
Revista Derivas Analíticas - Nº 22 - Março de 2025. ISSN:2526-2637
Música, som e ruído
Frederico Feu de Carvalho
Membro da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP)
e Associação Mundial de Psicanálise (AMP)
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- I -
É com a descrição do luto vivido pelo senhor da Sainte Colombe após a perda de sua esposa, na primavera de 1650, que se inicia o romance de Pascal Quignard, Todas as manhãs do mundo, publicado pela Editora Zain em 2023, com tradução de Yolanda Vilela. Muito pouco se sabe sobre a existência real de Sainte Colombe, mas suas composições para viola da gamba, instrumento que tocava com maestria e cuja técnica aperfeiçoou e ensinou, são conhecidas. Dentre os instrumentos da época, a viola da gamba se destacava por ser capaz de imitar com perfeição todas as inflexões da voz humana. Após a morte da esposa, Sainte Colombe teria se fechado em casa para se dedicar à música e à viola na companhia de suas duas filhas, também versadas no instrumento, com as quais se apresentava eventualmente em sua casa. Desde então, ele nunca mais tirou as roupas pretas.
Os concertos e improvisações a três violas dos Sainte Colombe não tardaram a ficar famosos e chegaram aos ouvidos do rei Luís XIV. Mas Sainte Colombe era um homem taciturno, às vezes colérico, que detestava a ruidosa Paris e tinha repulsa pelo mundo. Ele recusou o convite do rei para se apresentar na corte. Preferia se isolar na cabana que construíra nos jardins de sua modesta casa, onde se exercitava na viola, fora do alcance de todos os ouvidos.
A trama de Todas as manhãs do mundo se desenvolve em torno desse refúgio da música, o que faz da cabana de Sainte Colombe um lugar sagrado e apartado do ruído da cidade e das bajulações da corte. Ela é tensionada pela relação de Sainte Colombe com Marin Marais, que, ainda adolescente, se apresentou para ser seu aluno em um estado de grande desamparo. No entanto, após escutá-lo na viola, Sainte Colombe o recusou dizendo: “fazeis música, senhor. Mas não sois um músico”. Aceitou-o, entretanto, em um segundo momento: “Imaginais a que podem servir os sons quando não se trata mais de dançar nem de divertir os ouvidos do rei? [...] Acolho-vos por vossa dor, e não por vossa arte”.
Como, então, ensinar a música àquele que não é músico? Um passeio em Paris junto a Marais oferece a ocasião. Após ouvir em silêncio seus passos secos na neve e o assobio do vento contra seus rostos, Sainte Colombe diz ao aluno: “é assim que a melodia se destaca do baixo”. Mais tarde, no ateliê de um amigo: “escutai o som do pincel do sr. Baugin: aprendestes a técnica do arco”. Depois da sopa, ao escutarem duas mulheres a recitar: “eis como se articula a ênfase de uma frase. A música também é uma língua humana”. E, da mesma forma, ao escutar a urina quente derramando-se sobre a neve e derretendo seus cristais: “aprendestes a técnica do détaché dos ornamentos”.
Um dia, porém, Marin Marais se apresentou diante do rei e provocou a fúria de Sainte Colombe que, além de quebrar seu instrumento, o despediu de suas aulas. Desde então, só restou a Marais vir às escondidas até a cabana para escutar Sainte Colombe, ajudado por uma de suas filhas, Madeleine, com quem estava envolvido. Ela lhe disse que o pai havia composto as mais belas árias do mundo, mas sem permitir que ninguém mais as ouvisse. Após a morte de Madeleine, que não suportou a separação de seu amado, Marais passou anos à espreita, com os ouvidos colados à parede da cabana, a fim de escutar aquelas árias. Mas só havia silêncios.
Finalmente, numa noite de 1689, após tocar um tema melancólico, Marais ouviu Sainte Colombe dizer: “Não me dirijo senão a sombras. [...] Ah, se além de mim houvesse no mundo algum ser vivo que apreciasse a música! Conversaríamos! Eu a transmitiria a ele e poderia morrer descansado”. Marais então se apresentou, batendo à porta, como um homem que foge dos palácios e busca, na música, os lamentos e as lágrimas. Sainte Colombe se alegrou. Os dois beberam, comeram biscuits e tocaram por muitas horas as belas árias que, agora, Sainte Colombe lhe confiava. No diálogo que termina essa bela ficção, no qual busca-se expressar o que é a música e qual é a sua serventia, Sainte Colombe recusa sistematicamente todos os adjetivos, definições e utilidades mencionadas por Marais, até concordar com essa última formulação: “um pequeno manancial para aqueles que a linguagem abandonou. Para a sombra das crianças. Para as marteladas dos sapateiros. Para os estados que antecedem a infância. Quando não respirávamos. Quando estávamos sem luz”.
