência possa associar inúmeras semelhanças entre as duas linguagens. Recomendo firmemente a leitura, lembrando que, em tempos de streaming, Spotify e demais aplicativos, todas as músicas comentadas no livro podem ser escutadas.

Referência 

MURAKAMI, H.; OZAWA, S. Absolutely on Music: Conversations. New York: Knopf Doubleday Publishing Group, 2016.

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