O mito, a morte e o declínio da esfera

 

Henri Kaufmanner

 

A figura do morto-vivo há muito permeia nosso Imaginário. Sem recorrer a um passado mais remoto ou à sua apresentação em outras culturas, vou me ocupar de sua presença em personagens mais difundidas na modernidade. Comecemos pelos vampiros, figuras míticas, nem vivos nem mortos, e que revelam uma relação bem específica com o olhar. São personagens da escuridão, que quando em sua forma animal se transformam em morcegos, um mamífero voador cego. Quando humanizados, são carbonizados se expostos à presença da luminosidade do sol, o olhar que ali se desvela. Acrescente-se ainda que eles não têm sua imagem refletida no espelho. A mitologia do vampiro pode então ser tomada como uma alegoria de um corpo real que escapa à representação, um corpo que não se vê, mortífero e imortal. Citemos também o Monstro, produto das experiências científicas do Dr. Frankenstein e sua busca quase trágica por seu direito à vida. Filho da ciência, sua presença por si só provocava horror. Seu corpo é uma bricolagem de corpos mortos. Essa criação de Mary Shelley busca, de maneira angustiada, um olhar que vivifique, que o reconheça mais além desse corpo despedaçado e fora do campo da representação. Ele busca, por que não dizer, um Eu.

Esse encontro com os mortos em vida ganha novos personagens a partir do momento em que William Seabrook, em 1928, escreve seu livro A ilha da magia, após uma temporada no Haiti ‒ república fundada por negros que se libertaram da escravidão e que até nossos tempos vive as agruras da segregação consequente à sua tão singular origem e formação. Seabrook, a partir de suas vivências nessa ilha, apresenta ao mundo a religião Vodu, seu poder e estranheza até então bem distantes do pensamento ocidental. Revela-nos também a figura dos zumbis, mortos cujos corpos teriam sido trazidos à vida, para trabalhar no campo, a serviço dos empreendimentos agrícolas do grande capital. A partir de então, a figura do zumbi, passa a povoar a cultura norte-americana e, posteriormente, a mundial.

Fora da literatura, testemunhos e filmes nos mostraram o horror dos campos de concentração e como a experiência da morte em vida foi encarnada pelo sofrimento dos assim chamados “muçulmanos”. O muçulmano é um conceito que caracteriza o extremo entre a vida e a morte, entre o humano e o inumano, um cadáver ambulante, de expressão indiferente a qualquer sensibilidade, pálido, de pele cinzenta, fina e dura ao mesmo tempo, descascado, de respiração lenta e fala baixa. Esse ser desprezível não tem mais os atributos de um ser humano, o seu estado de prisioneiro o levou a perder as características que o identificam como tal. No campo de concentração, sua vida foi reduzida a um estado em que os prisioneiros não podem ser denominados de humanos, pois estão numa zona intermediária entre a vida e a morte, são corpos largados da vida, mortificados pelo sacrifício ao gozo opaco e mortífero do Outro nazista.

Hoje em dia, em nossas cidades, deparamo-nos com corpos que também nos evocam, intuitivamente, a ideia de mortos-vivos. Muitos, como os usuários de crack, perambulam pelas ruas, largados e errantes, eventualmente aglutinados nas chamadas cracolândias.

Há alguns traços que nos fazem intuir essa presença da morte: à distância, não vislumbramos nesses corpos qualquer singularidade; muitas vezes não há fala; algo da superficialidade da existência na mais absoluta falta de sentido de vida se transmite. Parecem-nos reduzidos aos corpos, sua sobrevivência e seu gozo. Parecem ilustrar a afirmação de Lacan em sua "Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola", ao nos alertar para o campo de concentração como um Real de nosso tempo.

Há algo dessa experiência de corpo que se faz mais presente em nosso dia a dia e que faz presente a figura dos mortos-vivos no cotidiano da cultura. Ela permeia tanto a multiplicação dos bolsões de miséria como o isolamento dos condomínios fechados, a disseminação pornográfica das imagens, a adição às telas, o negacionismo, o terraplanismo, as massas humanas e seus corpos atrás de seu mito, a redução da vida ao consumo. Finalmente, a própria pandemia espalhou pelo mundo, em cada um de nós, algo que nos coloca também diante desse corpo que não vemos, que escapa a qualquer representação, e que retorna como presença da morte. 

