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 Revista Derivas Analíticas - Nº 19 - Agosto de 2023. ISSN:2526-2637


Por que Antônio Conselheiro foi parar na história e não no hospício?

Miguel Antunes
Psicanalista
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Por isto o infeliz, destinado à solicitude dos médicos, veio, impelido por uma potência superior, bater de encontro a uma civilização, indo para a história como poderia ter ido para o hospício. Porque ele para o historiador não foi um desequilibrado. Apareceu como integração de caracteres diferenciais – vagos, indecisos, mal percebidos quando dispersos na multidão, mas enérgicos e definidos, quando resumidos numa individualidade.
(CUNHA, 2015, p. 152-153)

Antônio Conselheiro, sertanejo que viveu no final do século XIX, inventou uma maneira radicalmente singular de amarração. Lendo a afirmação de Euclides da Cunha (2015) no livro Os sertões, nos perguntamos: por que ele foi parar na história e não no hospício?    

Nascido em março de 1830, na cidade de Quixeramobim, faleceu em setembro de 1897, aos 67 anos de idade. Teve uma infância em um cenário de completa anomia. Em 1855, já adulto, perdeu o pai. Casou-se no ano seguinte, após zelar abnegadamente por suas irmãs solteiras, e morou em várias cidades, trabalhando em diversos ofícios, até se tornar vendedor ambulante.

Em 1861, ocorreu-lhe o primeiro revés. Após ter sido traído por sua esposa, sai sem rumo certo, em “ímpeto de alucinado” (CUNHA, 2015, p. 164) e acaba por ferir um parente. Conseguiu se livrar da prisão depois de prestar um breve depoimento aos policiais e sumiu. Ficou desaparecido por 10 anos: “o moço infeliz de Quixeramobim ficou de todo esquecido [...] morrera, por assim dizer” (CUNHA, 2015, p. 165).

Foi somente quando já contava com mais de 40 anos de idade que sua passagem pelo sertão mudou de modo radical. De alpargatas e uma longa túnica azul, com livros religiosos, cabelos e barbas longos, ficou conhecido por ser um beato “enviado de Deus” (BENÍCIO, 1997, p. 41). Tinha duas missões: encaminhar os sertanejos rumo a salvação eterna e construir vinte e cinco igrejas. Tudo fez nessa vida para que pudesse conclui-las (CALASANS, 1991). Por ser tão conhecido, respeitado e já ter alguns seguidores, ia se tornando uma autoridade por onde passava. Aparecera, inclusive, nos jornais da época (CALASANS, 1974).

Portava a alcunha de “Santo” e acabou acusado de modo infundado de ser o assassino de sua esposa. Por tal razão, foi preso no Ceará, mas absolvido. Em consequência da prisão, mais um fato de fundamental importância acontece com Antônio Conselheiro. Ao ser conduzido de volta, fora brutalmente espancado pelos policiais, mas, tal como Joyce (ANTUNES, 2019), “quedou na tranquila indiferença de um estóico” (CUNHA, 2015, p. 170). Durante sua história de peregrinação, órgãos públicos ou mesmo pessoas influentes chegaram a solicitar que lhe fosse restringida a circulação. Em um dos casos, a Diocese da Bahia, preocupada com o alcance do Conselheiro em tocar o coração dos fiéis, emitiu uma circular proibindo suas prédicas, pedindo intervenção do governo. Como não havia crime, nenhum movimento foi realizado. Pouco depois, foi feita nova solicitação ao presidente da província pedindo providências para conter Antônio Conselheiro. A alegação sustentava que ele pregava “doutrinas subversivas, fazia um grande mal à religião e ao estado, distraindo o povo de suas obrigações e arrastando-o após si, procurando convencer de que era o Espírito Santo” (CUNHA, 2015, p. 179). Chegam a solicitar vaga para o “tresloucado” em asilo para alienados, mas recebem a resposta de que de que não havia nenhuma disponível.

