
Revista Derivas Analíticas - Nº 22 - Março de 2025. ISSN:2526-2637
O som e o sem sentido: sobre a não-relação entre música e psicanálise[1]
Daniela Viola
Psicanalista
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Nós envolvemos de panos uma nudez sonora extremamente
ferida, infantil, que permanece sem expressão no fundo de nós
mesmos. Esses panos são de três espécies: as cantatas, as sonatas, os poemas.
O que canta, o que soa, o que fala.
Com o auxílio desses panos, do mesmo modo que tentamos
subtrair aos ouvidos alheios a maioria dos ruídos do nosso corpo,
subtraímos ao nosso próprio ouvido alguns sons e alguns
gemidos mais antigos. (Pascal Quignard, 1999)
O som e o sentido, livro de José Miguel Wisnik (2017, p. 11), “fala do uso humano do som e da história desse uso”. Em outras palavras, aborda a relação do ser falante com a matéria sonora, esse emaranhado de sons e ruídos que fazem o ouvido vibrar. Um som resulta de uma determinada frequência de onda, que oscila em certa periodicidade. É presença e ausência e está permeado de silêncio. Um som afinado pulsa numa frequência constante, já um ruído tem oscilação desordenada. De origem, a música é a “extração do som ordenado e periódico do meio turbulento dos ruídos” (WISNIK, 2017, p. 29) – uma extração não-toda. A musicalidade decorre das afinidades eletivas do corpo com os sons e os ruídos. Lembrando que a onda sonora é um sinal oscilante que marca a propagação de uma frequência, segue uma pulsação temporal, o autor ressalta essa “espécie de correspondência entre as escalas sonoras e as escalas corporais com as quais medimos o tempo” (WISNIK, 2017, p. 21).
Essa história que Wisnik (2017, p. 15) conta mostra que a linguagem musical é onipresente na cultura, soando “ao mesmo tempo ao horizonte da sociedade e ao vértice subjetivo de cada um, sem se deixar reduzir às outras linguagens”. Ou seja, esse aparato cultural que produz, a partir da matéria sonora bruta que ressoa nos corpos, uma experiência estética, sempre acompanhou o ser falante e tem uma função discursiva – o que podemos reconhecer, por exemplo, na música modal, em profunda correlação com os ritos das sociedades tradicionais, bem como nas mais variadas formas da música popular, presentes nos acontecimentos coletivos de festa, celebração e entretenimento que fazem parte das mais diversas comunidades há tempos imemoriais. O Eros freudiano é indissociável da música.
Marie-Hélène Brousse (2016, p. 4, tradução nossa) também destaca a universalidade da linguagem musical: “a música é um dos modos de gozo universal dos seres falantes. Não há sociedade humana sem música, sem esse artifício imposto ao som, sem essa disciplina da orelha”. Para ela, toda a história dos homens e observações antropológicas demonstram que não se pode barrar esse modo de gozo. O gosto pela música se deve à estrutura da linguagem, é uma consequência da fala – o que converge com o pensamento de Mário de Andrade sobre a música: “irmã-gêmea” da palavra, “tendo ambas nascido do mesmo grito inicial” (ANDRADE, 1938/1995, p. 46).
