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Paulo Siqueira

Machado de Assis, autor brasileiro do século XIX, escreveu em 1882 um conto intitulado O espelho, cujo subtítulo é: Esboço de uma nova teoria da alma humana.[1] Essa teoria precede, portanto, de alguns anos, aquela sustentada por Freud em 1895, no seu célebre Projeto para uma psicologia científica.

O texto brasileiro não tem certamente as mesmas intenções de Freud, já que se trata de uma ficção. Mas a teoria da alma sustentada nessa narrativa não deixa de nos colocar na pista, não de Freud, quase contemporâneo do romancista brasileiro, mas da divisão do sujeito lacaniano pelo objeto olhar.

Primeiramente porque o procedimento escolhido pelo escritor para ilustrar a sua teoria sobre a alma humana consiste em ambientá-la num grupo de discussão composto como um cartel. Assim, ele começa seu conto com esta frase: “Quatro ou cinco senhores debatiam, uma noite, várias questões de alta transcendência [...]”. Algumas linhas mais adiante, o autor se explica: “Por que quatro ou cinco? Rigorosamente eram quatro os que falavam; mas, além deles, havia na sala um quinto personagem, calado, pensando, cochilando, cuja espórtula no debate não passava de um ou outro resmungo de aprovação”. Esse grupo é, então, constituído de quatro membros mais um!

Vemos, assim, esse cartel dar início a uma áspera discussão sobre a alma humana que, segundo o narrador, “divide radicalmente os quatro amigos”. Estes, constatando seu profundo desacordo, pedem ao mais-um que arbitre. Esse personagem, chamado Jacobina (ou seja, jacobino, no feminino), começa por sustentar uma teoria inesperada sobre a alma humana que, segundo ele, seria dupla. Mas a alma, para nosso personagem, não é somente dupla; ela é também o efeito de dois olhares: um que nos olha de dentro, e outro que nos olha de fora! Essa alma exterior, a mais surpreendente nessa teoria psicológica, é, de fato, outro olhar que nos olha e pode, segundo o autor, se encarnar “num espírito, num homem, em muitos homens, num objeto”. O autor dessa teoria não faz uma demonstração abstrata. Ele escolhe expor, para sustentar sua tese de uma alma dupla, o que se pode chamar de um caso clínico: o seu próprio.

I - O conto

Eis o que ele conta.

Aos vinte e cinco anos, ele acabava de ser nomeado alferes da Guarda Nacional. Essa promoção o deixava satisfeito tanto mais que ela correspondia aos votos mais profundos de sua mãe, que, toda a sua vida, tinha sonhado com uma bela carreira militar para seu filho. Sua família não parava de comemorar o acontecimento, assim como os amigos, que cotizaram para presenteá-lo com um belo uniforme para seu novo posto. Nesse ínterim, uma tia, viúva de um militar, que morava numa fazenda longínqua, convida nosso alferes para passar férias com ela e os seus próximos, pedindo-lhe que trouxesse com ele a bela farda que ela queria tanto admirar. Chegando à fazenda, o jovem militar é recebido com todas as honras. Ele é adulado, admirado e, a tia, assim como todos os membros da família e os escravos da casa, só se dirigiam ao jovem chamando-o de “meu alferes”. No começo, nosso personagem recusa esse tratamento especial, ele queria continuar a ser chamado como antes, pelo seu apelido: “Joãozinho”. Mas nada pôde mudar a vontade da tia de honrar o novo título do sobrinho.

O cúmulo da homenagem feita a Joãozinho pela dona da casa foi colocar, no quarto do hóspede, o objeto mais rico da família, o único tesouro do patrimônio familiar: um belo espelho antigo que, até então, imperava na sala da casa grande. Esse objeto “agalmático” era, aliás, uma herança familiar que havia passado através das gerações sucessivas de mulheres da família desde que uma ancestral o adquirira de um membro da corte portuguesa, exilada no Brasil no começo do século XIX. (Para fugir de Napoleão, o rei de Portugal e toda a sua corte haviam se refugiado no Brasil).

Durante toda a estadia de Joãozinho nessa fazenda, as coisas evoluíram de tal modo que, conforme conta nosso personagem, “o alferes eliminou o homem”. Ao seu modo, ele diz que a identificação ao significante mestre “alferes” se sobrepôs ao apelido pelo qual ele se fazia nomear e reconhecer na família. Em outras palavras, o sujeito se reduziu ao significante mestre ideal, ali onde o olhar do Outro o colocou como admirável.

