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Meus dias de branco

Marcus André Vieira

 

1.

Chego à sala de espera. Dois irmãos me aguardam. Haviam acabado de descobrir que tinham o mesmo analista. Para mim, apesar de até então não saber dessa coincidência, seguiram distintos e desiguais. Um me falava de seu irmão cachaceiro, o qual, em análise, nada tinha de ébrio. O outro contava de um irmão beato que, no entanto, só me falava de suas proezas sexuais. Cada um tinha seu irmão em histórias bem distintas e, para mim, incomparáveis. O que eu escutava de um sobre o seu irmão nada tinha a ver com o que este irmão dizia de si mesmo, apesar de ambos terem compartilhado boa parte de suas experiências de vida.

O romance familiar, comum aos dois, importa menos com relação à singularidade de cada um que as histórias que cada um conta sobre si mesmo; mas em que as histórias em análise seriam mais singulares apenas por serem narradas na primeira pessoa, quando tantas vezes fazem parte do estoque familiar, em grande medida comum? Não podemos apenas levantar a bandeira da singularidade se a deixamos nesse confortável modo vago, oposto, por exemplo, a tudo que diz a família sobre o sujeito. Não faríamos jus à complexa dialética entre o pessoal e o coletivo ou entre sujeito e Outro em nossos termos.

Prefiro, então, para delimitar a singularidade que nos interessa, analistas, me apoiar na tripartição valorizada por Lacan entre universal, particular e singular. Os currículos de cada irmão estão no campo do universal, disponíveis no LinkedIn, por exemplo. Já o botequim, para um, e a prática religiosa, para outro, provavelmente não. São suas particularidades. O que torna, porém, única cada uma das histórias, além dessas informações é a articulação desses dados em torno de alguns pontos cegos: o cheiro da cachaça de minas para um, por exemplo, o calor de uma sauna para outro.

São esses elementos de singularidade que contam em análise, pois, trazidos à cena, podem mudar o rumo de uma existência. São o mais perto que chegamos da vida sem nome que nos habita, são a borda de nossos mares obscuros e, por isso, investidos de sua força. Esses pontos cegos funcionam, usando a célebre metáfora de Freud, como “umbigos” do relato, centros de gravitação que costuram valores universais e vivências particulares àquilo que não há como dizer. O que constitui, então, o caráter único de uma história é o modo como nela se estruturam um tanto de fatos, no registro do universal, pequenos segredos particulares e, finalmente, esses estranhos “não sei quê” singulares.

2.

Chego à sala de espera e duas analisantes me aguardam. Apesar do mesmo tom de pele, ouvindo-as, uma após a outra, tenho absoluta certeza de que uma é branca e outra negra. A sessão analítica, feita apenas de fala, talvez mais do que outras práticas, evidencia o que todos temos obrigação de saber: só há raças no plano cultural. A raça é um fato de discurso, segundo a expressão de Lacan. Se não há um real da raça, então, a relação entre universal, particular e singular é que definia, para cada uma, em seus arranjos diversos, sua estruturação identitária.

A branca tomava sua cor como referência universal e, por isso, como invariavelmente ocorre, não se via como branca. Nem pensava nisso. Chegada à meia-idade, estava apenas esgotada por uma vida de trabalho insano para ser aceita pela educação britânica em que fora educada. Para a outra, seu corpo, recorrentemente sexualizado apesar dela, tinha sido sempre o problema, mas não havia como tratá-lo enquanto não pudera se ver, até recentemente, negra. Volta e meia era levada a encarnar para outros o gozo excessivo do Outro, base de todo racismo; por isso, era tratada como obscuro objeto rebaixado. Só pôde, porém, em meio a essa violência, encontrar algum lugar para si mesma na dimensão do desejo ao tornar-se negra.

No Brasil, tornar-se negro é uma necessidade, talvez maior que em outros países, já que, aqui, o mito da miscigenação, de uma sociedade hibridizada, apoiado em marcas raciais distintivas menos evidentes, funciona como cortina de fumaça para legitimar uma violência não menos pesada que em outras terras. É a violência, insistentemente negada, de uma desigualdade que cria prisões lotadas e institui o genocídio cotidiano de jovens negros. Tornar-se negro é uma arte de sobrevivência para sair dessa máscara mortal, para poder, por exemplo, tomar parte, a partir daí, de um coletivo que lute por direitos básicos, ou ainda para reconhecer-se e conectar-se a um passado também silenciado. Tornar-se negra permitiu àquela ex-branca ver de outro modo seu nariz, que sempre tinha sido para ela grande demais. Até então unicamente associado a seu dócil pai, ele passou a ser tomado na linhagem de seu negro avô materno, com quem pôde, por fim se reencontrar.

3.

Sei agora como foi no dia em que senti na carne o contraste entre a branca e a negra que me viu branco. Não incolor, cor da ignorância do poder, mas da clara cor do opressor. Não me tornei branco, pois não houve nisso nada do que a expressão “tornar-se negro” delimita. Apenas me pareceu incontornável consentir com essa marca identificatória.

