Psicose e o ordinário no primeiro ensino de Lacan

 

Henri Kaufmanner

 

Não há dúvidas de que o programa de investigação sobre as psicoses ordinárias, inaugurado com a proposição de Jacques-Alain Miller, orienta um campo que se faz fundamental em nossos tempos, tempos em que as mudanças ocorridas no mundo com a subida ao Zênite do objeto a produzem consequências em todos, levados que somos pela dominância da lógica do consumo capitalista sobre o laço social. Hoje vivemos na era em que os objetos e os imperativos de gozo que determinam sua prevalência dominam a cena, em que os modos de gozo se arranjam como esforço de operar sobre a inexistência do Outro. Sabemos, contudo, que nem sempre foi assim. Presenciamos a transição de um mundo sustentado em torno da crença no pai, para um mundo cuja deposição nos surpreende a cada vez. A própria invenção da psicanálise, tributária do avanço da ciência, desvela em sua construção o que pode ser vislumbrado a partir das elaborações freudianas, como seu esforço diante do declínio do pai.

O primeiro ensino de Lacan, particularmente suas elaborações sobre Schreber, nos mostraram como um psicótico pode se virar sem o recurso ao semblante paterno. Não seria impróprio especular que num mundo onde o laço social intoxicado pela lógica do consumo derivada do avanço do discurso do capitalismo, os psicóticos, afeitos por estrutura a lidar com a incidência de um gozo muitas vezes invasivo sobre seu corpo, sem o recurso de um discurso estabelecido,[1] estariam mais à vontade. O assim chamado individualismo de massa não seria para eles algo assim tão desconcertante. A psicose pode, desse modo, nos ensinar a operar num mundo em que o que está em jogo é a nossa capacidade de lidar com a presença de um gozo veiculado pelo imperativo de seus gadgets ou por outros múltiplos objetos de consumo, um gozo não tratado pelo pai, feminizado na insistência superegoica materna. Não por acaso as adições e compulsões, a angústia e as passagens ao ato dominam o cenário que se apresenta para a clínica, bem como convidam às lógicas de segregação e de controle. A falência do pai e o real que aí incide abre espaço para soluções bipolares.

É nesse cenário que a noção de psicose ordinária se faz ainda mais interessante. É o próprio Miller quem sugere que não se trata de um nome que delimita um sentido definido, mas de um campo de investigação, para o qual somos todos convidados a participar acrescentando algo a partir de nossas experiências.[2] Os conceitos em psicanálise, acostumamo-nos a isso, não se produzem por uma mera decantação de um saber exposto nem funcionam como designadores rígidos. A partir desse convite ao trabalho, proponho pensar, neste texto, o que haveria de ordinário não somente nas psicoses ordinárias, mas também nas outras, e o que haveria de continuísta nesse ordinário.

O declínio do sentido e suas consequências clínicas

Aprendemos a conhecer a psicose a partir da história da loucura. Os tratados psiquiátricos clássicos que inspiravam Freud e que continuam inspirando, pelo menos a nós, psicanalistas, foram construídos a partir da minuciosa observação e reflexão clínica de seus autores, que se “internavam” nos asilos juntos com aqueles loucos extraordinários. Ali, a partir de sua loucura, surgiram as descrições da psicose pelas quais nos orientamos por tantos anos e que, ao mesmo tempo que nos permitiram avanços numa abordagem clínica do sofrimento dos então chamados alienados, produziram também a crença de que a psicose era o outro nome da loucura.

Os tempos mudaram, o esvaziamento do sentido que concorre com o declínio da função do pai e a dominância de um gozo não-todo na cultura esfacelaram a cadeia de sentido que até então sustentava a clínica dita “clássica”.

Do lado da psiquiatria nos encontramos diante de soluções que em sua pragmática buscam dar conta dessa fragmentação da cadeia de sentidos. Os conceitos presentes nas novas classificações psiquiátricas mudam frequentemente, a cada novo suspiro da indústria de tecnologia. Não por acaso o manual mais recente produzido, que tantas discussões e divergências vem produzindo no seio da própria comunidade de psiquiatras, mudou seu nome de DSM V para DSM 5:

