Como viver junto? Fronteiras e territórios

  

Célio Garcia
Fernanda Otoni Brisset
Andréa Guerra

 
Viver junto não é evidente. Entre um e outro é evidente que é aí, nessa zona nebulosa, que os conflitos ditos de natureza humana se apresentam. Para dar solução a esta evidência, a civilização tem recorrido a orientações simbólicas para regular o irregulável da convivência entre os homens. Temos na máxima ‘amar o próximo como a si mesmo’ a demonstração desse impossível. Muito se tem feito para manter os laços, fazer os laços, refazê-los. Desde as sagradas escrituras também estava escrito que não é bom que o homem viva só. Porém, enlaçar-se não é tarefa fácil, exige um esforço, uma cota de sacrifício, e verificamos que os homens têm topado com alguma subtração para inscrever o seu ser no mundo junto aos outros. Um modo muito usado tem sido o da linguagem, que reduz a coisa a uma representação da coisa, junto com a crença de que a coisa, uma vez nomeada, seria a mesma coisa para todos; que dar nome às coisas faria entre os homens um laço tipo universal.

Sim, fato é que, no mundo da vida, convivem as pessoas e as coisas e outras coisas. Uma coisa é uma coisa, mas se nomeada fica ainda melhor, acredita-se. As pessoas dão nome às coisas. Esta pode ser uma solução de convivência. Porém isso falha e não é a única forma de convivência, pois são vários os modos de as pessoas se juntarem às palavras e às coisas. Muitas vezes, verificaremos que o “em comum” dos laços não é determinado a priori. As fronteiras que desenham o espaço de convivência entre pessoas, palavras e coisas são indeterminadas. Porém, guiar-se por esse indeterminado tem sido uma recusa reincidente das políticas de gestão da convivência, ou seja, dos modos de governabilidade de um povo.

Até bem pouco tempo, sabíamos o que tínhamos em comum com as pessoas com quem nos relacionávamos, ou que conhecíamos, ou que reconhecíamos como sendo nossos... Antes, qualquer um de nós saberia dizer “são nossos parentes” (laços familiares), “somos conterrâneos” (laços de origem geográfica), “pertencemos à mesma religião” (origem religiosa ou cultural), “estamos inscritos no mesmo partido” (logo lembrávamos as campanhas que havíamos feito juntos em prol de uma mesma causa política). Até serviço militar servia para nos fazer sentir que tínhamos algo em comum com tal pessoa conhecida na idade jovem, agora reencontrada na idade adulta.

Em vez dessas referências construídas, somos atualmente chamados a responder pelo nosso em comum pela mídia e pesquisa de internet, pelo espetáculo propiciado pelos políticos em vésperas de eleição, pelo apelo vindo de dois campos (nações do bem e nações do mal) que se formam diante de nossas mentes e corações estarrecidos, pelo discurso ecológico apressadamente formulado em tom de ameaça ou até quando se trata de prevenção em saúde pública que nos identifica simplesmente pelo sintoma ou pelo atestado de uma doença. Nenhum desses apelos imediatistas nos convence.

Eles subtraem o espaço banal, no qual o em comum poderia se apresentar de modo contingente e real. Não fala de lugares vividos em comum e, portanto, em condições de legitimar o comum de uma comunidade. O sujeito não está incluído na formulação desse espaço no apelo; ele é convidado a acatá-lo ou a ficar fora dele. Desacreditados o social e seu laço, ficou o vazio, e com o vazio descobrimos novas dimensões para o em comum. Em nossos dias, o espaço social chega a ser delimitado como uma sombra projetada pela sociedade sobre certas atividades, gerando discriminação, exclusão, preconceitos, violência etc., podendo se estender até campos como o Jurídico. Exemplo: “a sala do Tribunal é invadida pelo social”, diz um Juiz. Quer dizer, a sombra do social se projeta inclusive sobre a decisão do Juiz.

Social tem a ver com associação, associação nova que quebra certezas numa mesma sociedade. Uma associação no território será chamada um coletivo. Um coletivo dá legitimidade. Coletivo e território resgatam o em comum e criam possibilidade para um laço.

