
Chelpa Ferro e o desejo de fazer um som
Equipe Derivas Analíticas
Um coletivo sonoro: é esta a definição que, na falta de expressão melhor, mais se aproxima do Chelpa Ferro, como indicam seus integrantes (CHELPA et al, 2024, p. 45).[1] Formado em 1995, no Rio de Janeiro, pelo escultor Barrão (Rio de Janeiro, 1959), pelo pintor Luiz Zerbini (São Paulo, 1959) e pelo montador de cinema Sergio Mekler (Rio de Janeiro, 1963), o grupo tem origem no desejo em comum pela música. Numa entrevista recente, ao responder a uma pergunta sobre como tudo começou, Barrão (CHELPA et al, 2024, p. 13) diz que “no início foi basicamente a vontade de fazer música. Fazer um som. Então, resolvemos montar uma banda”. E basta uma experiência com o trabalho do grupo para perceber que esse “fazer um som” tem uma materialidade muito particular: trata-se de esculpir um som, dar ao sonoro uma forma tridimensional, palpável. Ou, por outro lado, trata-se também de extrair da dimensão imagética uma sonoridade. O Chelpa Ferro faz uma obra com múltiplas camadas sensoriais, que provoca outros sentidos para além da audição e tem uma correlação profunda e insólita com o campo das imagens.
Sem qualquer formação musical, mas com uma forte ligação com a música, os três amigos já tinham reconhecidas trajetórias artísticas individuais quando se juntaram numa empreitada corajosa. Um convite irrecusável do poeta Chacal é a oportunidade para um show no CEP 20.000 – Centro de Experimentação Poética, evento criado no Rio de Janeiro, em 1990, com o propósito de reunir artistas, poetas, músicos e o público, que acontece até hoje. O nome Chelpa Ferro foi escolhido poucas horas antes dessa apresentação, a partir de uma lista de palavras sinônimas de “dinheiro”, escritas à mão. Barrão (CHELPA et al, 2024, p. 43) conta essa história:
No dicionário uma frase para explicar o significado chelpa dizia “pobre coitado, chegou aqui sem chelpa, sem nada”. Ferro era outro sinônimo. E no papel em que eu tinha anotado, estava assim, na linha de cima, chelpa e na linha de baixo, ferro. Eu olhei e gostei da sonoridade. O fato do significado de Chelpa Ferro ser dinheiro era engraçado porque o projeto não tinha a menor relação com grana.
Depois desse primeiro show, ao longo de três décadas o coletivo grava seis álbuns, faz performances e instalações em galerias e espaços culturais diversos, viaja pelo Brasil e pelo mundo para participar de festivais de arte sonora e mesmo de importantes eventos internacionais de arte contemporânea, como a Bienal de São Paulo e a Bienal de Veneza. Realizando o encontro inusitado de elementos sonoros com esculturas e objetos de uso cotidiano, explora a fronteira entre a arte sonora e a visual, em que os ruídos e a música, principalmente a eletrônica, se misturam com os objetos visuais, esculpindo uma obra em que a dimensão do som se soma ao espaço tridimensional. Suas apresentações ao vivo se caracterizam pelo improviso e pela interação com a plateia, proporcionando experiências sinestésicas, carregadas de estranhamento e surpresa diante da experimentação musical e da ressignificação de objetos.
O pesquisador e crítico de arte Moacir dos Anjos (2008, p. 43) lembra que, embora incontornável, a “dimensão sônica do mundo recente” não foi “incorporada, de maneira plena, no arcabouço simbólico que o campo das artes produziu em mais de um século de ruído intenso”. De acordo com ele, a trajetória do Chelpa Ferro é uma busca constante de ouvir o barulho que o mundo faz. E esse projeto está radicalmente relacionado ao coletivo, ao que se produz a partir do encontro. Esse autor chama a atenção para as singularidades dos trabalhos que os três artistas realizam e que convergem na produção do grupo: Barrão constrói objetos com sobras, cacos, partes de coisas que já existem; Zerbini cria pinturas “aproximando a representação de alguma coisa à criação do que não havia ainda” (ANJOS, 2008, p. 46); já Mekler faz edição e montagem de imagens em filmes de forma absolutamente singular. Para dos Anjos (2008, p. 47), essas obras muito distintas umas das outras têm em comum o interesse pelo impreciso e pelo transitório, característica que talvez melhor defina o trabalho do grupo, com “sons e imagens que conformam a experiência urbana do mundo atual”.
Ao comentar sobre sua relação com a música, Zerbini transmite também a particularidade do fazer musical coletivo do Chelpa Ferro e sua maneira de tratar o barulho do mundo, muitas vezes sem sentido:
Eu não sou músico, também não sei tocar, mas nunca deixei de tocar, sabe? Eu tinha um piano na minha casa que eu tocava direto mesmo sem saber. Eu não sabia tocar música de ninguém, não podia reproduzir uma música de alguém. Mas eu sempre me sentava ao piano e ficava tocando muito, ficava horas tocando e pegava o violão e também tocava, tirava uns sons, batucava muito também, batuquei a vida toda. Se você for ver a maneira como o Chelpa funciona é muito em cima dessa incapacidade, de nossa impossibilidade de construir uma música que tenha começo, meio e fim. Achamos um jeito de ouvir o que o outro está fazendo e nos relacionar, seguir um caminho até chegar num lugar onde algo acontece, em alguns momentos, rola uma coisa que é incrível, que dá uma emoção que logo depois desaparece se desmancha, dilui, se desfaz e fica um barulho desconexo, sei lá, meio sem sentido até. Às vezes demora para dar certo, mas quando dá, é demais. (CHELPA et al, 2024, p. 16)
O Chelpa Ferro completa agora 30 anos de seu tratamento do barulho do mundo. Nesta edição, imersa no universo das sonoridades, Derivas Analíticas traz uma pequena amostra de imagens de instalações e convida os leitores a conhecer mais sobre essa obra extraordinária.
Referências
ANJOS, M. dos. O barulho do mundo. In: ArteBRA Crítica: Moacir dos Anjos. Rio de Janeiro: Automatica, 2008. p. 43-60. Disponível em: https://www.colecaoartebra.com/_files/ugd/6e80d1_0c21713e685d4814b1f5fb45e5e62f10.pdf. Acesso em: 01 mar. 2025.
CHELPA Ferro et al. Máquinas de desejo e risco aparecem e se dissipam: entrevista com Chelpa Ferro. Arte & Ensaios, Rio de Janeiro, PPGAV-UFRJ, v. 30 n. 48, p. 12-47, jul.-dez. 2024. Disponível em: http://revistas.ufrj.br/index.php/ae. Acesso em: 01 mar. 2025.
[1] Em entrevista realizada via Zoom, em 18 de novembro de 2014, e publicada em 2024 na revista Arte & Ensaios, do Programa de Pós-graduação em Artes Visuais da UFRJ.