Um dos objetivos da Força-tarefa foi definir o DSM-5 como um documento “vivo”, para que alterações futuras pudessem ser feitas rapidamente em resposta aos avanços científicos. Os membros da Força-tarefa concluíram que a capacidade de responder de maneira rápida e ágil seria mais bem alcançada por meio do numeral arábico no lugar dos numerais romanos, os quais têm sido usados desde que o DSM-II foi publicado.... Para simplificar, alterações que ocorrerão antes da próxima revisão completa do manual poderão ser designadas como DSM 5.1, DSM 5.2, e assim por diante.[3]

Verificamos, então, algo que nos deixa estupefatos: aquilo que buscava ser uma linguagem única da psiquiatria, numa tentativa de fazer um laço a partir dessa língua única, revela, dessa forma, sua face utilitária. Ali onde o intento era unificar a linguagem psiquiátrica pulverizada pelo declínio do sentido na clínica, fazendo existir a comunicação onde há o mal-entendido, permitindo de tal forma a transmissão da verdade do diagnóstico, encontramos hoje mais um gadget. Trata-se de um gadget muito presente em nosso mundo: o aplicativo. Essa é a resposta da psiquiatria à absoluta falta de estabilidade na relação de sentido entre o significante e o significado.

O DSM reflete, então, de maneira clara, o declínio do sentido que se tornou evidente em nossos tempos. A estabilidade de sentido somente se faz possível num discurso a partir de uma regularidade dos semblantes, desde que essa regularidade tenha como efeito a produção de um mais-gozar como referente. Quantas vezes já não nos vimos no tratamento da psicose, na busca de uma certa regularidade na transferência, esquivando-nos do capricho, naquilo que às vezes chamamos de tratamento do Outro. A experiência com a psicose nos alerta sobre a importância dessa estabilidade dos semblantes bem como de uma circunscrição desse mais-gozar.

Ultimamente, o Outro da psiquiatria é chamado de científico por seus adeptos. Diante de seus caprichos e da crença do seu saber universalizante sobre o objeto corpo, proliferam os nomes e a segregação resultante desse imperativo.

Na psicanálise, o Édipo foi, desde Freud, e mesmo depois dele, o discurso que sustentava essa regularidade capaz de estabelecer, mediante a significação fálica, uma relação estável entre significante e significado, e o objeto a é o semblante do mais-gozar dessa relação.

Ao reduzir os corpos à sua dimensão biológica e contábil, o avanço da ciência pulverizou o campo semântico no qual a clínica psiquiátrica mantinha sua estabilidade. Na psicanálise, acompanhamos também de forma concomitante ao declínio da formalização clínica da psiquiatria, o declínio do Édipo e da significação fálica como ordenadora do sentido sexual do significante.

Freud e a psicose ordinária

Embora a discussão sobre a psicose ordinária ganhe em importância e tenha prevalência particular nos dias da hoje, a experiência clínica de cada um de nós sempre esteve atravessada por pacientes cujo diagnóstico era difícil, e que algo relativo à psicose, algo perceptível, porém não muito localizável, invadia a transferência. Com alguma frequência nos deparamos com pacientes que acabamos por chamar de inclassificáveis e que encontram nas formulações de borderline da psicologia do ego e das classificações psiquiátricas mais recentes, uma acomodação que eu chamaria de perigosa e irresponsável. Essa ‘normalidade’ psicótica, entretanto, sempre se fez presente, embora fosse desconhecida pela precariedade dos instrumentos de leitura que a noção de psicose ordinária busca hoje arregimentar.

Encontramos sob a pena de Freud uma interessante observação que nos ajudará a pensar no que seria o ordinário na psicose.

No livro O inconsciente, de 1915, mais precisamente no capítulo Avaliação do inconsciente, Freud[4] se refere explicitamente à esquizofrenia, conceito que àquela altura já havia sido cunhado por Bleuler por influência da própria psicanálise. Ali, Freud assinalava que seria muito limitado pensar o inconsciente apenas pela vida onírica e pelas neuroses de transferência, indicando que uma análise do que ele chamava de neuroses narcísicas, forma pela qual se referia às psicoses, tornaria mais tangível o enigmático inconsciente.

Nesse momento, Freud nos mostra que o percurso da libido é diferente nas psiconeuroses narcisistas e nas neuroses de transferência. Se nestas últimas a libido é retirada do objeto real e investida primeiramente num objeto fantasioso e, em seguida, num objeto recalcado, na esquizofrenia, após o processo de repressão, a libido que foi retirada não procura um novo objeto; ela se refugia no ego, o que restabelece uma primitiva condição de narcisismo de ausência de objeto. É interessante o caminho percorrido por Freud para mostrar que, sem o recurso da fantasia, sem a sustentação do semblante fálico, há, na psicose, um retorno da libido a uma primitiva condição narcísica, sem objeto, um retorno ao corpo.

