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Semblância e propaganda totalitária em Hannah Arendt 

Lucas Barreto Dias

Uma das principais definições de Hannah Arendt sobre o espaço público é formulada em A condição humana, de 1978. Nessa obra, a autora o define como um espaço comum de aparição plural, isto é, a sua publicidade diz respeito a estar em um local que possibilita falar e ouvir, ver e ser visto, a agir junto a uma pluralidade de homens em um mundo comum. Ao identificar o conceito de público com a aparência e com o mundo, Arendt põe em destaque um de seus principais conceitos: a pluralidade humana, condição de toda vida política. O mundo comum não é o domínio de um indivíduo ou grupo, antes, ele diz respeito àquilo que separa e une cada um que o habita, é o espaço-entre [in-between; Zwischen] que possibilita aos homens compartilharem uma realidade que diz respeito a todos. Essa realidade, pensa Arendt, é constituída sob a qualidade da aparição.

O tema da aparência do espaço público auxilia no tom político que Arendt pretende ressaltar ao delimitar a vida pública por meio de como nos revelamos aos demais e a como somos impactados por suas aparições. Essa bi-implicação envolve um pertencimento de cada indivíduo a uma pluralidade que ele constitui e que é por ela constituído. Só é possível que haja espaço público sob o signo da aparência de uma pluralidade humana que habita um mundo comum.

Em um tom sugestivamente menos político, Arendt retoma o tema da aparência em sua derradeira obra. Ao ressaltar, em A vida do espírito, o valor da superfície, a pensadora confere ao conceito de pluralidade um novo status: torna-se, agora, lei da Terra. Essa mesma pluralidade, pensa Arendt, é compreendida sob o conceito de ser-do-mundo, isto é, não apenas os seres humanos, mas os demais animais são interpretados à luz da noção de aparência e possuem uma relação intrínseca com o mundo: não simplesmente estão localizados espacialmente no mundo, mas estão ligados a ele sob a noção de pertencimento, ser do mundo. Deixando de lado as discussões ontológicas que se poderia evocar a partir de tal aspecto, ressalto que Arendt nos transmite um aparato conceitual em torno da concepção de aparência que dá um peso ainda mais político à noção de espaço público. Isso porque, em A vida do espírito, Arendt ressalta que a aparência não diz respeito tão somente à revelação, em certos casos ela pode ocultar; mais ainda, ela pode, ao revelar, ocultar: mostrar algo sob o signo do que não é. A essa aparência que oculta ao revelar no modo da falsidade, Arendt chama semblância.

Minha intenção, aqui, é explorar estas considerações de Arendt acerca da aparência e da semblância e pensá-las relativamente ao espaço público. Mais especificamente, delimito minha interpretação ao uso de tais conceitos para pensar a destruição do espaço público impetrado pelo regime totalitário pela propaganda, isto é, quando o totalitarismo ainda galga o caminho para uma dominação mais efetiva.

Faço uma interpretação de que os regimes totalitários descritos por Arendt em Origens do totalitarismo, de 1950 – por meio de diversas táticas, como a propaganda, a “duplicação do mundo”, o terror e a ideologia –, engendram não a criação de um espaço de aparências (local onde a verdade e a mentira são possíveis e onde opiniões podem ser formadas), mas de um espaço de semblância, isto é, no local do mundo das aparências, impetram um mundo de semblâncias, onde só a mentira é possível e opiniões públicas não se desenvolvem. Penso, por fim, que tais instrumentais teóricos nos possibilitam pensar nossa contemporaneidade política marcada pela desinformação massificada e anti-intelectualista.

