Ednei Soares
Fernanda Costa
Virgínia Carvalho 

Primeira página do livro “Ô fim do cem, fim…”

 “Ô fim do cem, fim… Está nesta pinta prêta… […] o indivíduo que estiver olhando para a pinta prêta; meditar assim: dentro da pinta prêta está a ôca: e no centro da ôca está a bateria…”.

Esse é o ponto de partida do livro “Ô fim do cem, fim”, de Paulo Marques dê Oliveira, o Mestre dos Mestres, Astrofísico Teólogo e prefulgenciado, como ele mesmo se nomeia, “e que sabe de onde vem e para onde vai”.

“Este livro, é, luz do mundo”, “armanatizado com istórias… e narrações verdadeiras”, nos indica o narrador, que o considera “um livro didático: para todas as gerações…e outras Mais”.

A obra é marcada por uma linguagem e uma plasticidade peculiares, impactantes e impossíveis de ser transpostas, senão por sua própria caligrafia, organização, traços e estética. É uma escrita que transmite sobre os temas mais diversos: política, receitas, teologia, gambiarras, astrologia, piadas enigmáticas para brasileiros, história, agropecuária, botânica, norma de carta para condolência em falecimento.

Nessa riqueza de conteúdo; a “Ôca Universal” é frequente:

Aí mostra que Deus e os Anjos; e todos os viventes estão dentro da ôca universal… onde está branco é a escuridão do fim do cem fim… para quem medita; vê assim; aí dentro está o mar, os rios os matos, e todas coisas que-á.

Essa obscura Ôca, Universal, que podemos achar dentro da pinta prêta… o que ela é, afinal? “Ô fim do cem, fim”? Ponto de partida? Chegada? Final de linha? Infinidade de sentidos, às vezes paradoxais que a escrita condensa e permite a coexistência. Os escritos de Paulo Marques convocam, interpelam, estranham, encantam, convidam.

Diversidade de temas, ilimitadas interpretações, infinitos efeitos que permitem usos singulares. Como o próprio “Astrofísico” comenta: “Este livro, é, luz do mundo… Primeiro e derradeiro…”. Exemplifica: “Uma mulher bordadeira de guardanapo, e tapete; vio este livro e intereçou comprar… veija-só; até para artezenatos, o livro, é de utilidade…”, profetiza ele quanto aos “cem” fins, às mil e uma finalidades de seus escritos. Ele não se engana, “deriva”.

Seus escritos imprimem a oralidade e os dizeres cotidianos do autor no norte de Minas. Particularmente eloquente, Paulo Marques fala livremente ao povo de Salinas, mostra seus escritos e transmite o que conhece às pessoas que encontra. Suas descobertas e suas teorias.

Em 2001 o manuscrito original foi registrado e inspirou o nome de O fim do sem fim, num premiado documentário que transmite sobre os ofícios e as profissões em extinção no Brasil. Dirigido por Beto Magalhães, Cao Guimarães e Lucas Bambozzi, o filme conta com a trilha sonora original de O Grivo, entre outros de uma equipe refinada e reduzida. Em 2011 o livro ganhou uma edição belíssima e cuidadosamente conduzida por Augusto Rodrigues Borges e Marina Acúrcio, que viabilizaram a circulação e ampliaram o alcance dos escritos de Paulo Marques dê Oliveira.

Frame do documentário: “O fim do sem fim” em que aparece Paulo Marques com seus manuscritos originais.

Ao circular, esse livro tem seus efeitos. Nas mãos do estilista Ronaldo Fraga se transforma no tema da sua coleção outono/inverno de 2013. O estilista faz da letra de Marques tecido que veste os corpos, moda que reserva um traço artístico e que também se torna objeto de consumo.

Croquis do estilista Ronaldo Fraga que fazem uma referência direta ao livro já editado
de Paulo Marques (à direita): “Ô fim do cem, fim…”. 
Fonte: GNT

 

A diversidade e a fecundidade das produções nos interessaram a partir do Ô fim do cem, fim. Podemos supor, pela qualidade do que foi produzido, que para cada um, cineastas, músicos, editores e estilista, houve um encontro, um encanto singular.