Essa elaboração freudiana está bem de acordo com o binarismo neurose/psicose com o qual vínhamos convivendo também a partir das elaborações de Lacan. Vemos aí a referência a um objeto fantasioso na neurose, objeto que, para tensionar a pulsão, deve se apoiar sobre um objeto recalcado, o - j da castração, onde podemos ler com Lacan, o a/-j. Já o psicótico, carregaria o objeto a no bolso.

Ainda nesse texto, Freud nos apresenta algumas vinhetas clínicas. Uma delas é de uma paciente de Victor Tausk, que após uma discussão com o amante, se queixou de que seus olhos não estavam direitos mas tortos. Ela mesma, de maneira consciente, ressalta Freud, dava a explicação para seu sintoma dizendo que seu amante era um hipócrita, um entortador de olhos e, assim, ter-lhe-ia entortado os olhos. Diferentemente de uma histérica que teria entortado convulsivamente os olhos, para essa paciente, sua relação com o órgão corporal arrogou-se para si a representação de todo o conteúdo de seus pensamentos.[5] Cunha-se, assim, em Freud, o conceito de “língua de órgão”.[6] Na esquizofrenia, diz ele, as palavras estão sujeitas a um processo igual àquele que interpreta as imagens oníricas dos pensamentos oníricos latentes: o processo primário. Passam por uma condensação e, por meio do deslocamento, transferem integralmente suas catexias umas para as outras. O processo pode ir tão longe, que uma única palavra, se for especialmente adequada devido às suas numerosas conexões, assume a representação de todo um encadeamento de pensamento. Não estaríamos aí diante da holófrase estabelecida por Lacan em seu primeiro ensino, e que teria algo de sua lógica retomada posteriormente na criação do conceito de lalangue?

Freud acrescenta, ainda no mesmo artigo, três vinhetas bem interessantes. A primeira delas diz respeito a um paciente que se afastou de todos os seus interesses na vida, em função do mau estado da pele de seu rosto: ele tinha cravos no rosto, os quais espremia com grande satisfação, pois esguichavam ao ser espremidos. Em consequência desse ato, surgia uma profunda cavidade, o que provocava nele forte censura. Segundo Freud, para esse paciente, espremer os cravos era um nítido substituto para a masturbação, e a cavidade que surgia era o órgão genital feminino, isto é, a realização da ameaça de castração. Para Freud, o paciente fazia da pele o palco de seu complexo de castração.

O segundo caso é aquele de um paciente que levava horas para se vestir ou tomar banho. Ele também explicava conscientemente o significado de suas inibições. Ao calçar as meias, por exemplo, ficava perturbado pela ideia de que ia separar os pontos da malha, os furos e, para ele, cada furo era um símbolo do orifício genital feminino.

Finalmente, o terceiro caso se refere a um paciente que também levava muito tempo para calçar as meias. Sua explicação era de que seu pé simbolizava um pênis e que a meia representava um ato masturbatório. Ele tinha que ficar colocando e tirando a meia, em parte para completar o quadro da masturbação, em parte para desfazer esse ato.[7]

O que chama a atenção de Freud é que nas três vinhetas, mais notadamente na segunda e na terceira, os pacientes, sob outros aspectos, comportavam-se exatamente como se sofressem de uma neurose.[8] Não notamos em seu relato, mesmo no primeiro caso originariamente conduzido por Tausk, nenhuma referência a algo a mais que pudéssemos chamar de fenômeno elementar, e a singularidade da relação com o corpo era o elemento que mais ressaltava.

O conceito de “língua de órgão” surge para dar conta desse efeito direto da palavra sobre o corpo. Freud mostra, a seu modo, que alguma desordem na articulação entre o simbólico e o imaginário desarticula a representação de palavra e a representação de coisa e, com isso, a letra incide diretamente sobre o corpo. Não me parece impróprio considerar que, ao nos apresentar esses casos, Freud nos apresenta o que, hoje em dia, poderíamos interrogar como psicoses ordinárias.