A fim de compreender o que significa indicar o totalitarismo como um regime antipolítico, penso, seguindo Arendt, no espaço público como um espaço de aparências, um campo em que a aparição dos diversos atores políticos é possível. Persigo uma pista para efetuar tal leitura que tem origem em uma passagem de A vida do espírito, em que Arendt diz: “o verdadeiro contrário da verdade factual, em oposição à racional, não é o erro ou a ilusão, mas a mentira deliberada”. Se na verdade racional é o erro que vem a considerado o seu contrário, ao falarmos da verdade factual – aquilo que ocorre no mundo –, o problema não se encontra meramente do engano ou ilusão (também possíveis), mas na mentira praticada deliberadamente. Como afirma Geraldo Pereira, em Verdade e política na obra de Hannah Arendt, de 2019, dizer a verdade se transforma em um modo de agir político quando nos encontramos em situações em que a mentira adentra o espaço político e nos afasta dos fatos: “a verdade dos fatos, nos momentos em que se opõe à mentira organizada e à disputa pela realidade com a ideologia, ‘atua’ politicamente como resistência”.

Ao afirmar a coincidência entre Ser e Aparência, Arendt atribui a este último conceito um aspecto fenomenológico que carrega consigo tanto a noção de verdade quanto o próprio conceito de semblância, não porque toda aparência se resuma a ser uma semblância, mas pelo fato de que “elas [as aparências] nunca revelam apenas; elas também ocultam”. Isso significa que a aparência possui o duplo aspecto de revelar e ocultar. Tal questão, inicialmente no modo como é tratada por Arendt, refere-se à aparição do mundo e ao parece-me (dokei moi) próprio de cada indivíduo que percebe este mundo. Aqui, a aparência pode me mostrar o mundo em sua realidade (que só será confirmada com a pluralidade humana), mas também pode me levar à ilusão, ao erro: semblâncias, isto é, aparências, que ao invés de revelar o mundo, escondem-no por meio de um mostrar que não é ele mesmo; o que aparece não é aquilo que é real e verdadeiro, mas é o falso que é por mim apreendido. No entanto, segundo a pista acima, não é o erro o “verdadeiro contrário” da aparência verdadeira, o contrário da realidade não é simplesmente a ilusão, mas, sobretudo, a mentira deliberada, a fala que tem como finalidade ocultar uma verdade; não se trata, aqui, de um mero engano daquele que discursa, mas faz parte de seu objetivo a utilização do discurso na condição de encobridor de mundo. Em outras palavras, o problema surge na produção intencional de um estado de coisas que leva ao erro e à ilusão de outros homens.

Dizer que não é o erro e a ilusão aquilo que está em maior oposição com a verdade factual significa dizer que, na medida em que provém do mundo fenomenicamente compreendido, a aparência pode ser apreendida na forma de verdade ou falsidade, e isso faz parte de seres que apreendem um mundo de aparências. No entanto, posto o mundo também ser compreendido junto a uma pluralidade que o compartilha comigo e o confirma, não se trata unicamente da apreensão fenomênica imediata do mundo, mas da interação entre aqueles que o habitam, de sua intrínseca intersubjetividade que se apresenta como inexorável para a percepção da realidade. Sobre isso, Arendt fala de uma tríplice qualidade-comum [commonness] que constitui o nosso senso de realidade: 1) os cinco sentidos que visam o mesmo objeto; 2) o contexto compartilhado que fornece o significado específico de cada objeto; 3) a confirmação plural daquilo percebido fenomenicamente. A indicação de que “nosso senso de realidade depende da aparência” já está presente em A condição humana, embora nessa obra ela se vincule mais especificamente à “existência de um domínio público”.

A verdade e a realidade podem ser quando não apenas um, mas uma pluralidade de homens confirma sua existência. Se, porém, um ou alguns desses homens decidem mentir deliberadamente, gera-se na pluralidade que compõe o senso comum a dúvida quanto à realidade. É no mentir proposital que se insere no mundo o oposto mais diametral possível da verdade factual e se cria um erro ou ilusão decorrente não do modo como esse mundo é apreendido diretamente por alguém, mas da maneira como outrem pretende que o mundo seja percebido pelos demais homens. A mentira deliberada é capaz de produzir um falso mundo caso atinja uma quantidade tamanha de seres humanos que acreditem nessa mentira e ajudem a propagá-la. A mentira, então, é o verdadeiro contrário da verdade factual por introduzir nos demais homens a possibilidade de erro e ilusão que anteriormente não existia.