Um mito lacaniano

Sabemos que Lacan preferiu o matema ao mitema para tentar tocar o impossível. Contudo, há um pequeno fragmento em um de seus escritos, no qual ele, de forma irônica, utiliza-se de um mito para transmitir de maneira mais clara algo da especificidade da Psicanálise.

Em seu escrito "Posição do Inconsciente", de 1964, Lacan retoma e estabelece o texto de sua participação no Congresso de Bonneval, organizado por Henri Ey em 1960, que se ocupava em trabalhar o Inconsciente freudiano. Como é um escrito contemporâneo do Seminário 11, encontramos Lacan trabalhando a noção de Inconsciente e o lugar do analista a partir de suas elaborações sobre Alienação e Separação. Mais ao final do texto, fala do que seria então sexualidade, algo que, segundo ele, os psicanalistas não tinham conseguido ir muito além em seu esclarecimento, para que as ideias de que essa força com a qual lidamos pudesse sair da crença de ser um acontecimento natural.

Lacan afirma então que apresentará algo mais novo, recorrendo ao que, segundo ele, Freud nunca teria tentado ultrapassar: o Mito. Inspirado em Platão e o mito relatado por Aristófanes no Banquete, Lacan retoma a ideia de uma origem esférica do humano: dois dorsos firmemente fundidos, como uma esfera de Magdeburgo ‒ experimento científico em que duas abóbadas metálicas ocas de forma hemisférica se ajustam uma à outra, formando uma esfera, do interior da qual se extrai o ar, provocando um vácuo ‒, separados um dia pelos ciúmes de Zeus, e que passam a buscar, no amor, o complemento perdido. Em seguida, ressalta a importância da forma esférica e como esta predominou durante séculos nas aproximações das ciências da natureza. A partir deste ponto, relata-nos seu mito. Ao considerar a esfericidade do homem primevo, é o ovo que se evoca:

Consideremos esse ovo no ventre do vivíparo, em que ele não precisa da concha, e lembremos que toda vez que se rompem suas membranas, é uma parte do ovo que é ferida, pois, as membranas são do ovo fecundado, tão filhas quanto o ser vivo que vem à luz por sua perfuração. Donde resulta que, na secção do cordão, o que o recém-nascido perde não é, como pensam os analistas, sua mãe, mas seu complemento anatômico. Aquilo que as parteiras chamam de secundinas.

Lacan inaugura seu próprio mito da esfera assinalando que o nascimento é marcado por uma perda inaugural, um menos bem distinto daquele da mitologia amorosa platônica. Não se trata da separação de um outro materno, mas da perda de um complemento de si mesmo. A sexualidade apontada aí por Lacan é, desde já, distinta do Um platônico. Do mito de Aristófanes ao ovo há uma desimaginarização. “Ao quebrar-se o ovo faz-se um Homem, mas faz-se também uma Homelete", diz Lacan, e esse H aqui acrescentado faz dessa omelete algo bem distinto daquela iguaria tão bem executada pelos franceses.

Lacan explica que pela ferida mesma das membranas escapa também o fantasma, de uma forma ainda mais primária de vida e que não seria capaz de se fazer no mundo. Ele propõe que a suponhamos como uma grande panqueca ultra-achatada, que se desloca passando pelas portas, impulsionada pelo puro instinto de vida e imortal, pois, afinal, é cissípara, se reproduz por bipartição. "Eis aí algo que não seria bom sentir escorrer pelo rosto, sem ruído, durante o sono, para lhe apor um lacre.”

Essa Homelete teria como se sustentar por muito tempo, na medida em que não teria sistema digestivo. Ela se orientaria por um puro Real, ja que seria desprovida também de aparelho sensorial e, deste modo, sua vantagem sobre os homens seria nítida, pois, ironiza Lacan, sempre temos que nos prover um homúnculo em nossas cabeças para fazer desse Real uma realidade. O mito se revela assim fora do campo narcísico.