A partir dos exemplos trazidos por Freud, concluímos que os pacientes em questão tratam o gozo invasivo em seu corpo sem o recurso à referência fálica e à topologia imaginária do corpo decorrente desta. Esses sujeitos lidam com a dimensão real do buraco, sustentado na afirmação de Freud de que às vezes um buraco é um buraco.

Sobre as externalidades

Em seu “retorno à psicose ordinária”, Miller sugere, nos casos em que não estejamos seguros da presença dos elementos necessários à definição de uma neurose, que procuremos os pequenos indícios, mais especificamente alguma desordem provocada na junção mais íntima do sentimento de vida do sujeito.[9] A partir dessa desordem, ele nos convoca a localizar as três externalidades: a corporal, a subjetiva e a social.

Tal orientação nos remete a Lacan em De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose.[10] Podemos acompanhar nesse texto a sequência dos trabalhos de Lacan sobre Schreber, trabalhos que encontram na topologia do Esquema I a sua escrita. A referência de Lacan a uma desordem do sentimento de vida surge posteriormente ao desenvolvimento das ideias mediante as quais ele discorre sobre o furo no Outro. Quando o chamamento ao pai encontra não o significante, mas o furo, teremos aí a foraclusão, que, por carência do efeito metafórico, repercutirá com um furo correspondente na função fálica. Essa falência da metáfora é o que Freud observava em seus casos e que Miller retoma ao evocar perturbação mais intima do sentimento de vida e em suas externalidades. A externalidade, aquilo que não se inclui, não deixa de convocar também a ideia de algo que não se amarra. As externalidades dizem respeito aos obstáculos existentes para que um falasser constitua um corpo, uma subjetividade, uma sociabilidade. O ordinário diria respeito a como cada um se vira com tais obstáculos.

Ao longo dos anos 1950, desde O seminário, livro 2: o eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise, Lacan organizou sua topologia do inconsciente em torno da ideia de junção entre o simbólico e o imaginário. Embora sua formalização sobre o real não se mostrasse ainda tão determinante, como viria a ser ao final de seu ensino, ele sempre insistiu que na junção entre o simbólico e o imaginário restaria uma hiância, na qual a psicanálise incide. Seria nessa junção que pela então chamada metáfora paterna operaria o falo. As externalidades apontadas por Miller revelam os efeitos, as repercussões do encontro com essa hiância não recoberta em sua face simbólica pelo Nome-do-Pai e em sua face imaginária pelo falo, o que comumente notamos como P0Φ0.

Para Lacan, nesse momento, o que aconteceria ao sujeito em sua estúpida e inefável existência, estabelecendo o binômio neurose/psicose, estaria ligado ao que se passa no Outro.

“Que sou eu nisso?”, concernente a seu sexo e sua contingência no ser, isto é, a ele ser homem ou mulher, por um lado, e por outro, ao fato que poderia não sê-lo, os dois conjugando seu mistério e enlaçando-o aos símbolos da procriação e da morte. Que a questão de sua existência inunde o sujeito, suporte-o, invada-o ou até o dilacere por completo, é o que testemunham ao analista as tensões, as suspensões e as fantasias com que ele depara; mas resta ainda dizer que é sob a forma de elementos do discurso particular que essa questão no Outro se articula.[11]

Nem tão descontinuísta assim

Quando retornamos ao Lacan daqueles anos, encontramos elementos que hoje, à luz de seu último ensino, ganham uma clareza que talvez não se revelasse tão facilmente quando de uma primeira leitura.

Uma leitura cuidadosa revela, por sua vez, que, na verdade, Lacan falava não de um simbólico organizado, mas de um simbólico infinito, fragmentado, não totalizável, que tinha como característica fundamental uma presença que ele, às vezes, denominava de rasgada. É o que encontramos, por exemplo, em seu comentário sobre o sonho de injeção de Irma, em O seminário, livro 2.[12] O simbólico que Lacan operava então e que se encontrava na noção de inconsciente como um discurso contínuo do Outro, trazia em si algo do real.

Para esclarecer tal ponto, tomemos como referência a noção de contínuo, que ganha nesse momento fundamental importância. Lacan, discípulo de Koyré, trabalhava com questões matemáticas, e a construção dos esquemas presentes em Questão preliminar, que se utilizam do plano projetivo e da função da hipérbole, revelam como as noções de infinito real e contínuo estavam presentes desde então, embora sua presença mais explícita se daria somente anos depois, particularmente a partir do seminário A lógica do fantasia.