O problema da mentira na política, para Arendt, expõe os riscos ao nos afastar da dimensão factual. O caso paradigmático, por certo, é o regime totalitário, o qual promove uma série de medidas que têm como fim retirar do espaço público seu caráter de aparência; sendo-lhe impossível a completa escuridão, resta a estratégia de criação de um mundo “fictício”, um mundo que aparece não pela revelação, mas pelo ocultamento. Na verdade, chamá-lo de “mundo” é quase um contrassenso, pois aquilo que o totalitarismo objetiva leva justamente à perda do mundo, à desmundanidade ou acosmismo [worldlessness; Weltlosigkeit], motivo pelo qual Alves Neto, em Alienações do mundo: uma interpretação da obra de Hannah Arendt, de 2009, afirma que a desmundanização totalitária é uma das principais formas de alienação do mundo diagnosticada por Arendt em toda sua obra. Ao fim, o que resta no regime totalitário é um espaço da aparência ofuscado, um mundo de semblâncias, uma ficção que não é capaz de abrigar a pluralidade humana e que produz o desamparo/solidão [loneliness; Verlassenheit] como experiência básica.

Em sua tarefa de compreensão do totalitarismo, o tema da visibilidade e da aparência da nova forma de governo faz parte da linguagem empregada por Arendt. De início, a autora identifica a propaganda como um dos elementos utilizados para a promoção de uma variada forma de aparição tanto do movimento quanto do regime totalitário. A função primordial da propaganda é gerar uma determinada forma de aparição do totalitarismo à população e ao mundo externo. Comandar uma massa de pessoas e organizá-las politicamente para os fins totalitários não era algo previsto pela história que antecede o século XX e que, não obstante a novidade, é de caráter imprescindível para esta forma de governo. A fim de reunir e manter a massa coesa, o movimento totalitário não apenas não abre mão da estratégia de propaganda, como coloca como central a mentira na formação da aparência totalitária, característica que Arendt julga indispensável para a compreensão do totalitarismo, pois “a propaganda dos movimentos totalitários (...) é invariavelmente tão franca quanto mentirosa”.

No processo que leva os movimentos totalitários ao poder, a utilização da propaganda se reveste de um cientificismo que tem como fim convencer a massa a partir de uma suposta natureza científica em sua tarefa. Se o mundo é repleto de imprevistos, então a pretensão totalitária será a de trazer ao mundo uma forma de governo que solucione quaisquer riscos de imprevisibilidade. Segundo Arendt, a propaganda bolchevista do stalinismo designa esta tarefa à lei da História, uma lei superior a quaisquer códigos legais positivos e que só o partido é capaz de ser o agente que a torne realidade. De modo análogo, o partido nazista lança mão de um cientificismo de ordem natural que tem a meta de transformar o mundo de acordo com as leis naturais, também superiores à positividade da lei humana. As leis são propagadas em tom de ameaça ao povo, de modo que aqueles não adequáveis ou que não se adequarem às leis da natureza ou da história não terão outro fim senão o desaparecimento. A propaganda, como pontua Arendt, reveste-se de um “cientificismo ideológico” junto a uma “técnica de afirmações proféticas” em que “o argumento independe de verificação no presente” afirmando “que só o futuro lhe revelará os méritos”. Já em sua versão inicial, como movimento totalitário que se desenvolve por meio da propaganda, o totalitarismo se apresenta em sua tentativa de mostrar o mundo não como ele é, mas como ele deve ser para que o domínio total seja possível. A renúncia de quaisquer verificações entre a fala e os fatos põe em destaque não apenas a tarefa totalitária de encobrir o que é, mas, sobretudo, de criar um simulacro da realidade.