A radicalidade dessa conexão entre a música, o corpo falante e o discurso sinaliza um possível ponto de encontro com a psicanálise. No entanto, é relativamente escassa a produção teórica de orientação psicanalítica acerca dessa arte. Em vista disso, Brousse (2016, p. 4) localiza aí uma “não-relação” e propõe a hipótese de que a música é um sintoma da psicanálise, já que um sintoma implica um “não querer saber de”. Desde Freud, passando por Lacan e até hoje, muitas são as referências tomadas de outras artes, enquanto “sobre a música, a psicanálise permanece em silêncio” (BROUSSE, 2016, p. 4). Essa escassez é relativa porque há certo volume de trabalhos que tangenciam o tema.[2] Contudo, como considera François Regnault (2016, p. 79-80, tradução nossa), não abordam o “interior” da música, e essa ausência em Freud e Lacan indica o sintoma de uma não-relação. Ele lembra de escritos que discutem elementos relacionadas à música, como a parte textual, a “letra” da música em canções e óperas, por exemplo, ou até considerações subjetivas sobre músicos e compositores. Outras produções recorrem à música para análises de questões sociais. Em muitos casos, trata-se de trabalhos interessantes, mas, como acentua Regnault (2016, p. 79), não chegam ao “‘interior’ da música, tal como o que é um acorde de sétima de dominante para a psicanálise?”. A partir desse exemplo muito preciso, que esse psicanalista toma de empréstimo de uma passagem de Schopenhauer,[3] podemos inferir que, embora haja diversas iniciativas de uma aproximação dessa arte, num tangenciamento imaginário ou simbólico, diante do real da música, a psicanálise costuma se silenciar. Um silêncio, talvez, à maneira de Cage.[4]
Os panos e as margens
É nessa tonalidade que escuto um dos raros comentários de Lacan (1972-73/1985, p. 158) sobre a música em seu Seminário: “Seria preciso, alguma vez – não sei se jamais terei tempo –, falar da música, nas margens”. Nessa passagem, a tônica é a escopia corporal que o Barroco promove. No Barroco, “tudo é exibição de corpo evocando o gozo” (LACAN, 1972-73/1985, p. 154). Lacan localiza nesse estilo de época a mais patente expressão da obscenidade: o gozo escópico elevado à altura das catedrais. Ele chama a atenção para um detalhe: a relação sexual propriamente dita, a cópula, não aparece nas cenas da obscenidade barroca. “Em parte alguma, em nenhuma outra área cultural, essa exclusão se confessou de maneira tão nua” (LACAN, 1972-73/1985, p. 154). Há, não obstante, corpos que gozam. É nesse contexto que encontramos a seguinte proposição: há um furo, lugar da fala, fundadora do pacto que supre a inexistência da relação sexual. “Essa hiância inscrita no estatuto mesmo do gozo enquanto diz-mansão do corpo, no ser falante, aí está o que torna a brotar com Freud por esse teste [...] que é a existência da fala. Aonde isso fala, isso goza” (LACAN, 1972-73/1985, p. 156). A escopia corporal barroca, efeito da moral cristã sobre a arte, é um véu para a não-relação. E é nesse ponto que Lacan evoca a música. Nessa arte, não se trata de uma escopia. Afinal, como atesta Quignard (1999, p. 66), “o ouvido é o único sentido em que o olho não vê”. Contudo, tal como no Barroco, a música é um véu, um dos panos que envolvem a nudez da relação do corpo com o som (QUIGNARD, 1999, p. 9). Como véu, recobre e revela a hiância.
Considerando a irmandade entre a música e a palavra, nascidas do mesmo grito (ANDRADE, 1938/1995), pergunto: a permanência nas margens da psicanálise tem relação com sua origem em comum com a palavra? Seria a música um resíduo da operação de tomada dos corpos pelos discursos?
Como assinala Miller (2013, p. 13), a voz como objeto a paradoxalmente está esvaziada de sua substância, quer dizer, é voz afônica, desprovida da matéria sonora. Ele conclui:
Não nos servimos, portanto, da voz. Ela habita a linguagem, ela a assombra. Basta que se diga para que emerja, para que apareça a ameaça daquilo que não se pode dizer. Se falamos tanto, se fazemos colóquios, se conversamos, se cantamos e ouvimos os cantores, se fazemos e ouvimos música, a tese de Lacan comporta que é para calarmos aquilo que merece ser chamado de voz como objeto a.
A música vela um real sonoro que é subtraído. Nesse mesmo diapasão, Pascal Quignard (1999, p. 58), escritor, ensaísta e músico, sustenta que “a música protege os sons. As primeiras obras da música dita barroca eram cheias do desejo de se extirpar do latido do sonoro a partir da modulação própria da linguagem humana e da organização de seus affetti”[5]. Disso podemos depreender que o artifício da música se funda no mesmo ato em que algo do real do som que ressoa no corpo é silenciado. Assim como a fala faz furo nesse silêncio, o véu musical o recobre, ainda que de sua tessitura furada escapem vestígios desse som impossível, ecos de uma não-relação fundamental.