Seria necessário travar uma luta contra esse ser tão assustador, incapaz de ser domado ou educado. Deveríamos nos precaver caso nos interessasse destrui-lo, pois, caso este pululasse, qualquer talho resultaria em sua reprodução, e o menor de seus brotos conservaria toda a estrutura do qual se originou. Não acreditando muito na possibilidade de um raio mortal ainda desconhecido como arma de destruição, Lacan conclui que a única forma de derrotá-lo seria aprisioná-lo em uma esfera de Magdeburgo, isso com todo o cuidado para não deixar transbordar nenhum pequeno fragmento desse ser para além das bordas da esfera. Note-se que a esfera aqui já se apresenta num estatuto distinto do exposto anteriormente. De metáfora do mito platônico, ela aparece agora como um aparelho de contenção daquilo que transborda. Podemos depreender, assim, que o Um do narcisismo, sua esfericidade, é uma construção, uma defesa diante de um fantasma que transborda, algo bem distinto da ideia de Um todo originário.

Lacan revela nesse momento o verdadeiro nome de seu mito. Trata-se do mito freudiano da lamela, sendo a imagem proposta por Lacan, o que ele considera mais apropriado para “representar quanto para instaurar aquilo a que chamamos de libido”. A libido seria um órgão que, como superfície, ordenaria o campo de forças pulsional. Esse órgão é irreal, no sentido de que o “irreal não é o Imaginário, e precede o subjetivo que lhe condiciona, por estar diretamente às voltas com o Real”. A lamela representa a parte do ser vivo que se perde na medida em que este se produz pela via do sexo. O mito aqui descrito por Lacan como um ser mortífero marca a relação do sujeito entre a sexualidade e a morte. O significante, na medida em que barra o sujeito, faz neste penetrar o sentido da morte e, como esta, se relaciona com a sexualidade. Aclara-se assim o porquê de toda pulsão ser pulsão de morte. 

A alteridade e a bolha

No ano de 1958 é lançado o filme The Blob (A bolha assassina, no Brasil), filme de estreia do ator Steve McQueen, bem como das primeiras trilhas sonoras de Burt Bacharach. Embora não possamos, apesar da coincidência cronológica, creditar à visão desse filme B a mitologia desenvolvida por Lacan em seu escrito, não há como não perceber uma semelhança entre o fantasma por ele descrito para explicar a lamela, formulação freudiana da libido, e o “horror" produzido pela bolha no referido filme. Ela desliza, sem qualquer continência possível, avança sobre as pessoas e é praticamente impossível detê-la em sua potência devoradora. Como não temos dúvidas de que a terra sobreviveu a tal criatura, não será nenhum spoiller mais grave informar que a bolha foi derrotada, e, desta vez, pelas forças da ciência que já mostravam seu poder. A formação bolhosa não suportava o frio, e sua temperatura foi reduzida a partir da borrifação intensa de CO2, sendo depois o ser inerte levado pelo exército para o Polo Norte, onde foi largado e deveria permanecer congelado. Naqueles tempos, essa mesma ciência ainda desconhecia os riscos e as consequências do aquecimento global.

       

O detalhe a acentuar é que a bolha chega à Terra trazida por um meteoro que cai aqui. Toda a narrativa do filme se faz dentro da lógica do dentro e do fora, numa topologia da esfera. O horror é provocado por algo externo ao nosso mundo, um ser mortífero, uma bolha, que, por sinal, também é bem delimitada em suas bordas. Há uma cadeia de sentido que, do início ao fim, sustenta a narrativa do filme. O Sputnik 1 havia sido lançado em 1957, e as fantasias sobre a Terra e o espaço, alimentadas pela ciência, favoreciam esse tipo de ficção.

Voltando ao texto de Lacan, vemos como o transbordamento do fantasma a partir da ruptura da membrana do ovo não é algo que se opere sem estar articulado à ordem simbólica, o que está bem de acordo com esse momento de seu ensino.

O importante é apreender como o organismo vem a ser apanhado na dialética do sujeito. Esse órgão do incorporal no ser sexuado é aquilo do organismo que o sujeito vem estabelecer no momento em que se opera sua separação. É por meio dele que ele pode realmente fazer de sua morte objeto de desejo do Outro. 