- II -
A oposição entre a música para o rei e aquela praticada dentro da cabana busca enfatizar o caráter sublime e introspectivo da música que se faz sem concessões, afastada dos ruídos do mundo e que emerge de um fundo de silêncio cerimonioso. Esse caráter cerimonioso se justifica pelo estado corporal que antecede a fluência musical. Exercitar-se com a viola da gamba, ou com qualquer outro instrumento, é apenas uma continuação, por outros meios, do que ressoa no corpo como voz. “Então o homem sente sua força se elevar ao longo da coluna vertebral. Seu sopro sonoro sobe por seus canais interiores, dilata seus pulmões, e faz vibrar seus ossos” (SCHNEIDER, 1960, p. 212 apud WISNIK, 1989, p. 35).
Podemos, aqui, esboçar uma analogia entre a travessia do umbral que dá acesso a uma sessão analítica e a entrada em uma sala de concertos. Em ambos os casos, é preciso deixar do lado de fora o ruído do mundo para que uma escuta minimamente orientada possa ter lugar, o que não se faz sem mobilizar o corpo.
Em uma sala de concertos, a escuta é estruturada pela execução da partitura; mas ela comporta a expectativa contingente da interpretação ou da improvisação. A regularidade das sessões analíticas e a série que ela comporta, de grão em grão, também funciona como um dispositivo para a contingência, para o acontecimento imprevisto que caracteriza a emergência em ato do inconsciente, seja através de um lapso, seja de um tropeço na fala ou da irrupção de um som. A emergência do inconsciente em ato, como um lapso no discurso, é comparável a uma pulsação sonora que comporta tensão e distensão: um disparo, uma certa duração e o retorno cíclico do repouso. Diferentemente de um ruído, o som que irrompe do inconsciente se caracteriza por sua implicação subjetiva. Nós o distinguimos devido ao seu impacto no corpo. Ele aponta para uma significação (Bedeutung) que não se dá a ler, que concerne ao impacto de um objeto que nos afeta sem que se possa dizê-lo, e para o qual não há partitura. Essa significação sem palavras vai de encontro à ilusão da linguagem que nos impele a tomar as formações do inconsciente pela via do sentido (Sinn), conforme a suposição que dele fazemos como um saber ancorado em uma escrita prévia.
Levando-se em conta algumas referências lacanianas, podemos distinguir, assim, o inconsciente discursivo, serial, estruturado como uma linguagem e endereçado à decifração interpretativa, do inconsciente real, granular e fora-do-sentido, como os sons disruptivos que eventualmente se produzem em nossos corpos, pura mostração, ali onde somos abandonados pela linguagem.[1] Mais do que um intercâmbio de palavras, a sessão analítica é um encontro de corpos, cada um sendo uma caixa de ressonâncias para os sons que o atravessam. O som é esse “objeto subjetivo” (WISNIK, 1989, p. 26) que precede a música, que vibra no corpo de forma pontual e minimalista, dissonante e percussiva, sem que se possa enlaçá-lo ao sentido discursivo.
- III –
A ficção de Todas as manhãs do mundo ocorre no contexto em que a música modal cede progressivamente lugar para a música tonal, deixando a catedral na direção da corte e do mundo, na passagem entre o regime feudal e o capitalismo. A publicação de O cravo bem temperado, de Bach, que podemos tomar como um marco da música tonal, só ocorrerá em 1722, dando início ao período clássico que vai do barroco ao romantismo, até esgotar-se na forma do atonalismo no começo do século XX.
O universo clássico da música se ergueu em torno das tonalidades, com sua ênfase na melodia e na harmonia, com a concomitante redução da pulsação à marcação do compasso que suporta e enquadra o ritmo. Como se expressa Wisnik (1989, p. 38), a inviolabilidade da partitura escrita, o horror ao erro, o uso exclusivo de instrumentos melódicos afinados, o silêncio exigido à plateia, tudo faz ouvir a música erudita tradicional como representação do drama sonoro das alturas melódico-harmônicas no interior de uma câmera de silêncio de onde o ruído está idealmente excluído.