Consonâncias e dissonâncias
É muito conhecida a confissão de Freud (1914/2015), no artigo “O Moisés, de Michelangelo”, sobre sua quase incapacidade de ter prazer com música. Mais que uma declaração sobre suas preferências artísticas, nessa passagem podemos ler uma referência estética:
obras de arte exercem um forte efeito sobre mim, em especial obras literárias e esculturas, raramente pinturas. Isso já me levou, em oportunidades adequadas, a me demorar longamente diante delas e a querer compreender tal efeito à minha maneira, ou seja, explicar a mim mesmo, por quais meios surtem efeito. Onde não posso fazer isso, por exemplo, na música, sou quase incapaz de fruição. Uma constituição racionalista ou, talvez, analítica teima em resistir a que eu venha me comover, sem que possa saber por que me comovo. (FREUD, 1914/2015, p. 183)
Nota-se aí que a fruição da arte por Freud depende de uma “compreensão” à sua maneira, uma decifração. E a música não é decifrável. Por mais que se possa atribuir sentido a uma obra musical, na experiência de cada um, seu “interior” – a estrutura de sua linguagem – não é interpretável, não quer dizer nada. E, mesmo assim, comove.
Lacan, por sua vez, gostava de música. Segundo Judith Miller – em entrevista publicada nesta edição de Derivas sob o título “Lacan, a música” –, seu pai não cantava nem tocava nenhum instrumento, mas acompanhava regularmente o festival de Aix-en-Provence, era assíduo no Domaine Musical[6] e não quis perder a reabertura da Ópera de Viena. Ela nos revela essas e outras curiosidades sobre a relação do pai com a música na conversa com o maestro Diego Masson, amigo que foi a grande referência para Lacan sobre assuntos musicais. Entre algumas anedotas interessantes, uma cena se destaca. Masson conta o que escutou do amigo na saída de um concerto em que haviam sido tocadas uma sinfonia de Mozart e uma de Haydn:
Afinal de contas, Haydn é talvez ainda mais impactante que Mozart! Há sentimentos em Mozart que podemos descrever com palavras, enquanto Haydn é totalmente abstrato, como uma equação matemática, sem qualquer sentimento e, no entanto, é extremamente prazeroso e cheio de surpresas. (MASSON, 2025, s. p.)
Percebemos nesse comentário a afinidade do ouvido de Lacan com uma música mais abstrata. É certo que há também abstração em Mozart, mas esse aspecto de “equação matemática” extraído de uma sinfonia de Haydn é muito preciso. Lacan, com a fineza de sua escuta, capta um traço marcante desse compositor, que foi muito engajado num projeto de composição formal, tendo buscado compor até o esgotamento das formas musicais de seu tempo.[7] É, sobretudo, da formalização que se trata em Haydn. Ao contrário de Freud, o gosto de Lacan pela música passa justamente por sua dimensão abstrata, equacional, vazia de sentido.
Lembrando que Lacan (1975-76/2007, p. 128) localiza o sintoma de Freud no inconsciente e, no real, o seu, notamos nessas declarações um ponto do sintoma de cada um. Enquanto Freud rejeita a música por não conseguir enquadrá-la em seu modelo de interpretação do inconsciente, Lacan expressa sua predileção por obras em que não há um sentido interpretável. E esse elemento sem sentido está presente, em alguma medida, em toda música, consistindo num efeito da passagem da matéria sonora ao discurso musical.
Schoenberg (1922/2011), em seu tratado sobre Harmonia, expõe a construção desse artifício que é o discurso musical, ressaltando a conexão fundamental entre um “exterior” e um “interior”, o cultural e o subjetivo, numa forma de laço que reúne sujeitos em torno do manejo estético do som. Ou seja: o som, essa matéria-prima da música, embora seja um objeto natural, ao ser tomado no discurso musical torna-se semblante, véu. Ele também enfatiza que a constituição e consolidação do sistema tonal – que se dá no decorrer das mutações discursivas das sociedades ocidentais, mais precisamente entre o fim do século XVII e o início do XX – não prescinde da dimensão “estranha” do som. “As expressões consonância e dissonância, usadas como antíteses, são falsas” (SCHOENBERG, 1922/2011, p. 59).
Ao problematizar a ideia de “sons estranhos à harmonia”, Schoenberg mostra uma espécie de inclusão êxtima da estranheza do som. De acordo com ele, o velho sistema harmônico considerava que os “sons estranhos à harmonia” eram acréscimos acidentais aos acordes do sistema, em que o complexo sonoro resultante não poderia ser compreendido como um acorde, por ser impossível relacioná-lo a uma fundamental. Seriam sonoridades raras, dissonantes, que aconteceriam apenas esporadicamente. “Algo à semelhança de um meteorito ou uma estrela cadente, os quais por certo acontecem, mas com uma aparente casualidade porque não estávamos cônscios, antecipadamente, do momento exato de sua aparição e nem poderíamos compreendê-lo” (SCHOENBERG, 1922/2011, p. 436). Entretanto, “essa casualidade aparece com demasiada frequência para que se possa considerá-la como realmente independente de leis” (SCHOENBERG, 1922/2011, p. 436), afirma o compositor. Ao delinear um radical pertencimento da “estranheza” ao universo sonoro, conclui que não existem “‘sons estranhos à harmonia’, mas somente estranhos ao sistema harmônico. [...] não há limites para as possibilidades de simultaneidades sonoras, para as possibilidades de harmonia” (SCHOENBERG, 1922/2011, p. 452). Quer dizer que os elementos “estranhos” não são estrangeiros à harmonia, como se não lhe dissessem respeito ou fossem externos à sua lógica, mas são inerentes à harmonia, como um estranho-familiar, um exterior internalizado.