Mais que o falso conteúdo cientificista, Arendt indica a pretensa infalibilidade do líder – o porta-voz da ideologia – como uma das características principais da propaganda totalitária. Esvaziada de conteúdo concreto e apoiada na ideologia, a propaganda é transformada pelo discurso do líder e dirigida para a massa sob a forma de saber científico acerca da realidade. É imprescindível, nesse processo, que a massa identifique o desejo do líder não como uma vontade particular, mas com o movimento próprio da História ou da Natureza. A fonte das leis sobre-humanas não é o elemento de destaque, mas a coerência lógica que elas são capazes de articular e a capacidade do líder de as realizar. Caso a realidade apareça distinta do professado pelo líder, dada a sua infalibilidade, não se trata de uma contradição no cientificismo, na lei ou no líder: o totalitarismo defende que o erro está não no que fora afirmado, posto o líder ser infalível, mas na realidade que não está conforme a História/Natureza.

Enquanto o totalitarismo existe sob a forma de movimento que visa o domínio total, ele não pode abdicar das estratégias de propaganda, que “exibe extremo desprezo pelos fatos em si, pois, na sua opinião, os fatos dependem exclusivamente do poder do homem que os inventa”. Aqui, os fatos são divulgados pelo movimento totalitário não como acontecimentos reais, mas como empecilhos para a realidade proveniente da infalibilidade do líder e da ideologia. Neste caso, nega-se, portanto, que os fatos componham a realidade do mundo, são transformados em nada mais que obstáculos para a execução da verdade totalitária por meio das leis da História/Natureza. O que está em questão é a fabricação do simulacro de uma verdade factual que será realizada pelo regime totalitário. A capacidade de adequar a realidade à ideologia – a fim de criar o mundo proposto pelo domínio total – só é possível, no entanto, quando o movimento toma o controle efetivo do governo, caso em que a propaganda se torna irrelevante e dá espaço para outras táticas de dominação.

Segundo Arendt, a eficácia da propaganda totalitária foi possível na Alemanha e na União Soviética porque as massas “não acreditam em nada visível, nem na realidade da sua própria experiência; não confiam em seus olhos e ouvidos, mas apenas em sua imaginação, que pode ser seduzida por qualquer coisa ao mesmo tempo universal e congruente em si”. Na medida em que nossa experiência do mundo envolve a pluralidade humana, a perda da confiança da realidade está diretamente ligada com a experiência atomizada que o totalitarismo acentua. O afastamento da vida pública proveniente do modelo político da modernidade produz uma massa de indivíduos desvinculados de uma pluralidade humana; esta massa, incapaz de ver e ouvir o que os outros falam e agem, é o alvo da propaganda, a qual expande cada vez mais a distância entre a realidade e os indivíduos.

Frente à crescente incapacidade de verificação que se acentua na massa, não se trata de falar do mundo como ele é, mas como ele pode ser segundo a lógica totalitária, “o que convence as massas não são os fatos, mesmo que sejam fatos inventados, mas apenas a coerência com o sistema do qual esses fatos fazem parte”. Se os fatos não condizem com aquilo proclamado pelo movimento, isso não evoca tanta comoção frente a um sistema consistente e à possibilidade de a realidade ser manipulável. A evidência dos fatos não é suficiente, torna-se até mesmo descartável; no sistema totalitário o que aparece só pode ser verdadeiro se corresponder à sua lógica, do contrário, a aparência factual é uma mera semblância que deve ser eliminada.

O regime totalitário, em sua ficção, acaba por retirar dos cidadãos a capacidade de adentrar no espaço público, mais precisamente, ele elimina as condições do político, de modo que não se trata apenas de um esvaziamento do público, mas de sua aniquilação. Agora não se é mais capaz da individuação e da diferenciação que a pluralidade promove, nem da compreensão e pensamento; trata-se de fazer parte de uma massa amorfa em que Todos são Um. A ação, aquela atividade que se dá entre os homens, não é mais possível numa sociedade atomizada, cuja principal atividade é o comportamento. Trata-se, aqui, do princípio de organização: organiza-se a massa atomizada que tem sua atividade reduzida, em parte, ao comportamento; nesse sentido, Arendt indica que “o verdadeiro objetivo da propaganda totalitária não era a persuasão, mas a organização”. Deste modo, substitui-se aquela atividade considerada desde os gregos como “a arte verdadeiramente política”, a persuasão, pelo comportamento previsível da massa. As técnicas de propaganda utilizadas na criação de um mundo fictício compõem um primeiro momento da fabricação de um mundo de semblâncias totalitário.

