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 Revista Derivas Analíticas - Nº 19 - Agosto de 2023. ISSN:2526-2637

 

Sobre o estatuto transclínico do delírio[1]

 

Gustavo Dessal
Psicanalista
Membro da Escola Lacaniana de Psicanálise / ELP
e da Associação Mundial de Psicanálise / AMP
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Em 1956, os sociólogos americanos Leon Festinger, Henry W. Riecken e Stanley Schachter publicaram um apaixonante estudo intitulado When prophecy fails (“Quando as profecias falham”), no qual se dedicaram à observação direta de um fenômeno extraordinário de crença coletiva. Era o ano de 1943, quando a senhora Marian Keech, moradora de Lake City, experimentou sensações estranhas em seu braço e começou a escrever, de maneira automática, o anúncio (proveniente de seres extraterrestres) de que a Terra seria destruída. A partir desse momento, surgiu um movimento composto por um grande número de seguidores que não apenas acreditavam firmemente nas declarações da Sra. Keech, como não se deram por vencidos quando a data da profecia chegou e nada aconteceu. Em vez de o não cumprimento da profecia dissolver a fé desses crentes, contribuiu, paradoxalmente, para reforçá-la ainda mais.

“O crente individual”, escrevem os autores, “precisa ter um apoio social. É improvável que um crente isolado seja capaz de resistir ao fracasso da previsão. Mas, se for membro de um grupo de pessoas que se apoiam mutuamente, podemos esperar que a crença seja mantida e que os crentes tentem fazer proselitismo ou que busquem convencer os não membros de que a crença está correta” (FESTINGER; RIECKEN; SCHACHTER, 1956). As redes e plataformas sociais proporcionam na contemporaneidade um espaço multiplicador para o “apoio social”, conforme referido pelos autores. Com muito atino, assinalam que estaríamos completamente equivocados se considerássemos que aqueles que compartilham essa classe de crença são sujeitos clinicamente loucos. Na época em que esse livro foi publicado, o volume da literatura fantástica sobre extraterrestres e ameaças milenares nos Estados Unidos era descomunal, assim como o número de seguidores. A internet é agora um veículo que lança no espaço globalizado inúmeros conteúdos que podem ser instrumentalizados para fins políticos, econômicos e ideológicos.

“Todo mundo está em seu mundo” é uma modulação da afirmação de Lacan de que todo mundo é delirante, mais além de sua estrita condição clínica. Não podemos deixar de evocar, além disso, as observações de Lacan (1966/1998) sobre o próprio conceito de “mundo”, baseado na obra de Alexandre Koyré (1957/2006). A questão também não passou despercebida a Pascal (1973), para quem existe a loucura de todo mundo, mas também a de cada um.

Um dos temas mais intrigantes é que podemos verificar, como no exemplo da Sra. Keech, a forma pela qual o mundo de cada um pode, sob certas condições, fazer laço. As redes sociais possibilitaram que esse fenômeno se multiplicasse exponencialmente. Cada um está em seu próprio mundo, mas rapidamente pode socializar sua loucura e tocar em determinados pontos que convocam seguidores. Qual seria o caráter dessa identificação que possibilita coletivizar o delírio singular de um sujeito que começa a ter centenas de milhares ou milhões de seguidores é um objeto de estudo.

As consequências são muito variadas. Os “ouvidores de vozes”, sujeitos que padecem de alucinações auditivas, têm encontrado uma maneira de aliviar seu sofrimento e sua profunda solidão em fóruns que se espalharam por todo o mundo. Ali, eles compartilham suas experiências alucinatórias, discutem-nas e, nessa medida, fazem com que o mundo no qual cada um está fechado se abra para o de muitos outros. O efeito terapêutico se verifica pelo fato de que esses grupos se proliferaram e estão em plena atividade há décadas.