Retomemos uma citação de Koyré sobre o contínuo:

É exatamente essa propriedade quase inefável da expressão contínua que aparece nas grandezas contínuas e que faz com que o espaço infinito corresponda na sua totalidade a qualquer uma de suas partes, e que transposto para um segmento qualquer de uma reta geométrica, ele possa ser representado por ela. É exatamente aqui, na passagem do contínuo puro, em si, para a grandeza contínua, para a parte limitada do espaço, que se situa o ‘abismo’ – este abismo que, de fato, está preenchido de todas as suas partes reais, as retas, os corpos, etc.[13]

Para Koyré, a questão fundamental é saber de que modo o contínuo, que transcende a qualquer determinação de grandeza, pode se tornar uma reta ou um corpo. Ele diz: “O que não podemos apreender é a ideia de contínuo”.[14]

Ainda que as elaborações lacanianas não operassem naquele momento com a noção de real tendo o mesmo estatuto que este viria a ter posteriormente, constituindo o eixo da evolução de seu último ensino, a partir desse fragmento de Koyré é possível reconhecer nesse contínuo uma familiaridade com a noção de real que irá prevalecer. Tomada nessa aproximação conceitual, a citação de Koyré esclarece a máxima segundo a qual o real é o que retorna sempre no mesmo lugar. As elaborações de Lacan se orientavam em torno da dimensão estrutural que teria a junção do simbólico como essa grandeza contínua com o imaginário, junção que seria necessária para a constituição de um corpo, mas que, ao mesmo tempo, seria incapaz de obturar uma hiância intransponível, esse abismo ao qual se refere Koyré, e que se mantém como impossível, entre a grandeza contínua e o que ele chama de contínuo puro. O sujeito em sua inefável existência é aqui resgatado no inefável também presente na citação. Não somente temos aqui uma leitura possível do “esquema L” de Lacan como também podemos tornar mais inteligíveis algumas de suas razões para escrever a pulsão no andar superior de seu grafo do desejo, no texto Subversão do sujeito. A enunciação do sonho é sempre relatada em sua atemporalidade, apreendida[15] de forma fragmentada, impossível de ser tomada em uma totalidade. Diante de um sonho nos deparamos com uma hiância, com um abismo inapreensível, com aquilo que Freud chamava de umbigo do sonho − que é tamponado somente a partir dos operadores de sentido localizados na estrutura imaginária da fantasia e que de seu lugar intermediário faz um circuito com o primeiro andar do grafo. Essa dimensão contínua do simbólico, que permite que o espaço infinito corresponda a qualquer uma de suas partes, pode ser reconhecida na noção de holófrase e, posteriormente, na noção de lalangue.

A questão ordinária em jogo é como ‘fazer um’ nesse contínuo inapreensível. Para Lacan, isso somente aconteceria a partir da junção entre esse simbólico de grandeza infinita e a finitude do imaginário que, no humano, não é sem o simbólico. Somente essa junção, e a hiância como seu resíduo, caracterizada no Seminário, livro 2 pelo “esquema L”, daria ao humano o encontro com a boa forma, visto que diferentemente dos animais e afetado pela dimensão rasgada da palavra, para o humano reinaria a má forma.[16]

Em A terceira, Lacan afirma que o inconsciente é um saber produzido, elucubrado sobre lalangue, e não há nenhuma relação natural, original entre o corpo que fala e lalangue. Essa ligação se produz somente por efeito do real com que se goza. Porém, o corpo ao natural é desamarrado desse real, que, por mais que exista, em virtude de que faz seu gozo, lhe segue sendo opaco.[17] É lalangue que civiliza esse gozo, levando-o a gozar de objetos, e o objeto a é o primeiro desses objetos que se constitui como o núcleo elaborável do gozo. Na perspectiva do que vimos trabalhando, não há como não reconhecer uma certa continuidade entre o que Lacan sustentava na década de 1950 e o que encontraremos mais ao final de seu ensino. O que delimita de maneira contundente a diferença entre esses dois momentos é a presença do real do corpo como lugar de gozo, diferença que se mostrou fundamental na evolução do ensino de Lacan.