A organização totalitária age em conjunto com a propaganda, pois juntas pretendem “modificar as mentiras propagandísticas do movimento, tecidas em torno de uma ficção central (...), em uma realidade operante para construir (...) uma sociedade cujos membros ajam e reajam segundo as regras de um mundo fictício”. Organizar, aqui, tem o duplo sentido de organizar a própria estrutura do movimento totalitário na medida em que também organiza as massas. A organização do movimento, no entanto, não obedece a regras hierárquicas; baseia-se em dois pontos: o puro movimento e a vontade do líder. Caso se erguesse estruturalmente como uma tirania, isto é, seguindo um modelo tradicional, o totalitarismo não seria capaz de executar sua pretensão de domínio total. Uma vez que assumisse uma hierarquia conhecida de todos, tornaria previsível os possíveis sucessores do líder ao situar cada um em algum determinado nível do governo; tal atitude impossibilitaria o totalitarismo de manter o seu mundo fictício. Isso porque sua ficção visa, além da massa, aqueles que participam do movimento.

Deste modo, ressalto três aspectos que se perdem nesse processo: 1) a experiência, tendo em vista a desconfiança nos fatos; 2) o contexto compartilhado, dada a desmundanização; e 3) a pluralidade humana, posta a atomização. Sem a experiência, sem o contexto compartilhado e sem a pluralidade humana não há como assegurar o senso de realidade. A aparência não é mais capaz de revelar ou ocultar algo diretamente, a dúvida é perene: ao seguir a lei do movimento, a permanência – outro dos requisitos que asseguram a realidade do mundo – não tem lugar na organização totalitária.

Embora, como dito anteriormente, o termo semblância só receba a significação conceitual em A vida do espírito, creio ser possível se fazer uma leitura desse conceito no que tange às descrições da aparência do governo e do movimento totalitários em Origens do totalitarismo. Ao falar das organizações de vanguarda – que têm como fim diferenciar os membros efetivos do partido dos que são meramente seus simpatizantes –, Arendt nos chama a atenção ao dizer que elas emprestam “uma semblância de normalidade externa [semblance of outside normality] que amortece o impacto da verdadeira realidade de maneira mais eficaz que a simples doutrinação”.

A situação descrita acima por Arendt se insere no processo em que os movimentos totalitários galgam seu caminho ao governo. Assim, essa “semblância de normalidade” é seguida do isolamento dos membros para que eles pareçam normais aos simpatizantes, os quais ainda fazem parte de um mundo não-totalitário e “cercam os movimentos totalitários com um véu de normalidade e respeitabilidade que engana os membros acerca do verdadeiro caráter do mundo exterior tanto quanto engana o mundo exterior sobre o verdadeiro caráter do movimento”. A semblância de normalidade, como se percebe, é dupla, pois: 1) os simpatizantes garantem um aspecto de normalidade aos membros e ao mundo exterior na mesma medida em que 2) os membros representam uma normalidade frente aos simpatizantes com o intuito de atrair mais homens comuns para o movimento. A mentira de que haja uma normalidade é apresentada para conseguir adeptos entres os homens ainda não atomizados, assim como para não aparecer em sua verdadeira face para o mundo exterior. Mais que isso, a mentira reside entre os próprios membros que compõem até mesmo o mais alto escalão de liderança do movimento, pois, ainda que pensem assumir uma posição que exprima o seu poder e influência, nada do que presumem condiz com a efetiva influência que exercem junto ao líder. A semblância é necessária para manter o totalitarismo, visto que na manipulação da aparência que não revela a verdade, mas apenas a oculta, cria-se um sistema em que a ficção assume status de realidade. A aparência funciona tão-somente como semblância, produto da mentira deliberada, o extremo oposto da verdade factual.

