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Uma lógica não predicativa

Célio Garcia

 

Qual é a lógica que sustenta o irregular? Terá que ser uma lógica não predicativa. Onde encontrar, em uso, uma lógica não predicativa? Vamos encontrar um primeiro exemplo na lógica do conto de Guimarães Rosa, “Meu tio o Iauaretê ou o caçador que virou onça”, no volume Estas estórias, de 1969. A teatralização do conto foi levada ao palco anteriormente. Aqui ela deu margem para a proposta que trazemos, ou seja, uma lógica não predicativa, em contrapartida à Lógica Predicativa ou Lógica de Predicados.

Vejamos como o espetáculo era apresentado no Globo Rural de novembro de 2004: “Meu tio o Iauaretê” é um monólogo-diálogo de um bugre contratado para “desonçar” o mundo. Exímio caçador, ele começa a liquidar pinimas e suaçuranas, mas aos poucos vai se identificando com elas, até se arrepender e passar a protegê-las. Parou de matar.

Em uma experiência de conversação, Gercino, encenador do conto, e Emerentina Rabelo (assistente social) fizeram comentário após a encenação, trazendo os personagens para nossa situação, já que atendem em uma clínica de Saúde Mental frequentada por jovens portadores de sofrimento mental, não raro em conflito com a lei, em véspera de delinquência.

Disse Gercino (ele mesmo mestre de capoeira): “a onça mata para sobreviver, assim também o macuncoso que virou onça. E os meninos que atendemos aqui no posto de saúde? E os psicólogos [a quem Gercino se dirigia naquele momento], como vão eles atender alguém que “virou bicho” para sobreviver, tais as dificuldades no seu dia a dia, noite adentro, chegando a roubar, até matar para... [Não continuou a frase]”. Como falar da transformação ao abandonar a lógica da predicação? Essa é a nossa pergunta, a ser levada em conta quando fazemos uma Clínica da Carência.

Uma segunda referência para nós tem sido a crítica de Ian Hacking à classificação como operação de engessamento das pessoas (Façonner les gens no site eletrônico do Collège de France). Diz ele: 

Acentuar a importância de novos nomes para designar novas formas de trabalho, de novos ofícios, de novas classes sociais, diagnóstico, é talvez simplificação excessiva. Não falo de um mito construído tal como no caso de um “pensamento primitivo”, mas da potência dos nomes na nossa própria civilização. Deem um qualificativo comum a alguém, feio ou bonito, e este ou aquele pode passar a ser feio ou bonito. 

A consequência banal transparece na observação de Nietzsche: o nome das coisas importa mais do que tudo que elas possam ser. Nietzsche coloca esse problema nos seguintes termos: a relação paradoxal entre os nomes e as coisas causa “grande dificuldade”. A dificuldade, diz, é de “nos darmos conta”. As relações entre os nomes de tipos de pessoas e as pessoas são para nós, praticantes do saber psi, também grande dificuldade.

Em princípio, dizemos que as coisas são mais importantes que seu nome, mas devemos admitir – com consternação – que nomear uma categoria de pessoa é frequentemente problemático, e que é importante para a própria concepção que o indivíduo tem de si mesmo.

“Novos usos” foi noção fundamental para nossas intervenções numa Clínica da Carência. O termo proposto por Agamben, em Profanações, de 2007, é trazido no contexto em que o uso de objetos reservados ao culto e ao sagrado foi fonte de discriminação. As concessões bastavam aos leigos que se satisfaziam com o que restava. Só assim eles se apropriavam (profanação) de partes do animal sacrificado, que, de início, não lhes eram devidas.

Resgatar objetos de um uso de início reservado ao sagrado: essa seria a tarefa política que nos incumbe. Na atualidade, permitir-se o uso em nada consentâneo com o marketing seria demonstração de criatividade e invenção de que as crianças dão prova em seus jogos. O consumo desenfreado vai contra esse movimento criativo que se impõe como freio e crítica às manipulações de que somos alvo no supermercado e nos shoppings de qualquer cidade. Uma sigla, um ícone, um lema, expostos na logomarca ou grife de uma marca, são ocasião para (p)reservar um objeto cujo uso passa a ser codificado.

Em casas de gente com parcos recursos, objetos são aproveitados na cozinha, no quarto de dormir, até na sala. Uma lata, uma caixa, um material especial, cujo conteúdo foi alimento ou outra coisa para a família serão utensílio, adorno. Os brinquedos dos meninos eram fabricados com o que restava dos objetos cujo uso em princípio era reservado. Há até nome para esse tipo de criatividade que virou termo técnico da antropologia: quero dizer bricolagem.

Mas, em vez de novos usos por vezes, fazemos crítica feroz quando dizemos que o enfeite e/ou a decoração são kitsch, pensando com isso desclassificar a invenção. Em nossos dias, em nossas grandes cidades, jovens em conflito com a lei fazem, por vezes, em meio à violência inaceitável, “novos usos” de objetos sociais, culturais, morais, amorosos. Ao ampliar a noção de jovem em conflito com a lei agora articulada à ideia de “novos usos”, abro horizontes para buscar entender o que acontece com eles em sua forma violenta de vida, e preparo abordagem para a clínica de atendimento desse jovem e do jovem em geral com suas maneiras, seu modo de vida atual. Resumindo, eu digo que eles fazem “novos usos”.

A lógica do perspectivismo ameríndio: situações do tipo “bicho é gente”, a partir de Viveiros de Castro (A inconstância da alma selvagem, 2002), foram igualmente contribuições importantes para nossa elaboração. Tudo se dá como se os índios pensassem o mundo de forma inversa à nossa, consideradas as concepções de “natureza” e “cultura”. Cada modo de identificação autoriza configurações singulares (Lógica das Transformações) ao redistribuir os seres existentes em coletivos com fronteiras bem diferentes, se temos em mente as fronteiras conhecidas por nossas ciências humanas (Lógica da Predicação).

Pergunta: em que medida a nomeação (significantes identificatórios) estaria comprometida com a lógica da predicação? Poderíamos chegar a uma prática política/clínica sem estarmos ancorados na nomeação, nos significantes identificatórios? Sim, é a resposta trazida pela Clínica da Carência a partir de Gercino, o mestre de capoeira (sem esquecer Guimarães Rosa, Viveiros de Castro, Ian Hacking, Agamben). Com ela, conto afastar julgamentos e opiniões em instituições encontradas em programas de atendimento ao jovem em conflito com a lei. Por exemplo, quando somos interrogados sobre a periculosidade de um desses jovens. “O macuncoso de Guimarães Rosa, amigo das onças, também passou a ser perigoso?”, indagava Gercino, diante daquele auditório de psi silenciados pelos impasses em que vive a nossa prática.

Por tudo isso, chamaria minha proposta de Clínica da Carência, onde encontrei demonstração de grande criatividade por parte do público a quem dedico este trabalho. As figuras aqui trazidas − Estamira, o catador de lixo, o jovem em conflito com a lei, o pichador, o construtor de barraco, o agente comunitário de Saúde − apontam para o alcance desastroso dos significantes identificatórios reforçados por uma lógica predicativa, assim como essas mesmas figuras fazem prova de criatividade que se instala, uma vez que esses significantes já não contam para nada...

 

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