Com essa hipótese, entrevistamos Beto Magalhães, Cao Guimarães, Nelson Pimenta, Augusto Rodrigues Borges e fizemos uma pesquisa das entrevistas e o material de Ronaldo Fraga, disponível na imprensa para divulgação da coleção em questão.

O enlaçamento com o cinema

Comecemos pelos cineastas e o músico. Eles falaram como foi o seu primeiro contato com o Mestre e seus escritos. Beto Magalhães conta que a equipe procurava por mais um personagem que tivesse um ofício em extinção. Assim, chegaram à casa de Paulo Marques: um “vendedor de dentadura em Salinas”, um “dentista prático” (sem formação acadêmica em odontologia). Contudo, quando ele abriu suas portas, uma surpresa que temos a felicidade de acompanhar, por ter sido capturada no filme pela equipe. A cena é Paulo Marques ainda sob o batente de sua residência, recebendo-os com os seguintes dizeres:

Eu tô admirado é docês chegarem aqui pra fazer uma filmagem… Já tem dez dias que eu estou aqui parado, sem sair na rua, fazendo esse livro. Não tive tempo nem… de banho, de vestir nem roupa.

Esse momento que, como Cao Guimarães observa, devido a seu impacto, sua “força”, foi transmitido em sua forma “bruta” (no sentido que acompanha um diamante) no documentário:

O bacana do filme é que a gente pegou esse processo. Tá presente o nosso susto, a câmera mal enquadrada… você está ali extasiado, a técnica cinematográfica foge, você esquece… você está pegando aquele momento. E você percebe que a gente resolveu colocar isso no filme porque é muito forte essa transformação dele. Ele se prepara para filmar.

O registro desse momento de surpresa dá lugar depois para uma preparação, de quem está na frente e por trás das câmeras. Nessa transformação, sensivelmente transmitida no filme, acompanhamos o astrofísico recolhendo os manuscritos de seu livro, juntando as folhas soltas e recompondo sua imagem para compor sua personagem. Segundo os cineastas, Marques aparece como “O Mestre”, aquele que “sabia de tudo”, “de todas as profissões”. Por isso, ele dá “o link do filme”. Seguindo esse tom messiânico, o músico Nelson Pimenta disse que não houve dúvidas na referência para a trilha que acompanha o documentário: a Paixão Segundo São Mateus, de Bach.

Então, os múltiplos enquadres de Paulo Marques, assim como imagens mais livres, que Cao Guimarães chama de “colagens”, que dão um traço poético ao documentário e do que seria sua leitura de Ô fim do cem, fim. Na nossa conversa, Cao Guimarães condensa essa leitura nas cenas finais do filme. Embalado por Bach, mas em seu ritmo e estilos próprios, O Mestre fala do “fim do cem, fim”. Entre as colagens de imagens, temos um farol torto, solitário banhado por águas infinitas que marcam o limite, o encontro entre o Rio São Francisco e o mar.

Sobre essa cena, Cao comenta:

Ela fala do fim do sem fim… Isso era a ideia do filme, das profissões em extinção… Elas são passadas de pai para filhos, geração para geração. Então, essa coisa do fim do sem fim é uma coisa que não termina nunca, ou que não terminaria nunca, mas que pode acabar: é o fim do que era o sem fim. É o limite do ilimitado. O fim do infinito… Então o tema do filme era um pouco essa coisa anacrônica e que vai se perder como uma luz que vai ficando cada vez mais fraca, mais fraca, e vai desaparecendo.

Assim, o documentário, diante do encontro com os escritos de Marques, se deixou interpretar por eles. Com essa versão da última sequência de seu filme, Cao apresenta uma possível deriva para Ô fim do cem, fim, livro que considera “uma obra de arte”, escrita por um “artista nato”.

