O Comum, de Dardot e Laval
 

 
DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. Comum: ensaio sobre a revolução no século XXI. Echalar, Mariana. São Paulo: Editora Boitempo, 2017.

 

Acerca da fabricação do sujeito neoliberal, Pierre Dardot e Christian Laval assim localizam o "homem empresa" em A nova razão do mundo (2016):

A concepção que vê a sociedade como uma empresa constituída de empresas necessita de uma nova norma subjetiva, que não é mais exatamente aquela do sujeito produtivo das sociedades industriais. O sujeito neoliberal em formação, do qual gostaríamos de delinear aqui algumas das características principais, é correlato de um dispositivo de desempenho e gozo que foi objeto de inúmeros trabalhos. Não faltam hoje descrições do homem “hipermoderno”, “impreciso”, “flexível”, “precário”, “fluido”, “sem gravidade”. Esses trabalhos preciosos, e muitas vezes convergentes, no cruzamento da psicanálise com a sociologia, revelam uma condição nova do homem, a qual, para alguns, afetaria a própria economia psíquica. De um lado, muitos psicanalistas dizem receber no consultório pacientes que sofrem de sintomas que revelam uma nova era do sujeito. Esse novo estado subjetivo é frequentemente referido na literatura clínica a amplas categorias, como a “era da ciência” ou o “discurso capitalista”. O fato de o histórico apropriar-se do estrutural não deveria surpreender os leitores de Lacan, para quem o sujeito da psicanálise não é uma substância eterna nem uma invariante trans-histórica, mas efeito de discursos que se inserem na história e na sociedade. 

A norma de eficácia econômica continuou a ser contida por discursos heterogêneos a ela, a nova racionalidade do homem econômico continuou mascarada e embaralhada pela confusão de teorias. Por oposição, o momento neoliberal caracteriza-se por uma homogeneização do discurso do homem em torno da figura da empresa. Essa nova figura do sujeito opera uma unificação sem precedentes das formas plurais da subjetividade que a democracia liberal permitiu que se conservassem e das quais sabia aproveitar-se para perpetuar sua existência. A partir de então, diversas técnicas contribuem para a fabricação desse novo sujeito unitário, que chamaremos indiferentemente de “sujeito empresarial”, “sujeito neoliberal” ou, simplesmente, neossujeito. Não estamos mais falando das antigas disciplinas que se destinavam, pela coerção, a adestrar os corpos e a dobrar os espíritos para torná-los mais dóceis – metodologia institucional que se encontrava em crise havia muito tempo. Trata-se agora de governar um ser cuja subjetividade deve estar inteiramente envolvida na atividade que se exige que ele cumpra. 

Contrapondo-se a essa racionalidade neoliberal, e dando continuidade à análise dos movimentos sociais e das lutas políticas contemporâneas contra a apropriação, por parte do grande capital monopolista, dos recursos naturais, dos ‘bens comuns’, e dos espaços e serviços públicos, Dardot e Laval nos apresentam, no ano seguinte, o conceito do "comum". O conceito possui algumas propriedades distintas: ao mesmo tempo em que ele é o "princípio político" que dá sentido aos movimentos, às lutas e aos discursos que se contrapõem, ele se apresenta como o resultado dessas lutas, como uma efetivação de uma práxis instituinte, além de ser uma forma democrática nova de governo.

O Comum é fruto das pesquisas sobre as condições econômica, política e social do capitalismo contemporâneo desenvolvidas pelos autores no seminário Question Marx e do seminário Du public au commun, organizado pelo Colégio Internacional de Filosofia e pelo Centro de Economia da Sorbonne entre 2010 e 2012. O tema da obra é a instituição do comum como elemento central da revolução no século XXI. De acordo com os autores, o comum não é um bem, objeto, lugar ou coisa; antes, ele é uma instituição que se efetiva na esfera coletiva. Diferentemente do que propõem Michael Hardt (Bem-estar comum, Ed. Record, 2016) e Antonio Negri (Comum, entre Marx e Proudhon, Lugar Comum – Estudos de mídia, cultura e democracia, n. 43, maio/ago. 2014), Dardot e Laval entendem que a priori “nada é comum em si ou por natureza”, mas são as práticas coletivas que decidem se uma coisa ou conjunto de coisas devem ser postas na esfera do comum.