Ainda em busca de criar uma semblância de normalidade, o totalitarismo faz uso do que Arendt que chama de “técnica de duplicação”: criação de departamentos institucionais inspirados na administração do Estado com intenção de mostrar que o movimento totalitário possuía o mesmo nível de normalidade que o mundo não-totalitário. Era a criação de um novo mundo que parecia imitar aquele do quotidiano, com a vantagem de agora se mostrar de um modo coerente e bem arranjado, segundo as leis sobre-humanas. Tais instituições não tinham, entretanto, um alto valor profissional como o tinham os modelos reais de que se faziam simulacro, “mas, juntas, criavam um perfeito mundo de aparências onde cada realidade do mundo não-totalitário era servilmente reproduzida sob a forma de embuste”. O mundo de aparências criado pelo movimento totalitário se baseia, todavia, não na faculdade de revelar a realidade, mas na produzida por meio da mentira deliberada: o que há aqui é a criação de um mundo de semblâncias. A realidade, agora sob a forma de embuste, não exprime senão uma falsa normalidade que se soergue lançando sombra sobre o mundo de aparências autênticas.

Para manter a farsa que engendra, o sistema totalitário não pode deixar escapar nenhuma camada que compõe a sociedade da qual surge, pois, se sua intenção é o domínio total, qualquer um que escape à manipulação totalitária é potencialmente uma ameaça de revelar a mentira sob a qual se ergue o totalitarismo. É em virtude disso que o modo de proceder do “sistema totalitário”, diz Arendt, “reside precisamente em eliminar a realidade que desmascara o mentiroso ou o força a legitimar as suas mentiras”. Posto que “na interpretação do totalitarismo, todas as leis se tornam leis de movimento”, sua pretensão de criar um sistema que propicie o perene domínio implica uma contínua mudança com base nas leis da Natureza e da História que evoca realizar. Para tanto, compreende Arendt, “a educação dos seus membros objetiva abolir a capacidade de distinguir entre a verdade e a mentira, entre a realidade e a ficção”; e a isto se segue a transformação de “qualquer declaração de fato em declaração de finalidade”.

É possível, assim, indicar uma dupla utilização da mentira: 1) aquela ligada à ideologia, “as mentiras ideológicas”; e 2) a que tem como propósito a subversão da realidade, “as mentiras táticas do movimento”. As mentiras ideológicas, fundadas nas leis da História e da Natureza, pedem a atuação das mentiras táticas para a confirmação da coerência lógica e da infalibilidade do líder. A duplicação do mundo – a superposição da ficção totalitária sobre a realidade factual – tem a finalidade de, na condição de mentira tática, legitimar as mentiras ideológicas. A semblância criada pelas mentiras táticas se une à ideologia e perpassa as camadas da sociedade por meio de uma educação que não mais diferencia a verdade da mentira, pois não se trata mais de falar de verdades, mas de resultados e de coerência. A ficção está vinculada ao resultado e coerência proveniente das mentiras ideológicas e das mentiras táticas, de modo a não deixar mais espaço para a realidade; em outras palavras, o totalitarismo transforma a ficção em realidade na criação de um mundo de semblâncias.

A produção da semblância de normalidade fundada nas mentiras ideológicas e táticas adquire um novo patamar quando o movimento totalitário ascende ao poder de modo efetivo. Como sua lei é uma lei do movimento, instaura-se um estado de instabilidade permanente, visa-se aniquilar a permanência não apenas do mundo real, mas até mesmo a do mundo fictício. Caso a ficção se estabilizasse, ficaria cada vez mais latente a possibilidade de revelação dos simulacros de realidade; quão mais tempo o mundo de semblâncias se fixe mais ele permite que se encontre seus erros, mais a mentira se revela como tal. É em vista disso que o bolchevismo fala de uma “revolução permanente”, enquanto o Nazismo exige uma “seleção [racial] que não pode parar”. A permanência precisa ser sempre evitada, posto ser um dos meios pelos quais a realidade pode ser comprovada; o novo regime político não tem como função inspirar um novo modo de vida, pois este implicaria um senso comum e uma possível des-atomização parcial na medida em que adotasse uma postura singular de vivência de seus simpatizantes. A única permanência é a do movimento que não deixa atrás de si nada de durável, não inspira nenhuma segurança e não permite nenhuma relação autêntica entre os seres humanos.

