A série fotográfica Toy Stories, de Gabriele Galimberti, foi fruto de dois anos de visita a mais de cinquenta países, com culturas e situações socioeconômicas diversas, fotografando crianças de seis anos com seus brinquedos. Seu trabalho nos dá uma visão sobre a desigualdade global de uma perspectiva única. “Nessa idade, as crianças são basicamente iguais: todas só querem brincar”, concluiu Galimberti. Mas acrescentou: “as crianças ricas eram mais possessivas, não me deixavam tocar nos brinquedos. Nos países pobres, mesmo que só tivessem dois ou três brinquedos, elas não se importavam”.

Gabriele Galimberti: Toy Stories. Fonte: http://www.gabrielegalimberti.com/toy-stories/

  

Perspectivas de miséria e desigualdade no Brasil

 

Os modelos socioeconômicos que constituíram a história do que chamamos humanidade sempre foram marcados por relações de poder, submissão e privilégios, nas quais uma pequena parcela da população tinha muito, em detrimento de uma maioria esmagadora de pessoas em condições de submissão, escravização, precariedade e vulnerabilidade. Ainda que ao longo da história tenham ocorrido mudanças que contribuíram para a tentativa de alteração de dinâmicas de poder e privilégios, a desigualdade social permanece como um grave problema mundial.

Para pensar o fenômeno da desigualdade social, tomemos como referência um pesquisador na área da economia, o francês Thomas Piketty. Segundo ele, a desigualdade social é uma opção política e ideológica, e não uma fatalidade ou algo inevitável, como a ideologia dominante prefere considerar. Em seu livro O capital no século XXI, de 2014, Piketty analisa a história do capitalismo pela economia política. Para isso, ele equivale à renda conceitos como   riqueza e patrimônio. Abordando análises de longo prazo, algumas desde o início do século XVIII, notadamente referentes a alguns países europeus (França e Inglaterra) e aos Estados Unidos, os dados mostram que nas sociedades contemporâneas, aqueles que integram as camadas de renda mais baixa estão cada vez mais distantes dos integrantes do topo. Segundo o autor, a desaceleração econômica nos anos 1970 fez com que a razão entre renda e capital aumentasse a partir de então. Os rendimentos do capital e a riqueza via herança, permanecem como geradores de desigualdade. Nesse sentido, a ideia central desenvolvida por Piketty indica que a riqueza herdada cresce com maior velocidade do que a riqueza produzida, numa economia em que a taxa de rendimento sobre o capital é maior que a taxa de crescimento econômico (r > g). Assim, a concentração de riqueza e os privilégios das famílias ricas em comparação às penúrias das classes populares não seriam meramente acidentais, mas, sim, agravadas pela relação estabelecida entre essas variáveis na fase atual do sistema capitalista, em que bancos e instituições financeiras dominam a economia. 

Débora Freire, professora do Curso de Economia da UFMG, em “Sobre estrutura, desigualdade, a crise e uma terceira margem”, de 2020, é enfática ao dizer que o Brasil está entre os países mais desiguais no mundo. A pesquisadora enumera diversos fatores pelos quais a concentração de renda é tão grande no Brasil, dentre eles, estão condicionantes históricos da colonização, políticas que comprimiram o salário real e negligenciaram, no modelo autoritário de 1964 a 1985, os impactos inflacionários na economia; questões sociológicas na construção da sociedade e do poder de uma elite. Entretanto, na economia do período pós-guerra, a excessiva financeirização do capital também é apontado como responsável   O sistema capitalista contemporâneo, no estágio em que se encontra, diante de sucessivas crises e da diminuição relativa dos retornos de outros empreendimentos (industriais, comerciais e de prestação de serviços) coloca os ativos financeiros no centro do novo paradigma do modelo econômico. Em vez de investir em novas plantas industriais, renovação do capital depreciado, desenvolvimento tecnológico, novos processos produtivos ou em qualquer outra empreitada que pudesse contribuir para o desenvolvimento econômico, por meio da geração de emprego e renda, os proprietários do capital decidem alocar seus recursos nos mercados especulativos nos quais a riqueza produzida é totalmente inerte sob esse aspecto, acentuando o processo de concentração de renda. No Brasil, a política de juros altos, sob o pretexto de conter a inflação, sem levar em consideração as causas reais do processo, favorece esse mecanismo concentrador de renda, uma vez que uma parcela dos recursos arrecadados da sociedade como um todo são direcionados para a remuneração dos títulos públicos em poder dos investidores.  Essa dinâmica se soma às políticas públicas de educação, saúde e renda, ainda insuficientes e falhas para serem capazes de gerar mobilidade intergeracional de forma mais efetiva e romper com os condicionantes históricos da concentração de renda. Condicionantes estruturais de desigualdade como o racismo e o machismo, também reforçam a baixa mobilidade entre classes e contribuem para perpetuar o ciclo vicioso da pobreza.

Em uma entrevista em 2020, após o lançamento do seu último livro, Capital e Ideologia, o economista Thomas Piketty afirma que, se o Brasil desejar permanecer ocupando um lugar importante entre as nações, é fundamental se debruçar sobre a questão da desigualdade social do país. O economista é categórico ao afirmar que “as elites brasileiras cometem um erro ao perpetuar o abismo social no país, comprometendo o futuro da Nação”. A desigualdade de renda e propriedade no Brasil é gritante, sendo maior do que na Europa antes da Primeira Guerra Mundial. Por meio de dados, Piketty demonstra essa gravidade: os 50% mais pobres no Brasil em termos de renda possuem apenas 10% da renda total, enquanto os 10% mais ricos, detêm mais de 50% do total. Se, além da renda, o patrimônio também for considerado, a situação seria ainda mais extrema. Os 50% mais pobres teriam 2% ou 3%, enquanto os 10% mais ricos teriam 70% a 80%, de tudo. O Brasil é extremamente desigual e o erro histórico reiterado das elites brasileiras é o de não quererem distribuir as riquezas. 