O falo é a razão

Nesse caminho seguido pelo ensino de Lacan, o falo é o que permite ao sujeito operar com uma borda a sua falta-a-ser abismal, contando-se como um. Como pode o falo funcionar como articulador do simbólico e do imaginário, como operador que permite o entrecruzamento da dimensão contínua do inconsciente com a unidade imaginária?

Em A significação do falo Lacan afirma: “O falo como significante dá a razão do desejo (na acepção em que esse termo é empregado como ‘média e razão extrema’ da divisão harmônica)”.[18]

Não nos ocuparemos aqui dos desenvolvimentos matemáticos mais complexos envolvidos nessa afirmação. Imaginemos apenas uma reta qualquer, uma reta contínua, por exemplo, que seja marcada de maneira assimétrica, por três pontos. Uma reta é dita cortada em extrema e média razão quando a reta inteira está para o maior segmento assim como o maior segmento está para o menor. Essa reta constituída por essa proporção em seus segmentos se chama “segmento áureo”, e chama-se φ (phi) o número que designa o valor dessa razão e que pode também ser conhecido como “número de ouro”.

Uma década mais tarde Lacan retomará seus trabalhos sobre o “número de ouro”, associando-o ao objeto a. Este, entretanto, não havia ainda ganhado sua formalização mais definitiva, o que somente viria acontecer a partir do seminário sobre a angústia. Lacan associava, então, o “número de ouro” ao falo, e a citação presente em seu escrito é bastante assertiva, não deixando dúvidas sobre o caminho escolhido.

Pensemos, então, nesse discurso contínuo do Outro. Demarquemos ali, aleatoriamente, três pontos. Agora, de maneira não aleatória, escolheremos como letras para esses pontos as letras P, M e C, que representariam sucessivamente pai, mãe e criança. Seguindo a lógica da divisão harmônica, o “número de ouro” seria a constante, ou seja, um número que, embora fora dessa reta, sustentaria a “proporção áurea”, aquela em que o segmento escolhido, PM, está para o segmento maior MC, assim como o segmento maior, MC, está para o menor, CP.

 

Figura 1

 

Podemos também visualizar estas proporções num dos passos de Lacan na construção de seu Esquema R a partir do plano projetivo:

 

Figura 2

 

Num segundo tempo, vamos dar nomes aos intervalos presentes em nossa reta. Chamemos o intervalo MP de NP, o intervalo MC de DM, e o intervalo CP de X. Se montarmos a equação da “proporção áurea”, teremos:

Figura 3

 

Não é curioso que a letra escolhida para a notação do “número de ouro” seja o φ, a mesma letra utilizada por Lacan para matemizar o falo? E que essa letra grega tenha sido escolhida por ser a primeira letra do nome do arquiteto grego que em suas construções utilizava-se frequentemente do retângulo áureo e que se chamava Phidias?

A “proporção áurea” é considerada a mais bela das proporções. Afinal, sustentada em uma constante, ela permite manter uma ordem, não importando a infinidade de divisões assimétricas possíveis. As formas geométricas que mantém entre si a proporção áurea são consideradas as formas mais belas. Não há como não retomar essa ideia e transportá-la para a elaboração lacaniana. O neurótico é aquele que, convocado pelo desejo do Outro, reconhece na imagem antecipada de seu corpo a mais bela das formas, a proporção fálica tão desejada. Diante da má forma dominante no humano, diante de seu desamparo provocado pela incidência de um gozo infinito em seu corpo, o falo, na perspectiva matemática de sua aproximação, constitui para esse sujeito uma proporção onde ele pode se acreditar: Um belo, um constantemente belo, não importando a infinidade dos desencontros na vida.

Não foi também por acaso que anos depois, mais especificamente em 1966, ao retomar suas elaborações matemáticas, Lacan acrescenta uma nota à sua Questão preliminar,[19] lembrando aos seus neuróticos leitores que o “esquema R” é um plano projetivo e que a tela da realidade ali desenhada é, na verdade, uma banda de Moebius, cujo furo se constitui pela extração do objeto a. O neurótico acredita na beleza da forma, na ilusão de um quadrado no “esquema R”. O falo é, portanto, nesse momento do ensino de Lacan, uma proporção “imajada” pelo neurótico a partir do desejo do Outro ali, onde não há proporção. A entrada do pai, numa boa posição em relação à mãe e à criança, instrumentaliza o sujeito em seu esforço ordinário por fazer um corpo, ao preço de fazer de sua vida ilusoriamente harmônica uma constante muitas vezes monótona.