Quanto mais seguidores ele conquistava, mais tentavam impedir sua deambulação, e, assim, alguns embates aconteciam, inicialmente com pouca mudança de rota em sua vida de peregrinação. Porém, com a Proclamação da República, a feição de Antônio Conselheiro mudou e verificou-se uma importante alteração em seu funcionamento. Em 1893, tornou-se um combatente. O discurso religioso ganha uma pauta política, pois, ao contrário da Monarquia, a República trazia a cobrança de impostos, além da separação entre Igreja e Estado, o que era considerado por ele como grave e imperdoável. Pregou abertamente contra a República, estimulando os seus seguidores que se insurgissem, o que gerou um grande embate.

Após mais esse incidente com as autoridades locais, em que os conselheiristas venceram, Antônio Conselheiro “endireitou, rumo firme, em cheio para o norte. Os crentes acompanharam-no. Não inquiriam para onde seguiam” (CUNHA, 2015, p. 184). Caminhando pelo sertão, na marcha cadenciada do profeta, e pelo toar das ladainhas, chegaram a Canudos, imediatamente batizada como Belo Monte.

Com a Proclamação da República, Conselheiro se fez um combatente perante a sensação ameaçadora causada pela República. Uma solução frente a tal ameaça foi a fundação de Canudos no ano de 1893, da qual foi líder inconteste de sua legião de seguidores até sua queda, em 1897.

Canudos, ou Belo Monte, poderia ter tido para os seguidores de Antônio Conselheiro a função daquilo que Lacan (1957-58/1998) vai chamar de uma “ilhota”. Entretanto, isso não foi possível, devido à guerra desproporcional disparada por um “incidente desvalioso” (CUNHA, 2015, p. 225): em 1895, Antônio Conselheiro comprou madeiras para a construção das casas em Canudos e, diante do atraso da entrega, os conselheiristas decidiram sair para buscá-las. Como havia um relatório elaborado por um frei italiano em desfavor dos conselheiristas, os mal-entendidos começaram a circular resultando em movimentação das autoridades que convocaram uma tropa, por entenderem que se tratava de uma ameaça. Um grande contingente policial estava à espera de Conselheiro e seu grupo.

Embora os sertanejos estivessem em maior número, eles consideravam que eram guiados pelo Divino e, em emissão de paz, apenas cantavam e rezavam. Mas os policiais se assustaram com a quantidade de sertanejos e um deles acabou atirando “acidentalmente”. Assim, iniciou-se o primeiro confronto que deu origem à Guerra de Canudos, que contou com quatro expedições do poder militar contra os “famigerados” seguidores de Antônio Conselheiro. O final dessa história é conhecido por muitos. E assim Cunha (2015, p. 579-80) o descreveu:

Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a História, resistiu até o esgotamento completo. Expugnado palmo a palmo, na precisão integral do termo, caiu dia 5, ao entardecer, quando caíram os seus últimos defensores, que todos morreram. Eram quatro apenas: um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente cinco mil soldados [...]. Caiu o arraial a dia 5. No dia 6 acabaram de o destruir desmanchando-lhe as casas, 5.200, cuidadosamente contadas.

Para Freud (1921/2011), o conceito essencial que diz sobre o que é capaz de enlaçar indivíduos diferentes é a libido. Ele acredita que é exatamente o amor o essencial da alma coletiva, afirmando que o que une e mantem unidos os componentes de uma massa não é outra coisa senão Eros. Mas, também, não se pode desconsiderar que é sobre a ilusão de serem amados por seu mestre, de maneira igual, que a vida em grupo se sustenta. Baseada na distribuição do amor, a causa coletiva é compartilhada e reúne, assim, todos do grupo, mas tendo um indivíduo em destaque, o que propicia o efeito especular (CERVELATTI, 2010).