O Comum, como princípio político, “exige que a participação [coletiva] numa mesma atividade seja o fundamento da obrigação política, portanto que a co-atividade seja o fundamento da co-obrigação”, ou seja, o Comum não se apresenta na forma de um esquema universal ou uma fórmula preestabelecida: ele é uma construção política coletiva que refunda as relações sociais, apontando novas formas democráticas. O Comum está na atividade dos seres humanos, porque só a prática pode decidir o que é "comum" e produzir regras de responsabilização a seu respeito. Nesse sentido, o comum demanda uma revolução.

O sentido atual de Comum distingue-se dos diversos usos dessa noção no passado, sejam filosóficos, jurídicos ou teológicos: bem supremo da cidade, universalidade da essência, propriedade inerente a certas coisas, ou, até mesmo, fim almejado pela criação divina. Pierre Dardot e Christian Laval querem mostrar que o princípio político do comum se impõe atualmente como questão central da alternativa política para o século XXI. A prática social anticapitalista já tem mostrado que as lutas sociais visam e devem visar à instituição de "comuns", isto é, a disponibilidade para as pessoas dos meios materiais e imateriais necessários a suas atividades coletivas (não como propriedade privada ou estatal), por meio de um autogoverno das pessoas, libertas da dominação de um Outro econômico e social tirânico, o Capital.

Isso, no entanto, não significa que haverá uma ruptura total nas relações de produção e nas relações sociais de produção, como propõe uma interpretação clássica do marxismo. Os autores entendem que a revolução do Comum não é a criação de um novo "modo de produção", tampouco a superação da propriedade privada, mas a prevalência da empresa comum na economia. Nem guerra civil, nem derramamento de sangue; a revolução aqui significa uma mudança em certas instituições da sociedade em curto espaço de tempo, como a entendem Castoriádis e Arendt. O processo revolucionário, segundo os autores, "só pode ser concebido se for articulado a práticas de natureza muito diversas, isto é, econômicas, sociais, políticas e culturais”.

Não deixa de haver, entretanto, como já criticou Negri, certo “desenvolvimento idealista” do Comum, uma vez que o conceito de classe social é abandonado e, consequentemente, a análise dos conflitos e lutas entre as classes são suprimidas, conduzindo a erros simétricos: ora superestimando, ora subestimando a conjuntura política, econômica e social. Em A nova razão do mundo, o neoliberalismo é descrito como um processo inexoravelmente totalizador que abarca desde os Estados nacionais até as subjetividades individuais, sem referência de quem (ou qual classe) possa estar ganhando com a perpetuação desse cenário; ou seja, não há Estados, nem classes, nem grupos organizados: há apenas instituições e sujeitos individualizados que agem como autômatos do neoliberalismo em constante luta pela valorização do capital individual. Em Comum, apesar de se apontar, ainda que minimamente, a influência do capital contemporâneo na construção das subjetividades dos sujeitos, o cenário traçado é exageradamente otimista, com redução da importância dos conflitos e confrontos entre classes e frações de classes sociais que ocorrem nessa fase do neoliberalismo.

A "revolução do Comum" seria, então, a implosão simultânea do capitalismo em diversas partes do mundo, por meio da práxis do Comum? Ou seria uma revolução gradual, que se efetivaria paulatinamente, por meio de conquistas políticas contínuas? Se o Comum de Dardot e Laval apenas delineia esses possíveis caminhos para a efetivação da revolução, não deixa de ser uma leitura fundamental para aqueles comprometidos com as lutas democráticas contemporâneas. 
 

  Esta resenha, escrita pela Equipe Editorial de Derivas Analíticas, utilizou-se de comentários de Felipe Queiroz (na revista Trabalho, Educação e Saúde, n.18, 2020) e de Eleutério F. S. Prado (no texto de orelha do livro Comum).  

 

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