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O bom uso do semblant

Helenice Saldanha de Castro


Autoritarismo não existe, sectarismo não existe, xenofobia não existe, fanatismo não existe. Bruxa fantasma bicho papão. O real resiste...
Arnaldo Antunes

Como sabemos, a expressão “pôr as cartas na mesa”, que tem origem nos jogos de baralho, faz referência ao momento em que os jogadores mostram aos parceiros as cartas que têm na mão, revelando assim o que definia até então as estratégias do jogo. Porém, na situação atual, na qual as cartas parecem extremamente embaralhadas e talvez não haja nem mesmo uma mesa onde se possa apoiá-las, como encontrar uma bússola que nos oriente dentro dessa espessa neblina que invadiu a cena nacional?

Refiro-me aqui a dois acontecimentos que no nosso país acabam por se articular, produzindo assim uma crise de dimensões incalculáveis, desvelando a dimensão mortífera da pulsão: a pandemia do novo coronavírus e a atual prática política do governo federal que só faz evidenciar a sua inimizade pelo gênero humano.

Vou me valer como ponto de partida do que recolhi de uma recente entrevista do artista plástico e escritor Nuno Ramos concedida a Guilherme Wisnik, “Brasil: dentro da câmera de mentiras”. Nuno Ramos acredita vivermos, simultaneamente à pandemia do Covid-19, uma crise política que incide no uso da linguagem como elemento público, crise que produz uma perda absoluta de limite, de contorno e de chão. Ao concordarmos com Nuno Ramos, nos perguntamos, considerando que a experiência analítica encontra sua estrutura na palavra e na linguagem: o que a Psicanálise tem a dizer sobre essa crise? A questão, portanto, que se desdobra dessa primeira, é como considerar o que se diz verdade ou mentira.

No final dos anos 1960, Lacan, para avançar na questão do uso da linguagem, introduz a categoria do semblant, que permitirá reler as três categorias já destacadas em seu ensino: o Imaginário, o Simbólico e o Real. Opera-se aí uma torsão na qual o semblant não se oporá à verdade, mas trará no seu bojo tanto a verdade quanto a mentira. Dá-se, então, um deslocamento da oposição entre semblant e verdade: o que se coloca agora é o real versus o semblant.

Nesse divórcio entre o semblant e o Real, o Simbólico é lançado à categoria de semblant tanto quanto a imagem. Segundo Jacques Alain Miller, em De la naturaleza de los semblants, de 2002, há no ensino de Lacan uma sequência que vai do Simbólico ao significante e do significante ao semblant, no que esse último inclui também o Imaginário. A categoria do semblant seria, no ensino de Lacan, uma escala no caminho do nó borromeano, para o qual há uma equivalência entre os três registros. A novidade, entretanto, é a introdução da equivalência entre o Simbólico e o Imaginário, que fará do parlêtre um ser de semblant.

Mas é preciso destacar também que, nessa sequência que vai do significante ao semblant, é o Real que acaba ganhando evidência, desbancando a verdade e, consequentemente, reposicionando o lugar da mentira. Se a dialética da verdade ordenou o início do ensino de Lacan, é exatamente a temporalidade em jogo na dialética que permitirá que se diga que o verdadeiro dialético não é uma verdade conclusiva. Relembremos que a dialética produz mudanças e transformações introduzidas pelo fator tempo. Se há uma verdade no tempo tn, haverá outra no tempo tn+1. A leitura feita do caso Dora, em “Intervenção sobre a transferência”, feita por Lacan, em 1951, é exemplar, pois se Dora chega se queixando a Freud de ser um objeto de troca entre seu pai e o Sr. K, Lacan demonstrará como essa verdade se transmuta, a partir da intervenção do analista, fazendo surgir a participação ativa da paciente na situação da qual ela se sentia vítima.

Portanto não há um Outro do Outro que emita a verdade final e derradeira, fazendo com que constatemos que é impossível dizer de forma definitiva o verdadeiro sobre o verdadeiro. Com a noção de semblant, a verdade mostra possuir sempre e simultaneamente uma face mentirosa, já que se trataria de um saber extraído no marco do impossível de dizê-la toda.

O uso da linguagem na experiência analítica está fundado nesse marco, ou seja, é o esforço de dizer o indizível que recolhe dessa fala tanto verdades mentirosas quanto faz existir o Real que salta ou mesmo cintila fora da cadeia significante. É, então, a partir da experiência da palavra que uma análise engendra o semblant e o Real, fazendo surgir, do que resiste a significantização, o Real como impossível.

Essas elaborações sobre o uso da linguagem para a Psicanálise evidenciarão também que não se pode dizer o que se quer, mesmo que haja liberdade para isso. A regra da associação livre, que faz pensar que tal liberdade seria irrestrita, acaba por demonstrar a quem se dispõe a passar pela experiência analítica que não é preciso que um Outro diga o que é falso ou verdadeiro, mas que o próprio exercício da fala vem colocar essa borda no que se diz. Se não há um Outro do Outro para dizer o que é verdade ou mentira, a experiência leva a constatar que há um impossível de dizer e que esse impossível presentifica que há ali um Real.

Insistamos um pouco mais nesse ponto. A Psicanálise trata do caso a caso, ou seja, o indivíduo que chega ao consultório do analista inevitavelmente passará a falar sobre seus impasses nos laços familiares e sociais, extraindo-os de seu contexto habitual. Ao submeter esses impasses à prova do significante, o que vemos surgir desse indivíduo é um sujeito dividido entre um significante e outro da cadeia. Esse deslocamento na cadeia que visa alcançar o significante derradeiro que possa nomear o ser do sujeito só faz evidenciar a falta desse significante último.

