• yolanda vilela21 2
  • banner O passe entre as línguas 21 22222
  • banner entrevista com Angelina Harari
  • banner Sobre a Penisneid
  • banner A linguagem do meu inconsciente
  • banner Encontros e desencontros
  • notasfinasbf21
  • galindo 21 2
  • Home
  • Notas que tecem silêncio

logoder Revista Derivas Analíticas - Nº 22 - Março de 2025. ISSN:2526-2637

 

Notas que tecem silêncio: uma resenha de Silêncio, de John Cage 

Heloisa Caldas
Psicanalista

Analista Membro da Escola (AME),
membro da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP)
e Associação Mundial de Psicanálise (AMP)
E-mail:O endereço de e-mail address está sendo protegido de spambots. Você precisa ativar o JavaScript enabled para vê-lo.

Silêncio, de John Cage (2019), é uma coletânea de conferências e escritos do musicista, que tanto promoveu, desde os meados do século XX, uma revolução criativa no campo da arte musical, tanto quanto ao material sonoro que convencionamos chamar de notas musicais, como quanto à forma inédita com que ele usa a fala e a escrita.

Não apenas a sonoridade está em questão, mas a experiência humana em torno da qual algo de intransmissível alcança, performaticamente, uma forma de transmissão. É preciso ler o livro para experienciar sua leitura êxtima às estruturas rotineiras de uma escrita. São conferências sobre o nada, sobre algo, impressão gráfica descolada das normas da escrita que, através da leitura, evocam a força presente, viva e oral, da voz do artista.

A arte de Cage, conferencista e escritor, impacta o leitor pela forma com que ele traz seu saber-fazer artístico evocando sua arte musical. Seu saber se afasta das rotinas dos sentidos de linguagem compartilhados no campo do Outro e promove uma demonstração performática de que a música, a que poderia ser estruturada, também pode transbordar toda e qualquer estrutura. O que está em jogo é o que flui da voz, escapando ao sentido comum, como um índice de gozo enigmático que acontece no corpo.

Como esta resenha dirige-se ao campo da psicanálise lacaniana, somos levados a pensar que, como Lacan (1957/1998, p. 868) ultrapassou sua proposta inicial de que “o inconsciente é estruturado como uma linguagem” para a de que “o inconsciente é um saber-fazer com alíngua” (LACAN, 1972-73/1985, p. 190), John Cage, seu contemporâneo, também ultrapassa a clássica ideia da musicalidade estruturada para apontar que a musicalidade pode acontecer desde que se tome qualquer som como música.

Mas e o silêncio? Como abordar o termo que nomeia um volume de tantas falas, conferências e escritos colecionados?

Pelo que se pode depreender de Cage com Lacan, o silêncio não é exatamente a ausência da sonoridade que anteciparia a presença de um som. É preciso escutar o silêncio em Cage como Lacan (1964/1988, p. 30-31), ao assinalar que se trata de uma anterioridade lógica, tanto no tempo, quanto no espaço, quando diz que:

 o um que é introduzido pela experiência do inconsciente é o um da fenda, do traço, da ruptura. Aqui brota o um, o do Unbewusste[1]. Digamos que o limite do Unbewusste é o Unbegriff [2]– não o não conceito, mas o conceito da falta. Onde está o fundo? Será a ausência? Não. A ruptura, a fenda, o traço da abertura fazem surgir a ausência – como o grito não se perfila sobre o fundo de silêncio, mas ao contrário, o faz surgir como silêncio.

Da mesma forma, Cage toma o som pelo que perturba, como ruído e/ou restos, mas que, ao ser ouvido, pode ser fascinante. Talvez aqui possamos distinguir um pouco o ouvir do escutar. Duas colocações de Lacan fazem eco a isso que Cage nos aponta como uma postura aberta à escuta. A primeira, quando Lacan aponta a “que se diga resta esquecido por trás do que se diz no que se ouve” (LACAN, 1972/2003, p. 448), e a segunda, ao afirmar que “as pulsões são, no corpo, o eco do fato de que há um dizer” (LACAN, 1975-76/2007, p. 18).

Sejam ruídos, sejam notas musicais, o objeto vocal importa pelo fato de que toca o corpo, o que pode levar a evitá-lo, mas o que também permite escutá-lo. Como Cage (2019, p. 8) nos diz: “Não há tal coisa como um espaço vazio ou um tempo vazio. Há sempre algo para ver, algo para ouvir. Na verdade, por mais que se tente fazer silêncio, não conseguimos”.

Isso evoca que é em meio à babel de falas do campo do Outro que a criança recolhe peças soltas, as que lhe tocam o corpo, escutadas como lalíngua e, frequentemente, esquecidas para melhor se familiarizar com a linguagem convencional do campo do Outro. Peças que retornam no turbilhão de afetos cada vez que um significante qualquer evoca a química gozosa de lalíngua justo no ponto em que a voz entrou, primordialmente, em coalescência com uma experiência de gozo fora do sentido.

Isso comparece, a meu ver, quando Cage (2019, p. 10) comenta que “precisamos começar a descobrir meios de deixar os sons serem eles mesmos, em vez de veículos para teorias ou expressões de sentimentos humanos”. O que se associa ao princípio freudiano de uma escuta... aqui musical... flutuante.

Da mesma forma, ele demonstra, em suas performances, que a repetição pode ser infernal, evocando aquilo a que Freud visava, ao se deixar escutar sem juízos prévios, para recolher de tantas falas a monotonia do retorno do recalcado, cuja causa é uma experiência gozosa.

Cage também nos diz que a poesia não está colada ao sentido, mas à musicalidade dos ditos. Ou seja, ele navega pela equivocidade do material sonoro e fonológico apontando ao real de um dizer. Uma lição que sua Arte nos oferece para dirigir a escuta analítica na via do “que se diga...”.

Referências 

CAGE, J. Silêncio: Conferências e escritos de John Cage. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.

LACAN, J. O Seminário, livro 20: Mais, ainda. Tradução de M. D. Magno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985. (Trabalho original proferido em 1972-73).

LACAN, J. O Seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller; tradução de M. D. Magno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1988. (Trabalho original proferido em 1964).

LACAN, J. A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud. In: Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998, p. 496-533. (Trabalho original publicado em 1957).

LACAN, J. O aturdito. In: Outros Escritos. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003, p. 448-500. (Trabalho original proferido em 1972).

LACAN, J. O Seminário, livro 23: O sinthoma. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller; tradução de Sérgio Laia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. (Trabalho original proferido em 1975-76).

[1] “Inconsciente”.

[2] “In-conceito”.

Imprimir E-mail