Freud (1921/2011, p. 24) indica que o simples fato de um indivíduo pertencer a uma massa, faz com que ele desça “vários degraus na escala da civilização”, pois individualmente ele se mostra responsável e menos afetado pela sugestionabilidade, mas, inserido na massa, a agressividade pode se apresentar de forma a causar barbaridades.

Os seguidores do Conselheiro eram, em sua massacrante maioria, miseráveis e maltrapilhos que viviam no sertão, habituados aos reveses da vida e à seca, que naquela época durou por 10 anos, causando danos incomensuráveis. Não por acaso, foi no período de maior desesperança dos povos nordestinos que a imagem de Antônio Conselheiro foi elevada ao estatuto daquele que mostrará o caminho da salvação.      

É justamente a falência da crença no Outro simbólico que propicia a aparição de um Messias, e, valendo-se desta relação imediata que os sertanejos mantêm com a terra e com a religião, acabam arrastando populações inteiras através de seus discursos religiosos, mantendo-os na “condição inferior de pupilo estúpido da divindade” (CUNHA, 2015, p. 145). Foi nesse cenário que “a multidão o aclamava representante natural das suas aspirações mais altas. Não foi, por isto, além. Não deslizou para a demência” (CUNHA, 2015, p. 153), o seu meio o amparou.

Essa passagem de Cunha (2015), que aponta como o meio em que viveu Antônio Conselheiro foi acolhedor para ele, nos ajuda a entender uma das razões pelas quais pôde ascender em seu delírio, não lhe sendo amputada a vida, como aos internos de manicômios.

Antônio Conselheiro peregrinou pelo sertão por mais de 30 anos. Lacan faz referência à estrada principal, indicando tal expressão como remetendo a “algo que existe em si e que é reconhecido imediatamente [...] uma via de comunicação” (LACAN, 1955-56/2002, p. 327) que tem como função presentificar a realidade original e é imediatamente reconhecida, não somente como uma indicação de caminho, mas, principalmente, como marco na história de cada um.

O que acontece quando tal estrada principal falta a alguém? Será necessário, para se deslocar de um ponto a outro, acrescentar balizamentos, criando pequenos caminhos. E Lacan (1955-56/2002, p. 330-31) continua:

Eles seguem os letreiros postos na beira da estrada. Isso quer dizer que, ali onde o significante não funciona, isso me põe a falar sozinho à beira da estrada principal. Ali onde não há estrada, as palavras escritas aparecem nos letreiros. Talvez seja isso a função das alucinações auditivas verbais de nossas alucinações – são os letreiros à beira de seu pequeno caminho.

Tal citação parece esclarecer o funcionamento de Antônio Conselheiro, uma vez que podemos pensar que a sua missão de construir e reformar igrejas pelo sertão o orientava em seus pequenos caminhos, fazendo a função das placas e letreiros. Antônio Conselheiro deambulava pelo sertão, sem se fixar, apenas indo, obstinado em sua missão, errante na encruzilhada (LACAN, 1955-56/2002).

Lacan (1973-74) recorre à etimologia de errar, resultado da convergência do verbo errar com o iterare, de prefixo iter, que remete à jornada, viagem. Errar vem de iterare, que tem relação com repetir. Podemos dizer que o que iterava em Antônio Conselheiro era seu ato de deambular, peregrinar.

Não só de deambulações viveu Antônio Conselheiro. Ele se fixou em Canudos. Nossa leitura é que sua amarração se constituiu, além de sua missão, também pelo trabalho com as prédicas, via escrita e oratória/oração, o que nos leva a aproximá-lo de Joyce, mais uma vez, quando Lacan (1975-76/2007, p. 86) se pergunta se “seu desejo de ser um artista que fosse assunto de todo o mundo” – a ideia, portando, de ser O Redentor – não compensaria a falta da função paterna.