Não por acaso, o esgotamento das possibilidades da música tonal que caracteriza a música contemporânea, e que foi impulsionado pelo atonalismo de Schoenberg, se dará no mesmo contexto do século XX que experimentou o fim das grandes narrativas. Gradativamente, a música contemporânea reincorpora o ruído à cena musical, que se torna concreta e eletroacústica, num processo de dessacralização e “ruidificação estética do mundo” (WISNIK, 1989, p. 43).
É esse contexto que nos permite reconhecer a existência de um objeto sonoro, em torno do qual gravita o recém lançado livro Fábulas para a escuta, de Rodolfo Caesar. Assim como o senhor de Sainte Colombe escutava a música nos sons mais corriqueiros e triviais, “o som, musical ou não, possui existência própria, como uma coisa, um objeto” (CAESAR, 2024, p. 91). Graças às novas tecnologias, o objeto sonoro pôde se separar de toda narratividade, “entreabrindo as portas para o conhecimento de um sentido cercado de mistério e obscuridade” (CAESAR, 2024, p. 126). Da mesma forma, fazer entrar o ruído em uma sessão analítica para além do umbral da porta é a condição para que a escuta analítica possa apreender o objeto sonoro em sua apresentação subjetiva, granular e singular.
É sob essa forma enigmática e subjetivamente endereçada que irrompe o intrigante estrondo que desperta a personagem Jessica, encenada por Tilda Swinton, no filme Memória, do cineasta tailandês Apichatpong Weerasethakul.[2] “É um som que não é uma música”, diz Jessica ao engenheiro de som postado diante de sua mesa de trabalho, uma imensa biblioteca que sintetiza as mais diversas sonoridades. “É como uma grande bola de concreto que cai em um poço de metal rodeado de água do mar [...]. É mais terra, um estrondo do coração da terra”, ela diz, após a escuta de uma primeira prova pinçada dessa biblioteca, antes de reconhecer a semelhança entre o som que a intriga e aquele de uma “batida em um corpo envolto em edredom com um taco de madeira”.
De onde emerge e a quem pertence esse som? Viria ele do próprio corpo? Ou o corpo é tão somente sua caixa de ressonância? O som emitido por uma araponga, que fere nossos ouvidos, ou o canto de um sapo que repercute em nossos corpos ao entrar por nossos ouvidos, ainda pertence à araponga e ao sapo? “Eu ouço um som”, diz Jessica. “Eu ouço um homem”, responde o nativo que ela encontra e que também se sente perturbado pela profusão dos sons que armazena em seu corpo.
Esse som do coração da terra, imemorial, de quando ainda não respirávamos e que só podemos alucinar, parece condensar, a exemplo do Big Bang, uma irrupção na aurora dos tempos da qual a música é apenas uma harmonização imperfeita. Talvez emane da garganta aberta de Irma, visão abissal vislumbrada por Freud (1900/1969) em seu sonho inaugural da psicanálise, de onde provém o sopro ruidoso que se decanta em música, laringe do mundo e cabana de todos os sons, dos mais enigmáticos e inarticulados às mais belas árias.
Referências
CAESAR, R. Fábulas para a escuta. Rio de Janeiro: Numa Editora, 2024.
FREUD, S. A interpretação dos sonhos – Capítulo II: Análise de um sonho modelo. In: Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, Vol. IV, 1969, p. 543-560. (Trabalho original publicado em 1900).
LACAN, J. Prefácio à edição inglesa do Seminário 11. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003, p. 567-569. (Trabalho original publicado em 1976).
MILLER, J.-A. El ultimíssimo Lacan. Buenos Aires: Paidós, 2014.
QUIGNARD, P. Todas as manhãs do mundo. Tradução Yolanda Vilela. Belo Horizonte: Zain, 2023.
SCHNEIDER, M. Le rôle de la musique dans la mythologie et les rites des civilisations non européennes. In: ROLAND-MANUEL. (Org.). Histoire de la musique. Paris: Gallimard, 1960.
WISNIK, J. M. O som e o sentido. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
[1] A distinção entre o inconsciente discursivo ou transferencial e o inconsciente real foi proposta por J.-A. Miller (2014) em seu comentário ao “Prefácio à edição inglesa do Seminário 11”, de J. Lacan (1976/2003).
[2] O filme Memória é uma produção de 2021 ganhadora do Prêmio do Júri em Cannes e está disponível na plataforma MUBI, conforme acesso em janeiro de 2025.