Embora a dominação totalitária nunca tenha se efetivado como um todo e o fim do mundo às vezes pareça ser uma fórmula exagerada, alguns de seus elementos permanecem sob formas aparentemente menos apocalípticas. Há ainda a criação de um mundo de semblância que acentua nosso afastamento da vida pública e um anti-intelectualismo crescente por parte não só de líderes mundiais – como Trump, Bolsonaro, Putin, Erdogan, Orbán –, mas mesmo de classes profissionais, que nos afastam da realidade, minam nossa confiança nos fatos. Nas apropriações recentes, parece haver a criação de uma semblância de politização por parte de uma massa de indivíduos que se julgam politizados quando encontram coro para suas opiniões em alguns de seus pares que a replicam. Nesses grupos, todavia, a não adesão a uma ideia posta é vista como critério de exclusão, de modo que há uma adequação necessária para fazer parte de um determinado grupo: a crítica e pensamento próprio, a avaliação com base em dados e fatos não deve, muitas vezes, sobrepujar certos objetivos previamente traçados.

Isso não significa, é claro, que vivamos em um regime totalitário, mas que ele nos legou certas heranças das quais parecemos ser incapazes ainda de nos livrar: elas assumem novas faces e adquirem novos métodos de nos alienar do mundo. Talvez duas das mais engenhosas formas de fazer isso sejam justamente sob duas perspectivas de propostas distintas: 1) por meio da exaltação de uma ideologia com valores inquestionáveis, de modo que politizado é aquele sujeito que assume integralmente certas bases inverificáveis como se elas fossem factuais; 2) a falsa negação de toda doutrina, quando, na verdade, assume-se uma ideologia ainda mais negadora dos fatos e da história, exalta-se o pensamento crítico confundindo-o com a incapacidade de verificação de quaisquer eventos factuais, sejam históricos, sejam científicos.

Vivemos, hoje, transformações de modos de se ocultar a realidade através das virtualidades: dos algoritmos que nos afastam de experiências plurais transformando-nos em consumidores/mercadorias; bem como da transformação dos fatos em fake news e da produção, por sua vez, de outras falsas notícias como se fossem, estas sim, a revelação de uma verdade escondida. As propagandas, aqui, se transformaram por meio dos aplicativos de mensagens (Telegram, Whatsapp), das redes socio-virtuais (Facebook, Instagram, TikTok), de programas de áudio por podcasts e de vídeos, sobretudo no Youtube. A fantasia que muitos deles promovem consegue alcançar uma massa consumidora que não verifica suas informações, sobretudo aquelas que se vendem já em títulos chamativos – conhecidos como click bait – e que oferecem uma explicação do mundo diferente daquele visto no quotidiano e na nossa formação básica. A criação de teorias da conspiração sobre quem governa o mundo e sobre os inimigos que precisamos combater consegue estimular a fantasia e imaginação de muita gente, tanto das elites que já possuem privilégios, quanto daqueles que sofrem diariamente e que se veem rechaçados pelo mundo em que vivem. Não importa se as mentiras não são reais, pois, ao criar a semblância de um mundo que não existe, elas prometem resolver todos os problemas, sejam os efetivamente reais, sejam os fictícios.

A capacidade de mentir e de ocultar os fatos por meio da revelação de teorias da conspiração cada vez menos preocupadas com quaisquer coerências internas chama a atenção: não se demanda mais nem mesmo uma lógica interna mínima, mas tão somente se busca criar e capturar paixões que nos afastam do mundo. O animal laborans do século XX é, assim, um animal tecnológico, um animal algorítmico, seu páthos não é estimulado pela realidade, mas por uma virtualidade que simula cada vez mais de forma irracional e sem sentido um mundo de semblância. 

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