Lacan situa a libido, essa lamela que ultrapassa o corpo, a partir da operação de separação do S2, significante que não mais representa o sujeito inaugurado na alienação ao S1 no campo do Outro. O corte do significante e a queda do objeto são assim representados no mito lacaniano pela ruptura da membrana. Essa lamela, essa panqueca achatada, é aquilo que do ser desliza para além do corpo, é uma superfície que organiza um campo de força pelo qual o sujeito opera sua perda fundamental, na operação de separação, o que o tensiona a recuperar seus objetos, algo que será formalizado pelo objeto a. 

Nem alteridade, nem bolha

O mito da lamela demonstra como o campo pulsional instaurado por Freud extrapola os limites imaginários do corpo. A alegoria utilizada por Lacan permite-nos cernir o estatuto freudiano da pulsão de morte e como a dimensão mortífera dessa existência na sexualidade pode ser tomada como horror quando de seu encontro, o que é metaforizado em múltiplas obras de ficção que se utilizam do surgimento desse infamiliar no campo do Outro.

Vejamos agora como as coisas se passam no filme A noite dos mortos-vivos, de 1968, dirigido por George Romero, filme inaugural que se transformou em clássico do gênero e que popularizou a figura dos zumbis na cultura ocidental, na arte, nas mídias e nos games.

Uma diferença fundamental a destacar é que neste filme não há qualquer cadeia de sentido. O horror simplesmente surge a partir da presença dos corpos putrefatos, sem fala, que vão se agrupando e que, assim como a bolha, mas sem a forma unificada e delimitada desta, somente seguem adiante impulsionados pela potência devoradora. Esses corpos não constituem uma unidade imaginária invasora, não estamos mais na topologia da esfera. Não há dentro e fora, início e fim. Há o Um do gozo, que se reitera, corpo a corpo. São corpos, um a um, que se movimentam e que acabam por constituir uma massa. Vemos no desenrolar do filme como que aqueles que ainda não foram "contaminados" pela pretensa unidade de seus corpos tentam se defender, criam barreiras que possam protegê-los dessa invasão. Buscam fazer da casa um dentro protegido, seu último bastião de segurança. Esforçam-se por criar sua bolha, mas mesmo esse esforço de segregação será insuficiente. Algo desses corpos mortificados acaba por se manifestar em cada um.

Quando Lacan nos apresenta a libido freudiana como ordenadora de um campo pulsional, o próprio significante ordenamento nos leva a concluir que isso não se dá sem o Outro. Jacques-Alain Miller, em La fuga del sentido (1995/1996), destaca que a noção freudiana de libido se distingue do conceito lacaniano de gozo. A libido seria o gozo na medida em que este é enlaçado ao Outro. Sua articulação ao sexo não seria primária, mas uma consequência estrutural do Édipo. A formulação lacaniana da sexuação distingue-se da noção de sexualidade e toca exatamente nessa distinção entre gozo e libido. Há o Um do gozo e é este que está em jogo na sexuação. O Édipo ‒ e mais especificamente aquilo que aprendemos originalmente como o Nome do Pai ‒ é o que enlaça esse gozo ao significante, articulando gozo e sentido, como vimos em "Posição do Inconsciente". O último ensino de Lacan é pródigo em cernir este ponto, a anterioridade do Um do gozo, de um corpo que goza.

Em seu filme, Romero já intui algo que em nossos dias se revela mais evidente e é consequência daquilo que Lacan assinalava como o avanço do Discurso do Capitalista em sua aliança com a ciência. Por um lado, vivemos uma disseminação invasiva dos gadgets do consumo, e sua oferta de gozo. Por outro, entre S1 e S2 não há mais intervalo, uma hiância pela qual o sujeito se precipitaria em sua queda como objeto. A questão passa a ser como superar essa dimensão autística do gozo ali onde o Outro não existe.

Em recente conversação, quando do lançamento de seu livro Polêmicas políticas, Miller assinalou que não vivemos mais no tempo do Nome do Pai, que a questão para a Psicanálise no século XXI seria encontrar caminhos para se fazer presente e operante nestes novos tempos. Disse que, pelo que vemos, são tempos bem difíceis. A comparação entre as duas películas que comentamos permite-nos concluir que temos muito trabalho pela frente.

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