Por essa via, conclui-se que quanto mais se busca recobrir um impossível de dizer dizendo-o, mais se depara com esse indizível, que se circunscreve gradativamente como vazio de sentido. Ou que quanto mais se tenta absorver o Real pelas palavras, mais se constata que o Real, ao passar pela linguagem, está fadado a mentir. Logo, esse impossível de dizer toda a verdade e que força o sujeito a percorrer insistentemente a cadeia significante faz com que a Psicanálise tome o sujeito como uma resposta ao Real.

Desse ponto saltemos para a afirmação de Lacan, que, ao retomar em “O tempo lógico e a asserção da certeza antecipada” o Freud de “A psicologia das massas”, dirá que o coletivo não é nada mais do que o sujeito do individual. Introduzo aqui a noção de coletivo, pois, a partir dessa breve exposição sobre a categoria do semblant, parece-me possível retomar a questão colocada no início sobre uma crise da linguagem como elemento público.

O ser falante é também, por excelência, um ser social, e tomar o coletivo como o efeito sujeito do individual evidencia como o laço social para Lacan se dá também como resposta ao Real. Ao constatar que o social se funda nesse impossível e que a linguagem é a forma que o ser falante tem para lidar com o Real, proponho pensar três modalidades de relação com o semblant que acabam por definir algumas formas de laço social.

A primeira se sustentaria na posição que Lacan nomeou como a do não-tolo. Os não-tolos seriam os que, por conhecerem a natureza dos semblants, creem poder prescindir deles. Porém, como o ser falante está condenado à linguagem, acreditar não precisar se valer dos semblants é estar enganado de outra maneira. Para Jacques-Alain Miller, em De la naturaleza de los semblants, essa posição se mantém num ideal pré-científico, pois ao descartarem o uso dos semblants, denunciando que se trata apenas de significantes, acabam também descartando o Real que todo discurso engendra.

Aqui podemos nos perguntar se não haveria algo dessa posição de não se deixar enganar pelos semblants nas tendências autoritárias que se manifestam hoje no Brasil. Tal posição acabaria por, na crença de poder acessar a verdade como toda, fazer com que o Real retorne de forma nua e crua, acompanhado por isso de seus efeitos violentamente desagregadores.

Uma segunda modalidade seria aquela presente no discurso da ciência, que funciona a partir do paradigma de que há uma lei na natureza, que essa lei está escrita em linguagem matemática e que cabe à ciência decifrar esse real que retorna sempre ao mesmo lugar. Se o Real foi apresentado anteriormente como um impossível de suportar por não cessar de não se escrever, a ciência prometerá superar a angústia daí advinda pela apreensão do Real pelo Saber.

Nesse ponto, haveria algo em comum com a Psicanálise, pois ambas consideram que há um real que irrompe pelo impossível que se presentifica no desfuncionamento do mundo. Em seu artigo “O avesso da biopolítica e o vírus”, de 2020, Jésus Santiago nos lembra que, para Lacan, em “O triunfo da religião”, a diferença entre o mundo e o Real é a “diferença entre o que funciona e o que não funciona”, e “se o que funciona, caminha e gira em círculos é o mundo, o Real constitui-se como um obstáculo a esse funcionamento”.

Se o bom uso dos semblants é o que permite instalar um litoral em relação ao Real, Jésus Santiago, no mencionado texto, nos alerta para o fato de que, diante da disseminação letal do coronavírus, agora o protagonismo é dos cientistas. Respeitar os semblants da ciência é lidar com a pandemia do coronavírus escolhendo apostar numa realidade construída coletivamente que faz prevalecer o enlaçamento com a vida.

Interroguemos, por fim, o uso do semblant feito a partir da Psicanálise e o que esse uso repercute na forma de se fazer laço. Se tanto a ciência quanto a Psicanálise, a partir do desfuncionamento no mundo, se aproximam do Real, a distinção entre ambas é que onde para a ciência há saber no Real, para a Psicanálise, há gozo. Isso implica dizer que, para a Psicanálise, o acesso ao Real se dá por uma via singular que se instala a partir da incidência da língua sobre corpo, instalando ali a escritura de um gozo que foge à lei e ao sentido. Essa incidência do significante mortificará esse corpo, e esse significante sozinho, ao ser inserido na cadeia significante, enquadrará os efeitos de gozo dessa incidência numa trama semântica. Esse uso do semblant pela via do Outro discursivo visa tamponar o Real, para buscar dar ao sujeito uma ilusão de completude ontológica.

Porém, a experiência analítica, ao introduzir a dimensão não-toda da palavra que se evidencia pela equivocidade significante, faz furo nessa trama de sentido, descolando o saber como verdade e abrindo, consequentemente, para um uso do semblant advertido de sua condição de verdade mentirosa. Aquiescer com essa torsão que o equívoco introduz na forma de se lidar com a incidência da língua sobre o corpo faz com que se abra também para um assentimento com o sem sentido do gozo, não o segregando como um estranho familiar, não o escamoteando com identificações e nem mesmo o encarnando como dejeto no próximo.

Ao buscar saber fazer aí com a emergência contingente do Real um lugar mais digno ao gozo como impossível, pode se constituir o âmago singular de cada parlêtre. Surge, portanto, desse ponto, um paradoxo em relação ao laço social, já que para a Psicanálise esse laço se daria a partir da série de Uns sozinhos, como uma multiplicidade de relações entre sujeitos singulares. O ideal que o líder encarna para o restante do grupo que o segue, fazendo desse coletivo um grupo fechado de semelhantes em torno do Um da exceção, será então bastante distinto de um Social que se funda como uma série de exceções que as singularidades do gozo introduzem de heterogêneo.

Portanto, se para a Psicanálise não há laço social sem o uso dos semblants, ela não nos deixa esquecer que no seu cerne há um Real que resiste.

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