O lugar dessa “estranheza” vai variar conforme a época, o estilo, o compositor, passando do que é exceção, no Barroco ou no Clássico, pelo que faz tensão no Romantismo, à centralidade, como na babel da música contemporânea. Isso muitas vezes comparece por meio de um “acidente”[8] – em abundância na música de Bach, por exemplo. Não há tradição musical pura, que tenha realizado um ideal de depuração do som, sem restos. E isso se deve à radical conexão da música com o corpo. Mesmo a música mais “enquadrada” num rigor formal, como aquela da tradição ocidental de concerto, ou a mais entrelaçada numa narrativa, como a canção, trazem consigo a dimensão do ruído e do sem sentido. Mesmo na performance mais regulada pela partitura está presente o singular de um corpo falante e seus gestos. Trata-se de um discurso sem palavras, que aparelha algo do gozo no corpo, do que ressoa do real sonoro em consonância com o pulso corporal.
A psicanálise escuta a música
Na experiência musical, ocorre uma sucessão de transposições, configurando uma forma de laço muito particular, que parte da criação artística do compositor, registra-se na partitura – essa escrita sem palavras, equacional, que é a notação musical –, passa pelo corpo do intérprete – seja instrumentista ou cantor, cada um com a singularidade de seu timbre – e chega ao ouvinte, com sua escuta singular. Nesse caminho, algo se escreve, há uma profusão de produção de sentido, mas há também algo que resta sem tradução, preservando o sem sentido dos harmônicos, ruídos e ritmos, que vai repercutir em cada corpo de uma maneira única. Nessa perspectiva, por meio da música, podemos aprender sobre a particularidade do objeto sonoro, sobre a função da modulação da voz numa análise, bem como sobre a noção de acontecimento de corpo (LACAN, 1975/2003).
Lacan (1962-63/2005) realça a especificidade do orifício do ouvido, esse furo impossível de fechar, desde sua proposição da voz como objeto a. Ele aborda o “derradeiro nó” (LACAN, 1962-63/2005, p. 268), o último nível da função do a, pelo manejo do chofar, objeto do ritual hebraico que é um instrumento sonoro. Dialogando com um estudo de Reik (1928), formula que o chofar, geralmente feito de um chifre de carneiro, ao ser soprado, ritualiza com seu som a voz de Deus. Trata-se de uma extração do objeto voz e nessa dimensão vocal “o que sustenta o a deve ser bem desvinculado da fonetização” (LACAN, 1962-63/2005, p. 273). Lacan (1962-63/2005, p. 274) esclarece que o interesse por esse instrumento está em apresentar a voz como “potencialmente separável”. Sobre o objeto voz, ele afirma que “acreditamos conhecê-lo bem, a pretexto de conhecermos seus dejetos, as folhas mortas, sob a forma das vozes perdidas da psicose, e seu caráter parasitário, sob a forma dos imperativos interrompidos do supereu” (LACAN, 1962-63/2005, p. 275). O ruído estranho do chofar é uma materialização ritualística daquilo que a música recobre e desvela, da parte do som que deve ser subtraída do ouvido humano a partir de sua tomada pelo discurso.
“Acontece que as orelhas não têm pálpebras” (QUIGNARD, 1999, p. 61) e não-todo o ruído inaudível se subtrai. Lacan (1964/1998, p. 184) continua no rastro desse objeto e, no contexto em que elabora sobre a pulsão – essa dimensão fronteiriça de tomada do corpo pela fala –, propõe:
Os ouvidos são, no campo do inconsciente, o único orifício que não se pode fechar. Enquanto que o se fazer ver se indica por uma flecha que verdadeiramente retorna para o sujeito, o se fazer ouvir vai para o outro. A razão disso é de estrutura, importava que eu dissesse de passagem.