Cao Guimarães nos disse sobre a concepção que tem das personagens de seus filmes. Em suas palavras, trata-se de um “personagem real que não é ator… Não é ator profissional, mas está representando a si mesmo”. Não deixa de ser uma atuação, uma ficção, o que não impede de comportar uma leitura da realidade, de transmitir uma verdade. Cao ainda conta que a equipe se apaixonou com o personagem do Mestre: “Todo filme [que faziam e passavam por perto de Salinas] a gente ia lá pedir a bênção do Mestre”.

 

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Documentário completo: “O fim do sem fim”
Paulo Marques começa a contar sua história em 23’

 

E o livro ganha corpo

Aproximadamente dez anos após o documentário, a obra daquele homem falante do filme ganhou forma autoral. Curiosa síntese. Impressos, sua fala, suas imagens e suas palavras compõem o todo da obra. Não se separam. Cores, sonoridade, grafia e elementos diversos se impõem concentrados numa mesma unidade. A produção do personagem das telas ganha status de obra.

A bela edição viabilizou a circulação e ampliou o alcance dos escritos de Paulo Marques dê Oliveira. Impresso, o saber do Mestre sai do cinema e produz derivas: do livro à moda. Sábio ou artista? Ao editor pouco importa: “qualquer um pode se encantar por ele, qualquer área”.

O encontro com Augusto Borges, o editor do livro, traz outra impressão de Paulo Marques. Conterrâneo do Mestre dos Mestres, ele já conhecia o personagem salinense. O editor revela que no interior o Mestre“ainda é ridicularizado, tido como louco, as pessoas riem do que ele declama”. Certo dia chegou a suas mãos um dos escritos de Paulo Marques “vendidos como revista em Salinas”. Ao lê-los, Augusto se encantou. Profundamente tocado pelo texto, cita-o de memória, pesquisa os termos do usados pelo autor, nos lê passagens e as comenta.

Contrariando a opinião de seus pais, resolve comprar os direitos de Ô fim do cem, fim para publicá-lo em formato de livro. Confessa certa apreensão no encontro com o Mestre: “Minha preocupação era saber se a família achava se ele era doido ou não”. Pensou: “Será que toda a família é doida? Será que a família sabe que ele é doido?”. Embora não tenha decifrado esse enigma, o editor não o concebe como errante: “Será que é doido ou é sábio? O que interessa é a obra”.

Augusto se recorda do encontro amistoso e acolhedor do Mestre e sua família. Casado (por duas vezes) e com três filhos, à ocasião do lançamento do livro reuniu em Belo Horizonte outros filhos de Paulo Marques.

Se no encontro com os cineastas, Paulo Marques se encontrava em pleno transe e furor produtivo, alguns anos depois, no lançamento do livro em Belo Horizonte, silenciou-se. “Falava pouco, só respondia ao que lhe perguntavam”. Quanto ao livro, ele comenta que “os artistas plásticos foram os que mais compraram o livro. Eles passavam as mãos nas páginas, queriam sentir a textura da escrita, dos desenhos”.

Uma das páginas do livro “Ô fim do cem, fim…” editado 
(nesta encontramos algumas das citações mencionadas, por exemplo sobre o uso das bordadeiras)

 

E as letras vestem os corpos

Os elementos estéticos que saltam aos olhos de quem tem contato com Ô fim do cem,fim é que fizeram com que Ronaldo Fraga se sentisse escolhido pela obra de Paulo Marques. Diante da “luz do mundo”, as pessoas reconheciam ali algo de seu estilo e lhe indicaram a leitura. O que o encantou no “Mestre dos Mestres” foi a assinatura gráfica impressa em seu trabalho. Afinal, para Fraga, a moda “é como um registro/escrita de quem cria para quem vai usá-la e reescrevê-la através do seu corpo no seu dia a dia. Daí essa obra ser um prato cheio para uma narrativa de moda”. Ô Fim do Cêm, Fim transporta um registro gráfico que independe do assunto. E é o ponto que causa o estilista a dar costura e corpo aos traços, letras e cores de Marques. O encontro de Fraga com Marques vai além do que nossos olhos veem e leem do livro. A materialidade da grafia é tomada a tal ponto que, ao colocar no computador e aproximar a imagem que se extrai da página do livro até seu limite, “estourando” a imagem, o artista viu uma nova cor que lhe permitiu trazer luz à passarela.