Além de seus dois livros publicados, Conselheiro era um exímio orador (ANTUNES, 2019). Isso nos leva a perguntar se a escrita e oratória/oração puderam dar sustentação ao seu corpo e ao seu pensamento, pois “uma escrita é, portanto, um fazer que dá suporte ao pensamento” (LACAN, 1975-76/2007, p. 140), favorecendo a amarração e auxiliando a ideia de si como corpo (MANDIL, 2008). Também podemos nos questionar se a oratória fez suplência à função fônica do falo, aquela que dá sustentação ao corpo (ALVARENGA, 2022). A referida função nos remete ao termo “escabelo”, utilizado por Miller (2016).          

O escabelo é onde o falasser sobe para se fazer e se crer um senhor belo, “é seu pedestal, que lhe permite elevar a si mesmo à dignidade da Coisa” (MILLER, 2016, p. 27). Sobre o que fomentaria o escabelo, Miller (2016, p. 28) responde: “esse gozo da fala origina os grandes ideais do Bem, do Verdadeiro e do Belo”, e é por essa via que as culturas não passam de um coletivo de escabelos em que cada um buscará, a seu modo “esticar o colarinho e se bancar o glorioso” (MILLER, 2016, p. 28).

Podemos concluir que Antônio Conselheiro foi parar na história e não no hospício não somente pela “feliz contingência” do meio em que ele viveu e que pôde lhe acolher, mas também pelo longo percurso de trabalho de sua psicose, que lhe possibilitou um destino diferente daqueles aos quais a loucura se alojou de modo mais agudo, impossibilitando uma amarração mais sustentável. Assim como Lacan fez com Joyce, podemos, então, nos perguntar: em que medida Antônio Conselheiro era louco?

Referências

ALVARENGA, E. O que a psicose nos ensina como política da psicanálise hoje? Correio – Revista da Escola Brasileira de Psicanálise, n. 87, p. 151-162, 2022.

ANTUNES, M. F. Da errância à localização do gozo: o percurso do encaminhamento do delírio em Antônio Conselheiro. Dissertação (Mestrado em Psicologia) - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Minas Gerais, 2019.

BENÍCIO, M. O Rei dos jagunços. Brasília: Senado Federal, 1997.

CALASANS, J. O Diário de Notícias e a Campanha de Canudos. 1974. Disponível em: <http://josecalasans.com/downloads/artigos/26.pdf>. Acesso em: 13 jun 2023.

CALASANS, J. Antonio Vicente no Ceará. 1991. Disponível em: <http://josecalasans.com/downloads/artigos/40.pdf>. Acesso em: 13 jun 2023.

CERVELATTI, C. Religião e delírio coletivo na perspectiva freudiana. In: BATISTA, M. do C. D.; LAIA, S. (Orgs.). Todo mundo delira. Belo Horizonte: Scriptum, 2010.

CUNHA, E. Os sertões. Rio de Janeiro: Record, 2015.

FREUD, S. Psicologia das massas e análise do Eu. In: Obras Incompletas de Sigmund Freud. Belo Horizonte: Autêntica, 2020. (Trabaho originalmente publicado em 1921).

LACAN, J. Le Séminaire, livre 21: Les non-dupes errent. 1973-1974. (Texto inédito).

LACAN, J. De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed, 1998. (Trabaho originalmente publicado em 1957-58).

LACAN, J. O seminário, livro 3: As psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002. (Trabalho original proferido em 1955-56).

LACAN, J. O Seminário, livro 23: O sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. (Trabalho original proferido em 1975-76).

MANDIL, R. James Joyce e a "ideia de si como corpo". In: Anais do XI Congresso Internacional da ABRALIC, 2008. Disponível em: <https://abralic.org.br/eventos/cong2008/AnaisOnline/simposios/pdf/005/RAM_MANDIL.pdf>. Acesso em: 14 jun. 2023.

MILLER, J.-A. O inconsciente e o corpo falante. In: Scilicet: o corpo falante – Sobre o inconsciente no século XXI. São Paulo: Escola Brasileira de Psicanálise, 2016.

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