Essa menção ao ouvido toca na particularidade da extração de que se trata no objeto sonoro. Em se tratando da pulsão, o som ressoa num ponto fronteiriço, interior e exterior. Essa excepcionalidade do ouvido em relação aos outros objetos pulsionais volta a ser tratada por Lacan (1975-76/2007, p. 18) em seu último ensino. Ele sublinha a ressonância do dizer no corpo, mais uma vez, numa elaboração sobre o campo das pulsões, que “são, no corpo, o eco do fato de que há um dizer”. E acrescenta: para que esse dizer ressoe, para que consoe, “é preciso que o corpo lhe seja sensível. É um fato que ele o é. Porque o corpo tem alguns orifícios, dos quais o mais importante é o ouvido, porque ele não pode se tapar, se cerrar, se fechar” (LACAN, 1975-76/2007, p. 18-19).
Acompanhando Lacan (1975/2003) na proposta do sintoma analítico como acontecimento de corpo – efeito da percussão do corpo pelo significante –, Miller (2001, p. 73) aponta “o paradoxo do corpo humano vivo e falante”. O corpo é paradoxal para o ser falante porque “o gozo não é funcional; ele é desarmônico em relação à finalidade vital” (MILLER, 2001, p. 73). E o gozo musical pode ensinar sobre esse paradoxo, já que tem como base esse buraco que nunca se fecha. Ao ressoar em cada falasser de modo singular, a música responde, com seu aparelho que harmoniza a matéria sonora, a essa “desarmonia” em relação à finalidade vital, indicada por Miller. A modulação da voz numa intervenção, bem como a interpretação, que seria uma espécie de forçamento pelo que um psicanalista pode vir a fazer soar outra coisa que não o sentido (MILLER, 2014, p. 180), são elementos da prática analítica que se aproximam da música, nesse ponto de tensão entre o desarmônico do gozo e o efeito vital de um encontro contingente. Nessa direção, Leonardo Gorostiza (2021) situa uma consonância entre a interpretação analítica e a execução musical, a partir de uma passagem dos Escritos, em que Lacan (1958/1998, p. 594) se afirma um “executante”. Para Gorostiza (2021, p. 30, tradução nossa), tanto o intérprete musical em sua performance, “como o analista com sua interpretação põem seu corpo, e isso é o que lhe dá uma dimensão de vida que cada vez é diferente e que nunca vai ser idêntica”.
Coda: um chiste de Beethoven
As obras do último e do ultimíssimo Beethoven provocaram um burburinho retumbante na cena musical da época. De grande abstração, transgressão formal e complexidade, sua música tardia foi associada à loucura. Seus críticos atribuíam a dificuldade técnica e a impossibilidade de compreensão ao desvario de um gênio supostamente arruinado pela surdez. Sabemos, todavia, que após um período de crise criativa, decorrente da manifestação da doença que em alguns anos o deixaria praticamente surdo, o compositor recuperou o vigor e escreveu suas obras mais impressionantes e geniais na fase que vai de meados de 1818 até o fim de sua vida, em 1827 (SWAFFORD, 2017).
Beethoven respondia às críticas com desdém e sarcasmo. Dizia que essa música não era para aqueles ouvintes, incapazes de escutá-la, mas para os ouvidos do futuro. Como os últimos quartetos de cordas,[9] uma das obras recebidas no meio musical com perplexidade e indignação foi a sonata para piano n.º 32. Além da extrema dificuldade técnica, inovação e abstração, chama a atenção a peculiaridade de ser uma sonata com apenas dois movimentos – algo inusual, já que a forma-sonata se baseia no modelo exposição - desenvolvimento - reexposição, seções que costumam se dispor em, pelo menos, três movimentos.[10] Nesse contexto, é notório um diálogo com Anton Schindler, músico, secretário pessoal e biógrafo controverso do compositor, que questionou ruidosamente esse sonata. Ao ser perguntado por que motivo não havia escrito um terceiro movimento, Beethoven respondeu: “não tive tempo” (BOUCOURECHLIEV, 1994, p. 75, tradução nossa). Essa ironia não teve graça para seu interlocutor. Como sua música daquele período, escrita para o futuro, é só no futuro que rimos dessa resposta, que toca num ponto essencial de sua arte – um ponto que podemos chamar de “sintomático”. Tempo, o grão mais elementar da música, é matéria que esse artista maneja como poucos.