Para Freud, a fraternidade funda-se na morte do inimigo e sustenta, lembra Lacan, o racismo. Só se pode ser irmão contra um fundo de segregação dos que não são da família. Desse modo, como parte da fraternidade branca, faço parte de uma máquina de moer gente, parte de um país que tem hoje, no poder, os que desejam deixar morrer, velhos, mulheres e negros em uma necropolítica pseudoprotestante.

Nesse contexto, qualquer universalismo é perigoso. É preciso mais que nunca deixar o lugar de enunciação de verdades universais ou aceitar vê-las rejeitadas em bloco com toda razão, mesmo quando razoáveis, porque vindas do branco no poder. E isso inclui as verdades negativas, que não deixam de sustentar a discreta ontologia do Real que se insinua aqui e ali em nossos ditos. Não podemos mais afirmar, como dizemos às vezes, lacanianos, que o sujeito não tem cor ou gênero. Nem mesmo visar um pretenso “comum” que só existe negando-se uma diferença que pode ser baseada em efeitos imaginários de superfície, de pele, por exemplo, mas nem por isso é menos mortífera.

Como analista, não é um grande problema. Pode ser duro ser reduzido a um lugar, uma posição discursiva fixa, mas meu trabalho não é impedido por isso, já que ele consiste em encontrar a singularidade que expõe cada um à sua estranheza sem passar necessariamente por uma desidentificação radical. Nesse sentido, vejo-me bem mais como parteiro de identidades abertas do que herói da desidentificação – no sentido da crítica que Éric Laurent faz do termo.

Só me foram endereçadas as marcas de singularidade daqueles dois analisantes irmãos porque eu não era da família. Só assim eu poderia sentir os aromas que nem eles mesmos sabiam bem sentir por virem de vielas que escapavam a tudo o que era professado em casa. Vale o mesmo para quando sou, para alguém, o branco racista ou hetero top machista. De todo modo, só poderei agir no sentido do discurso a que sirvo se, apesar de estar instalado nesses lugares senhoriais na fantasia do analisante, tiver podido levar-nos ao espaço cego em que se empilham resíduos do que não coube nessa fantasia. Por isso, não me esqueço (ou me perdoo) por aquela analisante ter-se ido porque quando mudava o tempo da sessão ou a interrompia, não pude fazê-la sentir que o fazia por estar submetido ao inconsciente e seus tempos, em vez de, macho no poder, submetê-la a eles.

4.

Há anos apresento a Psicanálise e sua clínica do ponto de vista estrutural a estudantes na universidade. O pensamento estrutural muda tudo. É de um antiessencialismo hard, que nos tira do senso comum de que um obeso é gordo porque pesa muito. É o lugar que ocupamos que define o sentido do que dizemos ou sentimos e não o contrário. Lugares e posições contam mais que essências ou, como postulou Hjelmslev, as relações definem as magnitudes.

Não faltam filmes e peças para transmitir a força subversiva de uma clínica estrutural. Agora, porém, o rei, a rainha e o ministro de Poe, de “A carta roubada” (que tanto serviu a Lacan), ganham novos companheiros. Posso contar com o racismo estrutural. Posso demonstrar como o genocídio negro define-se por um jogo em que estamos todos envolvidos. Não é o racismo individual, que tanto causa polêmicas e pedidos de prisão, nem mesmo o institucional, o de uma empresa que se resolve com uma política de cotas. É o racismo de toda uma sociedade que envolve cada um de seu lugar próprio. E talvez haja uma contribuição própria de Lacan ao debate. É que na clínica psicanalítica o termo “estrutural” só existe para localizar de que modo o sujeito pode ser chamado a participar da subversão dessa estrutura. É o que me parece ocorrer quando, seguindo a ideia de um racismo estrutural, percebemos, por exemplo, que não basta aos negros lutarem, porque se o poder está do lado dos brancos, só haverá mudança se todos se envolverem. Os negros, sem os brancos, podem resistir, mas não podem mudar a estrutura.

Pode o Brasil encontrar um caminho para transformar seu racismo? Pode a Europa fazer outra coisa que não reviver seu passado nacionalista? Pode Achille Mbembe estar certo quando afirma que não há como não ver que o mundo eurocêntrico, ocidental, primeiro mundo, em que me incluo, não tem como começar mais nada por si mesmo? Que a descolonização precisa ser pensada como um atravessamento dos binários, branco-preto e outros, rumo a outro modo de estar no mundo? Haveria alguma contribuição da Psicanálise? Com que gambiarras feitas de nossos restos de identidade poderemos forjar, como propõe Jacques-Alain Miller, modos de identificação não segregativos?

Retomo a cada dia o gesto de abrir a porta da sala de espera, mesmo que virtual. É um convite a que se entre no registro da fala do dejeto, um fazer com os restos e não com as insígnias. Sustento, assim, minha lida diária para desenterrar desejos silenciados, contando com que, encontrados seus caminhos de fala, possam nomear o que nos leva adiante, quem sabe para dias melhores.

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