Outras loucuras singulares que estão começando a se replicar são, ao contrário, sinais de alerta. É assombroso que Rosemary Kessick, uma consultora financeira residente em Londres e que tem um filho autista, tenha convertido a fraude do Dr. Andrew Wakefield, publicada na revista The Lancet, que atribuiu a causa do autismo à vacina Tríplice Viral, em uma causa que, vinte anos depois, ainda tem milhões de apoiadores em todo o mundo. A Sra. Kessick transformou seu drama pessoal em uma cruzada contra a vacinação. O Dr. Wakefield foi condenado e sua licença para exercer a medicina foi cassada, mas a loucura não se deteve, e os desmentidos da OMS pouco servem diante de uma certeza que consegue tocar o delírio de milhões de pessoas.

Pode parecer estranho que, durante a campanha presidencial que conduziu Trump ao poder, inúmeros sujeitos acreditassem que Hillary Clinton dirigia redes de pornografia infantil e realizava rituais satânicos. No entanto, essa “informação” atingiu o objetivo de interferir no processo eleitoral. Ainda que sua incidência sobre o resultado da eleição tenha sido mínima, o ponto importante a ser destacado é que o fenômeno das fake news não é de forma alguma novo. Ele se apoia no fato de que a verdade tem estrutura de ficção e que, por causa disso, não há verdade que não seja uma mentira por definição.

“Todo mundo delira” (LACAN, 1978/2010, p. 31) é o questionamento final a que Lacan chegou em sua revisão do conceito de verdade.[2] As redes sociais e a tecnologia dos bots abordam a realidade com os aparelhos de gozo para diferentes propósitos. Elas não “moldam” o cérebro humano, como pretendem os apóstolos da neurociência, mas têm como alvo o coração dos “demônios internos” que habitam cada um de nós. Embora não tenham sido necessárias para que o sujeito se defina por seu delírio singular, que é transclínico, elas tornaram possível que a mônada de cada parlêtre se abra ao mundo dos outros.

A repercussão desse paradigma atual tem sérias implicações no campo político. A lógica do delírio e as formas atuais de alguns discursos políticos têm semelhanças que não são coincidentes, mas obedecem a experimentos cujo êxito é indiscutível. Isso se manifesta em sintomas de extrema gravidade, como os massacres que nos Estados Unidos convertem o delírio em algo que se integra pouco a pouco na cultura. Cada um está em seu mundo, mas cada vez mais há aqueles que avançam sobre o mundo dos outros. 

Tradução do Espanhol: Virgínia Carvalho
Revisão: Vinícius Lima 


Referências 

FESTINGER, L.; RIECKEN, H.; SHACHTER, S. When prophecy fails. Harper: USA, 1956. 

KOYRÉ, A. Do mundo fechado ao universo infinito. Forense: São Paulo, 2006. (Trabalho original publicado em 1957). 

LACAN, J. A ciência e a verdade. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. (Texto original publicado em 1966). 

LACAN, J. Transferência para Saint Denis? Diário Ornicar Lacan a favor de Vincennes! Correio – Revista da Escola Brasileira de Psicanálise, São Paulo, n. 65, 2010. (Trabalho original redigido em 1978). 

PASCAL, B. Pensamentos. São Paulo: Nova Cultural, 1973.

[1] N.E.: Este texto foi publicado originalmente no site das XXI Jornadas da Escuela Lacaniana de Psicoanálisis del Campo Freudiano, ocorridas em 2022, em Barcelona, cujo tema foi: "Todo el mundo está en su mundo. Clínica de las invenciones singulares". Agradecemos ao autor pela amável autorização de sua publicação.

[2] Ali pode ser lido o profundo percurso que Lacan faz de seu conceito de verdade, desde Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise, passando por momentos chaves como seu Seminário 17, no qual o conceito de verdade e de Complexo de Édipo sofrem uma reviravolta, e seu Seminário 20. Neste último, a afirmação do significante como causa de gozo inicia um novo percurso da experiência clínica. A verdade perde seu caráter decisivo como orientação do tratamento, em benefício da ideia de que, sobre o real, só se pode mentir. É claro que essa “mentira” não é a de má-fé. A verdade como estrutura de ficção se reinterpreta como aquilo que só pode “falhar” em seu intuito de dizer o real.

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