A sonata nº 32, op. 111 em dó menor, foi escrita entre 1820 e 1822, sendo a última para piano. Com uma partitura de complexidade até então inédita, foi um desafio para seu editor e para os copistas e passou muitos anos em certa obscuridade, até ser redescoberta e se tornar uma das obras pianísticas mais importantes de todos os tempos. Seu primeiro movimento segue a forma-sonata e evoca características do Barroco. “Ele começa, para, gagueja, morre, soando como um tema de fuga que não consegue achar pé, que luta para se tornar uma fuga – o que finalmente consegue, brevemente, em uma variante do tema” (SWAFFORD, 2017, p. 742-743). Uma espécie de prelúdio que leva a uma espécie de fuga, de caráter tempestuoso e abrupto, com o dó menor como tonalidade principal e contínuas modulações. Segundo Jan Swafford (2017, p. 743), compositor e musicólogo, nesse movimento “o tempo é constantemente instável, desacelerando, acelerando, guinando subitamente”.
Dessa turbulência, a partir de um acorde de dó maior apaziguador, passa-se ao segundo movimento, uma arietta (indicação de que a execução deve ser “cantada”, melódica), composto por cinco variações mais uma longa, quase interminável, coda – um traço marcante em muitas obras de Beethoven, que permite escutar certo adiamento do fim, procrastinação que tem efeito estético de grande intensidade. A coda retoma o espectro da melodia original iluminada por trinados que vão dissolvendo a articulação rítmica num movimento de impressionante evanescência. Ela parece dissipar a dimensão temporal da música, numa espécie de transcendência esvaziada de sentido. Para Swafford (2017, p. 743), “essas últimas páginas são música além das palavras”, “a narrativa é vencida pela poesia”. Um detalhe interessante desse movimento é a notável semelhança de um trecho da terceira variação com o boogie-woogie, gênero do blues, remetendo o ouvinte de hoje até mesmo ao jazz – estilos que só surgiriam mais de 70 anos depois. De uma visita tortuosa ao Barroco a uma antecipação fulgurante do futuro: é do tempo, sem sentido e intraduzível em palavras, que se trata nessa sonata.
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[1] Este texto é produto do cartel “Psicanálise, corpo e arte”, ocorrido entre 2022 e 2024, que teve como Mais-Um Fernanda Costa e como cartelizantes Ana Paula de Oliveira, Carla Lima, Daniela Viola e Walcimara da Silva.
[2] Um número temático de La cause du désir, da ECF, de 2016, e outro do Cuadernos del ICdeBA, da EOL, de 2021, em que se encontram alguns dos textos citados no presente trabalho, põem um fim a essa escassez.
[3] Em O mundo como vontade e como representação, Schopenhauer escreve que “a cadência perfeita precisa ser precedida pelo acorde de sétima de dominante, assim como o desejo mais urgente só pode ser seguido pelo mais profundo apaziguamento e completa tranquilidade” (SCHOPENHAUER, 2005 apud REGNAULT, 2016, p. 79, tradução nossa).
[4] John Cage, compositor estadunidense do século XX, cuja obra mais conhecida é 4'33" – tempo que o músico deve permanecer em silêncio, dando lugar à tensão da expectativa dos ouvintes e à contingência e aleatoriedade dos ruídos.
[5] A doutrina dos afetos foi uma teoria de estética musical do período Barroco que propunha técnicas de composição com o objetivo de despertar emoções específicas no ouvinte, numa tentativa de domação afetiva do som.
[6] O Domaine musical foi uma sociedade de concertos fundada por Pierre Boulez, com programação em diferentes salas de Paris entre 1954 e 1973.
[7] Haydn, segundo muitos, foi um gênio do período clássico. Vinte e quatro anos mais velho do que Mozart, foi ele quem estabeleceu as bases formais do classicismo (forma-sonata), que depois seria levado ao esgotamento por Mozart e Beethoven. Foi Haydn quem fixou o gênero quarteto de cordas (compôs sessenta e oito) e da sinfonia clássica (compôs cento e quatro).
[8] Alteração eventual na altura de uma nota no decorrer de uma música.
[9] Esses quartetos são as últimas composições de Beethoven, conjunto de peças consideradas as mais profundas e visionárias de sua obra, no qual se inclui a famosa “Grande fuga”, opus 133, que provocou furor no meio musical.
[10] Embora inusual, essa sonata não é a única em dois movimentos na obra de Beethoven.
Referências
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