O psicótico, em função da forclusão do Nome-do-Pai, estaria desprovido da razão matemática, estaria sem o recurso ao φ. Sem a proporção do desejo do Outro, estabelecida pelo falo, o psicótico sofreria com a experiência da dissolução imaginária e com o horror da presentificação da hiância. Caberia ao psicótico a formulação de uma nova maneira de operar com essa tensão, efeito da hiância entre imaginário e simbólico; caberia a ele, quem sabe, uma nova razão, uma nova proporção que sustentasse essa junção.

É o que se passa com Schreber e sua intuição de ser a Mulher que falta aos homens. Toda a construção schreberiana, sua luta, se faz nessa junção do Imaginário com o Simbólico. O “esquema I” é a topologia de Lacan para esse esforço, a solução singular de Schreber. Anos mais tarde, o nó borromeano sintetizaria muito melhor a preocupação de Lacan com o singular de cada solução.

Por essa via, acreditamos que a elaboração de Lacan na década de 1950 já delineava, embora de maneira ainda não muito clara, algo da ordem da multiplicidade nas invenções psicóticas, mais além do binômio neurose/psicose. Não podemos negar, entretanto, que foi o encontro com Joyce que lhe permitiu ampliar definitivamente o caminho para uma clínica em que pudéssemos sair da crença harmônica do binômio para uma realidade em que a neurose é apenas mais uma forma, entre muitas outras assimetrias, de tratar da afetação do corpo pela língua. Joyce, que segundo Lacan, “[...] tinha o pau um pouco mole”, “[...] com sua arte supriu sua firmeza fálica. “[...] E é nisso que sua arte é o verdadeiro fiador de seu falo”.[20] Joyce fez de sua arte um sinthoma, fez dela seu escabelo, daí a sua singular relação com a beleza, não mais atrelada à dominância imaginária da forma.

Como vimos, a psiquiatria respondeu ao declínio da clínica, ao domínio do não-todo no mundo contemporâneo criando uma máquina imaginária de produzir nomes. Infinitamente. Uma prática tão idealizada não teria como resultar em algo diferente disso em nossos tempos. O DSM é hiperbólico, assintótico. Já a psicanálise preferiu avançar em sua externalidade ao Outro, particularmente necessária, quando no mundo nos damos conta a cada vez que o Outro não existe. Operamos com o infinito de singularidades, com o um a um do sinthoma e do gozo de cada falasser.

 

Henri Kaufmanner é psiquiatra, psicanalista, membro da EBP-AMP, preceptor da residência em psiquiatria da FHEMIG, doutorando em psicologia pela UFMG.
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Referências

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MILLER, J.-A. Efeito do retorno à psicose ordinária. Opção Lacaniana Online, São Paulo, EBP, ano 3, n. 1, nov. 2010. Disponível em: <http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_3/efeito_do_retorno_psicose_ordinaria.pdf>. Acesso em: 17 mar 2017.

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Notas

[1] LACAN, (1972) 2003, p. 475.

[2] MILLER, 2010.

[3] BLACK, 2015, p. 4. Agradeço a Vicente de Nardin pela indicação desta referência.

[4] FREUD, (1915) 1969, p. 224-233.

[5] FREUD, (1915) 1969.

[6] Optamos pelo uso de “língua de órgão”, diferente de “fala de órgão” como consta na tradução da Editora Imago.

[7] Retomo aqui desenvolvimentos presentes em meu texto Índices de forclusão: da fala à escritura, publicado na revista Curinga - Há algo de novo nas psicoses, n. 14, abr. 2000, EBP-MG.

[8] FREUD, (1915) 1969.

[9] MILLER, 2010.

[10] LACAN, (1955) 1998, p. 537-590.

[11] LACAN, (1957-1958) 1998, p. 555-556.

[12] LACAN, (1954-1955) 1985, p. 187-220.

[13] KOYRÉ, 1991, p. 18.

[14] KOYRÉ, 1991, p. 18.

[15] LACAN, (1958-1959) 2016.

[16] LACAN, (1954-1955) 1985, p. 114.

[17] LACAN, (1974) 1988, p. 89.

[18] LACAN, (1958) 1998, p. 700.

[19] LACAN, (1955) 1998, p. 559.

[20] LACAN, (1975-1976) 2007, p. 16.

 

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