Contudo, com as Ciências de Classificação, o indivíduo classificado é modificado pelo simples fato de ter sido classificado. Graças ao efeito de retroação, ao receber a nomeação de seus sintomas, aquele indivíduo recebe um nome que apaga sua singularidade e o anexa a uma massa. Vimos que os sintomas agora classificados darão margem a novos diagnósticos. Classificações moldam as pessoas! Este universal está comprometido com a normatividade e aponta para a Lei que regra o modo de viver junto. No caso da Psicanálise, encontramos seu correlato com a lei fálica e a lei paterna.

Para nossa tentativa de avançar na discussão sobre os outros modos de viver junto que não aqueles que se baseiam na regulação simbólica, podemos nos deixar investigar se quando temos uma medida comum, ou ao menos acreditamos tê-la, ou no mínimo ainda a desejamos como referência universal, a equivalência aparece como boa medida para todos se nivelarem entre si e se reconhecerem com os demais. Porém, a vida na cidade nos mostra, e a clínica testemunha, que essa solução universal que propõe uma medida comum (ex: NP) não funciona mais.

Há fronteiras que apontam para uma porosidade receptiva a novas formas de inventar o em comum. Mas o termo fronteira requer nova parada. Lacan, quando vai falar da letra, prefere o termo litoral à fronteira. Ele diz que fronteira demarca uma linha divisória entre dois elementos de mesma matéria; litoral, não. Litoral trata de duas matérias diferentes e de uma linha vaga, feito franja que avança e recua, avança e recua, podendo ir além, muito além, se tomamos o litoral em sua linha de horizonte.

Fronteira, convivência, litoral, território e coletivo. Milton Santos fala que recebemos de legado da Modernidade um conceito de território intocado e puro articulado ao Estado-Nação, enquanto para ele é o uso do território, e não o território em si mesmo, que faz dele objeto de análise social. O uso do território é o que aqui nos interessa, é como viver no território, neste espaço em comum, o espaço de convivência. E o uso do território se dá pela dinâmica dos lugares. O lugar é palpável e recebe os impactos do mundo. Assim, perguntamos se fazer do espaço território um lugar de vida em comum seria uma das maneiras de pensar a solução para o em comum do laço.

Nesse sentido, ele introduz o conceito de espaço banal em oposição à noção de rede. As redes constituem uma realidade nova que, de alguma forma, justifica a expressão verticalidade, imposição autoritária de poder, que não cria laços e normas para uma vida comum, local. “Mas além das redes, antes das redes, apesar das redes, depois das redes, com as redes, há o espaço banal, o espaço de todos, todo o espaço, porque as redes constituem apenas uma parte do espaço e o espaço de alguns.” Enquanto, por seu turno, espaço banal é espaço de todos, ocupado à sua maneira por qualquer um. A ideia de espaço banal pode ser rica para pensarmos o território como lugar em que se pode (re)inventar o em-comum para além da universalidade da lei simbólica. Não é fácil fazer caber uns no espaço de todos, pois é diferente de fazer de “cada um” “todos”. É diferente de normalizar, de normativizar. E é aí que as gestões de políticas públicas podem aprender no diálogo com a cidade e com a clínica.

Na presente nota, encaminhamos solução que consiste em desvincular o “universal” (se quisermos, pode-se dizer o genérico) dos seus compromissos com a normatividade e a lei. O “universal” não se dá de maneira positiva. Não é certo que viver junto esteja desde sempre determinado. A indeterminação vem a ser constitutiva do próprio laço social. A convivência do sujeito com o Outro é um território marcado pelo encontro casual de um real sem lei, de um mundo que gira e não é o simbólico ou o saber que controlam as cordinhas. A lei fálica e o Nome-do-Pai não são os únicos modos de regulação desse laço. As fronteiras que delimitam o espaço de convivência entre as pessoas, as palavras e as coisas, ou seja, o espaço banal onde cada sujeito encontra seu enlaçamento com o Outro, são indeterminadas. É esta indeterminação que torna porosa e, por isso mesmo, fácil/difícil a borda em condições de produzir o espaço comum, onde a convivência pode ou não se realizar. Se pudermos delimitar o espaço comum de convivência entre sujeitos, podemos afirmar que ali se demonstra a conexão do singular ao universal. Como viver junto é uma pergunta que não comporta solução universal, é no caso a caso que a amarra se realiza, dando lugar a um laço comum.

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