II - O ponto de angústia

Considerando o esquema ótico simplificado que Lacan apresentou em seu seminário A angústia,[2] temos o seguinte:

Uma vez identificado ao significante ideal, localizado aqui no campo do Outro, o sujeito se apaga. Eu o assinalo com o símbolo S barrado. Desse modo, pode-se traduzir a frase do personagem: “o alferes eliminou o homem” como a entrada do sujeito no discurso do mestre, que implica efetivamente em seu apagamento enquanto sujeito.

Aliás, o personagem diz com todas as letras que ele se encontra tomado pela alienação ao Outro ao concluir: “no fim de três semanas, eu era outro, totalmente outro”.

A sequência do conto nos informa que, uma vez passadas as três primeiras semanas, um acontecimento vai desalojar nosso personagem do lugar privilegiado em que os seus próximos o haviam colocado. Sua tia e seus familiares são obrigados a deixar Joãozinho para ir encontrar, numa fazenda vizinha, uma jovem que estava à beira da morte. O alferes fica, então, sozinho na casa, em companhia apenas dos escravos. A partir desse momento, ele é tomado por uma sensação de opressão, acompanhada da ideia de que o que ele chama sua “alma exterior” está reduzida às quatro paredes de uma cela de prisão; na ausência de todos esses familiares que o olhavam sempre com todos os signos da admiração, sua importância se reduz a seus próprios olhos. Mas lhe restavam os escravos, que redobraram a solicitude e a bajulação. Esse consolo teve, no entanto, curta duração, porque os escravos, aproveitando da ausência dos senhores, fugiram no dia seguinte, deixando nosso Joãozinho somente na companhia dos animais abandonados da fazenda.

Desde então tudo vacila para Joãozinho, que começa a ter as mais inquietantes sensações: “Era como um defunto andando, um sonâmbulo, um boneco mecânico”, diz. E ele se pôs então a sonhar. Em seus sonhos, vestido de alferes, ele desfilava diante de sua família, de seus amigos e seus semelhantes. Além disso, anunciavam-lhe, ainda no sonho, uma promoção a um posto ainda mais elevado: um já o via como tenente, outro, como capitão e, um terceiro, como comandante. Mas uma vez acordado, sua inquietude só aumentava. Foi durante um despertar, de manhã, que ele se deu conta de uma coisa singular: desde que se encontrou completamente só, Joãozinho havia evitado, por uma espécie de “impulso inconsciente” (são seus próprios termos), se olhar no belo espelho de seu quarto. E ele se pergunta por quê. A resposta lhe vem automaticamente: por “receio de achar-me um e dois, ao mesmo tempo”! Ele ainda precisou de oito dias de solidão para decidir, finalmente, se olhar no espelho “com o fim de achar-me dois”, diz ele textualmente. Em outras palavras, Joãozinho ousa, enfim, se olhar como sujeito dividido, ele entra no discurso histérico:

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Porém, no espelho, ele não encontra mais sua imagem, mas algo difuso, a sombra de uma sombra, uma silhueta sem contorno, decomposta. Ele se torna, assim, o que não tem imagem especular: pequeno a. Joãozinho se prepara para fugir, tomado pelo pânico, temendo enlouquecer, quando encontra, finalmente, a solução para sua inquietante estranheza do momento: ele veste sua farda de alferes e, uma vez com o uniforme militar, vai novamente se olhar no espelho. E aí, tranquilizado, Joãozinho reencontra sua imagem completa e integral de antes, “sem nenhuma linha de menos”, diz. E acrescenta em seguida: “era eu mesmo, o alferes, que achava, enfim, a alma exterior. Essa alma, ausente com a dona do sítio, dispersa e fugida com os escravos, ei-la novamente recolhida no espelho”.

Em outras palavras, Joãozinho faz um retorno forçado ao ponto de início: o discurso do mestre. Ele reencontra, sob a forma da insígnia militar, o significante mestre que lhe dá um lugar seguro no campo do Outro. É sempre a insígnia de seu ideal do eu, esse ponto de alienação do qual não pode se livrar. Ele não pode dispensá-lo, sob pena de cair na angústia que, como nos mostra o conto, não é sem objeto. Mas esse objeto não ex-siste no espelho.

 

Tradução: Maria Bernadete de Carvalho
Revisão: Yolanda Vilela

Derivas analíticas agradece a Paulo Siqueira pela amável autorização de tradução e publicação deste artigo, publicado originalmente na revista La Cause Freudienne n. 30: Images indélébiles, de 1995.

Notas

[1] MACHADO DE ASSIS. O espelho. In: ______. Obras completas, v. II. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1992. p. 345.

[2] LACAN, J. O seminário, livro 10, a angústia (1962-1963). Rio de Janeiro: Zahar, 2005. (Lição de 19 dez. 1962).

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