Ronaldo Fraga se identifica com o personagem Paulo, dizendo que “para nós dois quaisquer pingos, riscos, rabiscos, desenhos e costuras podem ser letras!”. E a “enciclopédia” que é Ô fim do cem, fimnos faz “refletir sobre a escrita pessoal como instrumento de libertação do indivíduo. Assim como deveria ser a moda”.


Imagens do desfile da grife do estilista Ronaldo Fraga no SPFW
Outono/Inverno 2013 baseado em “Ô fim do cem, fim…” Fonte: GNT 

Três desdobramentos distintos. No caso dos cineastas, o livro deu nome ao documentário O fim do sem fim e foi a linha que costurou e conduziu os diversos personagens e histórias. Os editores costuraram as folhas soltas em um livro e fizeram dele um objeto de publicação. Ao circular, esse livro não cessa de criar efeitos, causar, mobilizar. A partir dele o estilista faz da letra de Marques tecido que veste os corpos, moda que reserva um traço artístico e também se torna objeto de consumo.

Enfim, como este texto testemunha, Ô fim do cem, fim não deixou de causar em nós um impacto, cada um a sua maneira, e nos colocou a trabalho. Paulo Marques foi a “bateria” que nos fez deixar algo de nosso próprio traço nessa “matéria”. O livro de Paulo Marques segue derivando sem fim, cem fins…

Ednei Soares,
Fernanda Costa e
Virgínia Carvalho,
todos psicanalistas e causados pelo Ô fim do cem, fim.

Agradecimentos especiais
a Paulo Marques de Oliveira, o Mestre dos Mestres, autor do Ô fim do cem, fim;
a Cao Guimarães, cineasta e artista plástico, diretor do documentário O Fim do Sem Fim;
a Beto Magalhães, cineasta, diretor e produtor do documentário e
a Nelson Pimenta, músico do Grivo, que gentilmente nos concederam a entrevista;
à Marina Acúrcio, editora do livro,
a Augusto Rodrigues Borges, também editor, que nos concedeu com prontidão a entrevista;
a Ronaldo Fraga, estilista mineiro e criador da coleção Ô fim do cem, fim.

REFERÊNCIAS

BACH, J. S. A Paixão Segundo São Mateus. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=leX2Qs8qqwc.
Desfile Ronaldo Fraga no SPFW (Inverno 2013). GNT Moda.Disponível em: <http://gnt.globo.com/moda/materias/desfile-ronaldo-fraga-no-spfw-inverno-2013.htm#1449=1>.
FRAGA, R. Ô fim do cem, fim…. FNAC. jan. 2013. Disponível em: <http://www.agendafnac.com.br/evento/ronaldo-fraga-o-fim-do-cem-fim>.
MAGALHÃES, B.; GUIMARÃES, C. Entrevista concedida à equipe da Derivas. Belo Horizonte, 2013. Formato: arquivo de áudio.
O FIM do sem fim. Direção: Beto Magalhães, Cao Guimarães e Lucas Bambozzi. Produtor: Beto Magalhães. Belo Horizonte: Diphusa/ Bananeira Filmes/ Cinco em Ponto, 2001. (16 mm/ Super-8/ mini DV). Trilha Sonora Original: O Grivo. Trechos disponíveis em: <http://www.caoguimaraes.com/obra/o-fim-do-sem-fim>.
OLIVEIRA, P. M. Ô fim do cem, fim. Belo Horizonte: Vereda, 2011. Trechos disponíveis em:http://www.veredaeditora.com.br/livros.php.
SANTOS, A. Entrevista concedida à equipe da Derivas. Belo Horizonte, 2013. Formato: arquivo de áudio.

 

 

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