Piketty sustenta que uma reforma no capitalismo é necessária, o debate deve ser aberto para pensar como organizar a globalização e a economia. Para mudar a realidade econômica é necessário mudar primeiro as regras do sistema político, rever o pensamento dominante acerca dos fenômenos socioeconômicos; e isso só pode ser feito por meio de uma ampla mobilização cidadã. Piketty defende que uma redistribuição permanente de renda é fundamental. Para o Brasil, orienta que uma reforma tributária progressiva é necessária para diminuir a desigualdade em aspectos estruturais, acompanhada de políticas sociais efetivas, como as experiências brasileiras de valorização do salário-mínimo e redistribuição de renda, cujo êxito, em um passado recente, foi mundialmente reconhecido.

A pesquisadora Débora Freire corrobora com o argumento de Piketty sobre a necessidade de uma reforma tributária ao explicar que a estrutura tributária do Brasil atualmente é demasiadamente regressiva. Grande parte dos impostos são cobrados de forma indireta, incidindo sobre o consumo e a produção. Como consequência, o peso desses tributos recai relativamente menos sobre a população mais abastada do que sobre a mais pobre, já que esses últimos despendem quase a totalidade de sua renda com o consumo (alimentação, vestuário, transporte etc.).

O pesquisador Pedro Herculano Souza, em “A desigualdade vista do topo: a concentração de renda entre os ricos no Brasil, 1926-2013”, de 2016, afirma que as discussões e pesquisas relativas à concentração de renda e riqueza tendem mais a direcionar o foco para os mais pobres e o que lhes falta, do que problematizar essa questão a partir dos ricos e o que lhes sobra. A literatura não possui uma terminologia única para se referir aos ricos ou aos mais ricos, e há certo fascínio pelos ricos, ainda coberto por um pudor e uma construção de que ricos são sempre “os outros”.

O alerta sobre o aumento da desigualdade social foi feito por Piketty ao considerar os efeitos da pandemia. No Brasil, a miséria e a fome voltaram a assombrar milhões de famílias. De acordo com a Fundação Getúlio Vargas Social (FGV Social), em “A montanha-russa da pobreza”, de 2022, a paralisação da economia somada à interrupção em dezembro do primeiro auxílio emergencial, de R$ 600, levou milhões de brasileiros à miséria. No levantamento da Rede Penssan sobre insegurança alimentar, os dados de 2022 são ainda piores do que em 2020: 58,7% da população vive com algum grau de insegurança alimentar, sendo 15,5% em situação gravíssima. Voltamos aos patamares de 1993, quando havia sido fundada a Ação da Cidadania contra a fome, ou seja, um retrocesso de 30 anos. Em números absolutos, são 125,2 milhões de brasileiros em situação de insegurança alimentar.

Em 2016, ainda no governo Temer, foi  promulgada uma emenda constitucional que estabeleceu um teto de gastos públicos,  congelando por vinte anos as despesas primárias do governo, o que freou inclusive, os investimentos em educação, saúde e assistência social. No atual governo, um dos primeiros atos do presidente Bolsonaro foi o de destituir o Conselho de Segurança Alimentar que assessorava as políticas de combate à fome, o que reflete posições políticas para além das circunstâncias sanitárias ou econômicas enfrentadas durante a pandemia.

Em sua tese, Pedro Herculano Souza utilizou de tabulações do imposto de renda para construir novas séries históricas para a concentração de renda no topo no Brasil. O pesquisador constatou que houve alguma redistribuição de renda ao longo dos anos 1990 até meados da década de 2000. Entretanto, o período recente se destaca pela concentração de renda no topo em níveis muito altos quando comparadas ao padrão internacional. O cenário histórico indica mais políticas de inclusão do que necessariamente de redistribuição. Não houve uma guinada redistributiva profunda no Brasil, antigos privilégios não foram extirpados como a não criação do imposto sobre grandes fortunas, previsto na constituição da república; a política salarial e previdenciária para a elite do funcionalismo público; ou mesmo o acesso privilegiado a créditos, isenções e subsídios para grandes empresas e grupos empresariais, o que favorece a concentração de renda e a reprodução da pobreza e desigualdade. De fato, pouco se alterou nas dimensões estruturais como a concentração fundiária e, possivelmente, a concentração industrial e a desigualdade de riqueza ou patrimônio.

Essas conclusões, de que a distribuição funcional da renda se alterou menos do que muitas vezes se imagina, relacionam-se primordialmente à concentração de renda no topo. O autor é enfático ao destacar que não estamos em um caminho mais igualitário, nem mesmo em longo prazo. Em suas análises do cenário internacional, o ceticismo quanto à alteração da concentração de renda no Brasil permanece. Nos países europeus ricos, foram convulsões ou tragédias como o final da Segunda Guerra que possibilitaram a alteração dessa dinâmica de concentração de renda. Não há casos em que isso ocorreu de forma gradual e determinada. Pedro Herculano de Souza reforça que como o traço do Brasil é a concentração de renda no topo, temos como desafio inventar uma forma da redução da desigualdade ser uma prioridade política sem que passemos por choques violentos. Para que haja mudança, Souza reforça que é necessário ter políticas redistributivas capazes de impor perdas absolutas ou relativas aos mais ricos.

 Texto produzido pela Equipe Editorial de DERIVAS ANALÍTICAS, com suporte do economista e especialista em administração pública João Paulo Pereira Santos, servidor público municipal em Belo Horizonte, a quem agradecemos penhoradamente.

 

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